Para fazer as políticas públicas darem o salto de qualidade que todos esperam, será preciso tornar mais porosos os limites entre o governo e os cidadãos
Quando o País fervilhava durante as Jornadas de Junho [1], uma das mensagens mais claras entoadas pela “voz rouca das ruas” a cada manifestação era de que existia uma profunda insatisfação contra a escassez e a má qualidade dos serviços públicos.
[1] Iniciadas em 2013 como uma série de protestos contra um aumento da passagem de ônibus organizada por estudantes em São Paulo, as manifestações tornaram-se progressivamente maiores até se transformarem em um fenômeno nacional
“’Queremos um atendimento ‘padrão Fifa’ [2] foram palavras de ordem nos protestos”, lembra Leandro Avena Prone, coordenador de projetos da Agenda Pública – organização que procura alavancar arranjos capazes de enfrentar desafios complexos nos territórios onde atua. “Ficou claro com os protestos que havia um desconcerto entre Estado e sociedade”, prossegue.
[2] Padrão de qualidade exigido pela Federação Internacional de Futebol dos estádios que abrigariam a Copa do Mundo realizada no Brasil em 2014. A expressão foi apropriada pelos manifestantes para ironizar a qualidade nos equipamentos e/ou serviços públicos
Passados cinco anos, aumenta o entendimento de que precisamos reatar o fio de uma meada que conecta quase 30 anos de esforço pela efetivação do direito à participação social na formulação e implementação das políticas públicas. Algo que está previsto desde a Constituição de 1988. Para fazer as políticas públicas darem o salto de qualidade que todos esperam, será preciso tornar mais porosos os limites entre o governo e os cidadãos. É aí que entra em prática a ideia de governança (mais sobre o conceito nesta reportagem). “A participação social favorece a entrega de políticas públicas com maior qualidade e legitimidade que serão mais bem apropriadas. Esse é o pote de ouro no final do arco-íris que deveria levar os governos a investirem mais energia e recursos em processos de governança”, aponta o coordenador executivo da Casa Fluminense, Henrique Silveira.
Não é como se a ficha tivesse caído para todo mundo só agora. Espalhados pelo Brasil é possível encontrar os mais diversos tipos de relacionamento entre sociedade civil e governos– da parceria franca à desconfiança mútua. Ainda assim, para Leandro Prone, algo está mudando. “Os gestores públicos passaram a perceber que, sozinhos, não estavam dando conta de dar uma resposta adequada à população”, completa. É uma percepção partilhada pela gerente de sustentabilidade da Fundação Alphaville, Fernanda Toledo de Oliveira. “Quando temos reuniões com governos e organizações locais, sentimos uma receptividade muito grande da parte deles, no sentido tanto de contribuir quanto de aprender. E de receber conhecimentos técnicos para tornar essa colaboração mais efetiva”, ressalta.
Aprendizados anteriores
De acordo com o coordenador executivo da Casa Fluminense, Henrique Silveira, o Brasil já produziu muitas experiências bem-sucedidas de participação popular, por exemplo, a implantação de mecanismos de orçamento participativo [3] por diversos municípios brasileiros ao longo dos anos 1990. Mas uma fagulha que reavive esse fogo pode vir a calhar. “Se não tivermos um processo permanente de inovação cívica, essas iniciativas acabarão atingindo um ‘teto’. A participação precisa ser cultivada”, pondera.
[3] Processo no qual cidadãos e funcionários da administração municipal decidem, em assembleias organizadas com esse fim, sobre a alocação de recursos para novos investimentos
Foi pela falta de um processo de renovação que muitos instrumentos importantes acabaram perdendo vigor. É o caso do sistema de consultas e audiências públicas que, muitas vezes, são realizados apenas por formalidade. “Elas continuam importantes, mas se tornaram pouco produtivas porque o governo chega com uma fórmula pronta, abrindo pouco espaço para ouvir”, critica Silveira. A seu ver, falta consolidar uma cultura da participação dentro do setor público. “Os gestores precisam acreditar que, se houver participação da sociedade, os resultados serão melhores do que uma proposta puramente técnica. Eles precisam reconhecer isso como um valor”, propõe.
Prone, da Agenda Pública, destaca que os espaços existem, mas que muitos deles “precisam ser potencializados”. É o caso dos Conselhos Municipais [4]. “No longo prazo, é uma forma de aproximar o cidadão das decisões sobre os serviços. Eu já vi pautas surgidas nesses conselhos chegarem até os gabinetes”, testemunha. Paciência é uma virtude indispensável. “O caminho é ardiloso e haverá momentos de frustração. Precisamos ter fôlego e obstinação”, pontua.
[4] Espaços de natureza deliberativa e consultiva, cuja função é formular e controlar a execução das políticas públicas setoriais. Devem ter número igual de representantes do Estado e da sociedade civil
E há novas brechas se abrindo. “A tecnologia vem mudando a maneira como nos relacionamos com tudo. Entre Estado e sociedade ela pode ser um agente de transparência e conhecimento”, diz Thiago Rondon, o fundador da AppCivico. A empresa que desenvolve tecnologias com um olho na mudança social apoia a realização dos chamados hackatons [5]. Um bom exemplo foi 1ª Hackathon da Saúde realizada no ano passado em parceria com o Senai e a Secretaria Municipal da Saúde de São Paulo, que teve como destaque a proposição de um sistema integrado de acompanhamento e apoio a gestantes e monitoramento de cesarianas, chamado SuperMãe. “São uma ótima ferramenta para colocar todos os atores para conversar. Mostra como o governo pode deixar de ser apenas um ‘prestador de serviço’ para se tornar um indutor de construção conjunta”, elabora.
[5] Evento de curta duração na qual um grupo formado por técnicos e público em geral trabalha de forma concentrada em um problema específico buscando soluções por meio do desenvolvimento de ferramentas tecnológicas inovadoras
Explorar essas brechas requer um trabalho permanente da sociedade civil. “Precisamos de processos de articulação e mobilização de um leque diversificado de atores da sociedade civil. Além de mais acesso à informação e indicadores. Só com grupos articulados e bem informados é que vamos conseguir a incidência política para influir no debate público”, diz Silveira.
Iniciativa
Para o cidadão comum, a participação em espaços de governança pode parecer algo intimidador ou fora de alcance. Não é verdade. Às vezes, basta se lançar e ver no que dá.
Foi o que fez a baiana Jordânia Pereira da Silva, 18 anos atrás. Ao lado de outros moradores do bairro do Vale do Sul em Barueri (SP), fundou a Cooperativa Unindo Forças, com a finalidade de gerar renda aproveitando madeira de paletes descartados por indústrias locais. “Eu via no cooperativismo uma forma de ajuda mútua”, relembra. Durante os cinco primeiros anos, as coisas eram feitas na base do improviso, contando com a boa vontade da comunidade. “A gente ia pedindo o que precisava. A cooperativa foi uma mobilização do bairro inteiro”, conta.
O passo seguinte veio apenas em 2005. Jordânia soube que a então primeira-dama de Barueri, Sônia Dias Furlan, estava selecionando projetos sociais pela cidade e não teve dúvidas: foi, por conta própria, até a Prefeitura e deixou seu endereço com uma secretária. Era o começo de uma parceria envolvendo a Unindo Forças, o governo municipal e a Fundação Alphaville, que dura até hoje. “Foi um divisor de águas. Não só porque conseguimos espaço e maquinário melhores, mas porque nos deram uma chance de crescer por meio do conhecimento. O conhecimento muda a vida das pessoas. Mudou a minha”, afirma.
Para Fernanda Toledo, da Fundação Alphaville, a Unindo Forças ilustra bem como é possível ir além do assistencialismo para gerar transformações que se mantenham sustentáveis no longo prazo. “Sem a construção de redes e a capacitação dos atores envolvidos, os projetos não andam”, avalia.
Esse é o antídoto para impedir que os atores que estão na base comunitária – normalmente o elo mais frágil na cadeia – acabem atropelados durante processos que deveriam ser horizontais. “Quando fortalecidas, as comunidades ficam mais preparadas para trabalhar com atores institucionais, como governos e empresas. Somente aí que você consegue chegar a ações que promoverão mudanças no território, capazes de serem incorporadas às políticas públicas ”, justifica.
Para atingir esse ponto, é fundamental identificar e envolver as lideranças presentes nessas comunidades. “São as lideranças que vão movimentar o processo e difundir o trabalho pelo território. Seria muito difícil se a gente tivesse de atingir as pessoas isoladamente”, avalia Toledo.
Grande escala
Quando bem-sucedida, a prática da governança territorial pode ser transformadora. É o exemplo do Consórcio Intermunicipal das Bacias dos Rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí (Consórcio PCJ) que, em seus quase 30 anos de existência, influiu ativamente na construção do que viria a ser tornar a Política Nacional de Recursos Hídricos.
Foi graças à articulação iniciada por um grupo de engenheiros e arquitetos piracicabanos em 1985 – com o País recém-saído da Ditadura Militar – em torno da chamada “Redenção Ecológica da Bacia do Piracicaba”, que o governo do Estado de São Paulo viria a aprovar, em 1991, a Política Estadual de Recursos Hídricos. A experiência paulista foi um marco e serviu de inspiração para que a União formulasse sua própria Lei das Águas alguns anos mais tarde.
Segundo o secretário executivo do Consórcio PCJ, Francisco Lahóz, todo esse processo foi acompanhado bem de perto pelo grupo que se articulou com outras organizações da sociedade civil ligadas à questão da água. Estas fazem parte da Rede Brasil de Organismos de Bacia (Rebob) e influenciaram o texto dessa legislação e de outras subsequentes, como a Lei nº 9.984/2000 que criou a Agência Nacional das Águas (ANA). “Gradativamente, criamos elementos de governabilidade para exercer a governança das águas”, resume.
“Hoje estamos razoavelmente bem servidos em termos de estrutura de governança”, diz Lahóz. Já são mais de 210 Comitês de Bacia [6] instalados. O maior nó, contudo, continua sendo a capacitação dos participantes dos comitês. “Estamos com dificuldades para preencher as vagas [nos comitês] reservadas à sociedade civil. Precisamos promover a integração direcionada a esses representantes para que eles não fiquem passivos nos processos de decisão”, diz.
[6] Organismos colegiados que contam com representantes de todos os setores da sociedade que tenham interesse sobre uma bacia hidrográfica. Têm poder para elaborar o plano de recursos hídricos, arbitrar conflitos, estabelecer mecanismos para a cobrança pelo uso da água
Relação de confiança
Segundo Lahóz, a falta de capacitação adequada acaba alimentando uma situação do tipo “o ovo ou a galinha”: como as políticas públicas ficam aquém dos anseios da sociedade civil, ela se frustra e deixa de participar, o que empobrece a construção das políticas. “É preciso mais estímulos para que os espaços de governança sejam ocupados. Falta devolver esperança às pessoas”, completa. “O mais importante é ter uma boa pactuação. Isso exige informar e sensibilizar as pessoas para que elas possam ter a dimensão da importância dos processos”, opina.
A relevância dessas instâncias, no entanto, será proporcional à sua capacidade de produzir decisões compartilhadas e, num segundo momento, transformações reais. “Participação não é apenas ser escutado e escutar, é decidir junto. Participar demanda esforço, tempo, é difícil, custoso. Por isso, a gente só consegue envolvimento quando se tem uma perspectiva real e relevante, de transformação. Isso precisa ser pactuado, compreendido e compromissado entre todos. Se não, a pessoa não verá valor em participar”, diz Daniela Gomes Pinto, coordenadora do Programa de Desenvolvimento Local do Centro de Estudos em Sustentabilidade da FGV Eaesp (FGVces).
Para Henrique Silveira, a frustração das expectativas envenena os processos de governança. “Como há muita energia envolvida, quando não produz um resultado, é gerada muita frustração entre os participantes, o que acaba virando desesperança e rancor. Ignorar a participação tem seu preço”, afirma. Por isso, ele entende que a confiança é um ativo importante nessas iniciativas. “A população precisa acreditar que os gestores querem ouvir o que ela tem a dizer, e que o processo vai gerar resultados. Construir essa relação de confiança demanda tempo, esforço e seriedade”, diz.
Abrir esses espaços, na opinião de Jordânia da Silva, ajudaria a alavancar o potencial existente dentro das comunidades. “Eu vejo quanto potencial existe e a quantidade de gente que sabe fazer coisas muito legais. Mas as comunidades se consideram pequenas demais. Quando aparece alguém que realmente escuta essas pessoas, isso muda suas vidas”, garante.
Angariar a simpatia do corpo técnico dos governos ajuda a reduzir o risco de que essas iniciativas sejam abandonadas a cada troca de administração. “Quando você traz os servidores concursados para dentro dos projetos, aumenta a chance de que tenham continuidade”, pontua Fernanda Toledo.
Essa interlocução entre governo e população por meio da governança ajudaria a qualificar a própria gestão pública, reduzindo o espaço para voluntarismos. “Para haver políticas públicas duradouras, precisamos que o poder público tenha uma cultura de planejamento e a sociedade civil, uma cultura de monitoramento. As duas coisas passam por um trato sobre o que fazer e o que cobrar”, resume o coordenador da Casa Fluminense. Pode ser esse o caminho para os serviços públicos “padrão Fifa” que exigíamos cinco anos atrás