Decorridos seis anos desde a realização da primeira edição do Festival de Investimentos de Impacto e Negócios Sustentáveis na Amazônia (Fiinsa), atores do ecossistema refletem sobre avanços e gargalos, como o financiamento. O desafio é transformar análises já acumuladas em ações práticas
Por Mônica C. Ribeiro*
Fotos: Divulgação Fiinsa
Negócios que atuam com produtos e serviços da sociobiodiversidade amazônica têm sido destacados, nos últimos anos, como uma das chaves para criar uma nova economia da região, que valorize a floresta viva e gere renda para as populações que habitam a floresta, trazendo alternativas às atividades predatórias que desmatam a Amazônia. Organizações de diversos setores e portes têm atuado nos últimos anos para fortalecer a cultura empreendedora, apoiar, gerar e acelerar negócios que atuam ou pretendem atuar nessa direção e desenvolver um ecossistema de impacto na região.
É fato que o número de atores com esse foco de atuação, ou minimamente interessados nessa agenda, tem aumentado. Basta comparar as últimas edições do Festival de Negócios de Impacto e Desenvolvimento Sustentável na Amazônia (Fiinsa), que realizou sua terceira edição no final de outubro deste ano.
O número de participantes do Fiinsa saltou de 252, na primeira edição, para cerca de 800 nesta terceira. O Festival, que já se consolidou como o principal evento do setor ao colocar a Amazônia “fisicamente” no centro do debate, levando a “Faria Lima” para Manaus, capital amazônica, proporciona conexões no mínimo importantes entre financiadores, investidores, organizações filantrópicas, dinamizadoras, empreendedores, empresas e academia.
A ampliação de atores e diversidade de perfis de organizações e pessoas presentes ao terceiro Fiinsa são um sinal de que, de fato, a agenda se expandiu. Enquanto na primeira edição o tema era novo e pouco conhecido, este ano mais pessoas se mostravam conectadas a ele, e havia uma presença ainda maior de empreendedores da região.
“Vejo um avanço de realidade, partindo de um lugar de prática. Essa me parece a principal evolução. E há também o fortalecimento da agenda. Antes a gente tinha um trabalho de convencimento, de pedir para que as pessoas fizessem parte disso. E hoje quando a gente olha o perfil de pessoas que estão conosco no evento, temos um gráfico bem equilibrado entre pessoas do Norte e do Sudeste do Brasil”, destaca Juliana Teles, cofundadora do Impact Hub Manaus, organização correalizadora do Fiinsa.
Isso é importante, segundo ela, porque, os tomadores de decisão e os investidores estão muito mais concentrados no Sudeste. Então esse equilíbrio de perfis, entre empreendedores, investidores e organizações, especialmente as territoriais, considero um avanço significativo.”
Mas também é perceptível que, apesar de a oferta de iniciativas de aceleração e financiamento ter aumentado, elas acabam apoiando negócios com perfil e momento da jornada empreendedora parecidos, tanto que é frequente que os mesmos empreendedores participem de diferentes processos de aceleração e sejam investidos por financiadores diversos.
A participação em múltiplas iniciativas não é por si um problema, já que, ao longo de sua jornada, negócios amadurecem e passam a ter necessidades diferentes de apoio, que podem ser em parte supridas por processos de aceleração e investimento.
A pergunta que se coloca para o ecossistema é: como contribuir de fato para gerar, ampliar e fortalecer esse pipeline de negócios. E para os financiadores em especial, como tornar o financiamento mais estratégico, no sentido de realmente contribuir para estruturar o ecossistema, quando os tempos da Amazônia e da Faria Lima parecem radicalmente distintos?
Mariano Cenamo, diretor executivo da aceleradora de impacto Amaz e diretor de novos negócios do Instituto de Conservação e Desenvolvimento Sustentável da Amazônia (Idesam) um dos promotores do Fiinsa e que completa 20 anos de atuação na Amazônia em 2024 –, destaca o slogan do evento deste ano – “onde fazer fala mais alto” – como um chamado a esses atores para o fortalecimento do ecossistema.
“A Amazônia já está no centro das atenções do mundo, investidores já acordaram, e isso é muito importante para o Brasil. Ela é relevante do ponto de vista climático, ambiental e econômico. Agora precisamos começar a fazer, porque já tivemos encontros, estudos e relatórios suficientes, destacando o contexto e apontando os caminhos necessários. Temos agora uma mensagem nítida e inequívoca de que precisamos transformar isso em ação. O que mais vimos, do primeiro Fiinsa para cá, foram novos fundos de investimento sendo lançados. Mas o dinheiro ainda não está chegando na ponta na intensidade que precisa chegar.”
Construção de pipeline e alavancagem de negócios
Ainda são números os desafios para a construção de um pipeline de negócios de impacto na região amazônica. Segundo levantamento de Graziella Maria Comini, da Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária da Universidade de São Paulo, publicado em 2023, observa-se a concentração de empreendimentos nos estados do Amazonas e do Pará, onde estão localizados os negócios mais maduros, em fase de desenvolvimento ou escala. Nos demais estados amazônicos, os negócios estão predominantemente em estágio inicial de desenvolvimento, nas fases de ideação e prototipação.
A Amaz participou do levantamento mencionado acima, tendo já analisado mais de 500 negócios de impacto que se candidataram à aceleração por meio de chamadas anuais ou em ações de prospecção ativa. A iniciativa do Idesam conta com um fundo de blended finance de R$ 25 milhões para acelerar e investir em negócios até 2025, acelerou 17 negócios e investiu em 14. E com base nessa experiência, se prepara para expandir sua atuação para endereçar parte dessas questões, em plena captação de um segundo fundo de investimentos.
O Impact Hub Manaus desenvolve atualmente o Lab de Impacto, que acelera negócios da Amazônia Legal nos estágios de piloto e MVP (mínimo produto viável). Em 2023, o programa recebeu 117 inscrições de oito estados da Amazônia, selecionando 14 deles para aceleração. Em parceria com o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), por meio da iniciativa BID Lab e um fundo multidoadores e investimentos de R$ 1,6 milhão, o Impact Hub Manaus trabalha também para fortalecer pequenas e médias empresas locais na área de bioeconomia por meio da criação de hubs de ecossistemas de bioeconomia na região da Amazônia Legal.
As duas organizações reconhecem como avanços o aumento do número de negócios, de capital disponível e ampliação de setores atuando diretamente com a agenda. Mas também destacam que essa ampliação não garante ainda que os recursos cheguem para estruturar negócios em estágios mais iniciais.
“Não está chegando porque temos mais negócios na ponta do que dentro do ecossistema,” destaca Marcus Bessa, cofundador do Impact Hub Manaus. Segundo ele, há seis anos não havia negócios como o Ateliê Derequine (localizado no Parque das Tribos, em Manaus, o empreendimento valoriza fibras e sementes da floresta e cria roupas personalizadas a partir do trabalho artesanal de mulheres indígenas), a Cacauaré (que desenvolve produtos com o cacau nativo em Mocajuba, no Pará) ou a Vitrum (empresa de Macapá que produz blocos cimentados com areia de resíduos de vidro reciclados). São negócios novos, com lideranças comunitárias e povos indígenas à frente deles. Isso é um avanço importante”.
Entusiasta do ecossistema, Denis Minev, diretor-presidente das Lojas Bemol, investidor e cofundador da Amaz, reconhece que o Brasil ainda não se conseguiu organizar para dar produtividade à riqueza da biodiversidade amazônica, seja carbono, seja restauração, sejam produtos da biodiversidade. “Todos reconhecemos que a Amazônia é um patrimônio rico no que diz respeito à biodiversidade. Mas patrimônios precisam entregar dividendos. O nosso patrimônio entrega muitos dividendos indiretos, para todo o planeta. Temos iniciativas, mas ainda são acanhadas. Temos que ter ambição”, afirma.
No entanto, Minev destaca que há avanços visíveis na agenda dos negócios de impacto com atuação na região: “Eu gostaria de chamar a atenção para coisas que são diferentes do passado. E a primeira delas é ver Vanda Witoto e Almir Suruí fazendo seus pitches. Isso não é trivial. E não acontecia há cinco ou dez anos atrás. Acho que esse é um dos sonhos que eu tenho para a Amazônia, que os unicórnios, ou que o ‘próximo Guilherme Leal’, sejam amazônicos. Só assim a gente consegue ter um grau de transformação em outro nível”.
Witoto e Suruí estiveram presentes nas primeiras mesas do Fiinsa, falando sobre os negócios de impacto que desenvolvem em suas comunidades. “A moda sempre existiu em nossos territórios, só que nunca ocupamos esses espaços da passarela, da moda tradicional. Há uma expansão da presença indígena nesses espaços nos últimos anos, o que traz uma mudança, porque a moda indígena é decolonial”, define Witoto, à frente do Ateliê Derequine, empreendimento de moda indígena localizado no Parque das Tribos (primeiro bairro indígena reconhecido pela prefeitura de Manaus, fundado em 2014).
A dinâmica do Parque das Tribos tem gerado outras iniciativas, como a Cozinha Boca da Mata, que produziu refeições para as duas últimas edições do Fiinsa, e que nasceu como resposta à covid-19 em Manaus, com intuito de distribuir comida e aplacar os efeitos da pandemia. O projeto é apoiado pela Gastromotiva.
Almir Suruí, liderança do povo Paiter Suruí, da Terra Indígena Sete de Setembro, em Rondônia, é hoje um dos principais defensores do modelo de gestão participativa em terras indígenas. O Carbono Florestal Suruí, de 2009, foi o primeiro projeto de Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação (Redd+) no mundo, dentro de uma Terra Indígena, a vender créditos de carbono. Reduziu o desmatamento no território em seus primeiros anos e chegou a vender créditos certificados para a Natura, mas foi suspenso em 2018 pelo aumento do desmatamento causado pela descoberta de garimpo ilegal na região.
“A gente teve o primeiro plano de vida do povo Paiter Suruí no ano 2000, onde criamos uma estratégia sobre como poderíamos fazer uma gestão territorial. Com essa estratégia, nosso desejo era de transformar o território como modelo de desenvolvimento sustentável na Amazônia. O projeto com créditos de carbono foi cancelado, mas atividades eleitas como prioridades daquela estratégia continuaram, como produção de café, castanha, turismo. Continuamos a manter transparência e governança e a preparar jovens lideranças para continuar.”
O café produzido pelos Paiter Suruí tem se destacado pela qualidade e baixo impacto ambiental. Em 2018, fecharam uma parceria com a 3 Corações: o projeto Tribos. Microlotes, destacados em edições anuais e limitadas, são vendidos em todo o país.
A escassez de negócios de impacto no estágio buscado pelos investidores na Amazônia é um gargalo que precisa ser endereçado coletivamente. Esse é um dos consensos sobre o desenvolvimento do ecossistema. Mariano Cenamo vê com bons olhos o mix de empreendedores de impacto da Amazônia com os de outras regiões do país e sua potencial contribuição para isso:
“Para desenvolver esse pipeline, não devemos ter timidez em buscar investidores fora e em importar empreendedores de outras regiões. Até porque a maior parte dos problemas sociais e ambientais que temos hoje na Amazônia são gerados por empreendedores que foram importados, atuando em outras lógicas. A economia do desmatamento é exógena, veio de fora. Então, além de trabalhar com empreendedores locais, comunitários, indígenas, que é a nossa grande prioridade, também temos que estar abertos a trazer cérebros e talentos de fora, porque isso dá uma complementaridade muito interessante.”
O portfólio da Amaz reflete essa mistura: há negócios do Amazonas, Pará, Mato Grosso, mas também de outros estados como São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, atuando na Amazônia em conexão entre si e em parceria com outros atores do ecossistema.
Uma das empresas que integra o portfólio, a paraense Manioca, foi investida há cerca de um ano pela empresa Ajinomoto. A jornada de crescimento e investimento da empresa – que atua com alimentos naturais da região amazônica -, começou com a aceleração pelo time da Amaz (então ainda um programa piloto sob o guarda-chuva da Plataforma Parceiros pela Amazônia – PPA), seguido de rodadas de investimento que incluíram como investidores, além da própria aceleradora, o Fundo de Biodiversidade da Amazônia (ABF) – veículo de blended finance sob gestão da consultoria britânica Impact Earth – e, na sequência, a Ajinomoto, que realizou sua primeira corporate venture capital fora do Japão.
“Foi nesse ecossistema da Amazônia que a Manioca se percebeu como negócio de impacto e aprendeu a atuar com investidores, mas a se impor também. Foram negociações longas antes de assinar os contratos – um ano com ABF e dois com Ajinomoto –, período em que a gente pode se conhecer e negociar. Hoje a Manioca é pequena, mas tem governança de média empresa por causa disso, o contato com investidores nos fez trabalhar essa governança. E a relação com a Ajinomoto marca uma nova etapa. Porque os fundos são importantes para trazer recursos e às vezes conhecimento sobre impacto, mas uma empresa que atua no nosso segmento traz diversas outras coisas além de dinheiro,” destaca Joanna Martins, diretora executiva da Manioca.
Juliana Okuda, do Ajinolab da Ajinomoto, destaca a conexão com as estratégias ESG da empresa, signatária do Pacto Global, e a importância da inovação aberta, sendo responsável por conectar a empresa no Brasil a startups, universidades e pesquisadores. O encontro com a Manioca se deu na busca da ampliação do portfólio de produtos saudáveis e de “brasilidade”, como ela define: “Tem sido um aprendizado muito grande para a gente. A Ajinomoto tem a cultura nipônica de construção em time, de ser bom para todo mundo, em relações de ganha-ganha.”
A Tucum, negócio originado no sudeste do país e integrante do portfólio da Amaz, é um marketplace de arte e artesanato indígena, e tem composto um mix de capital originado de rodadas de negócios e filantropia para alavancar o crescimento. Hoje, na visão de Amanda Santana, cofundadora e diretora artística da marca, está em um momento de escalar e tracionar. Embora ainda não tenha chegado ao ponto de equilíbrio, ela percebe o crescimento da empresa e sua contribuição para impacto positivo na Amazônia.
“O nosso maior ativo, na verdade, é a relação que a gente tem com os povos indígenas do Brasil. São mais de 50 organizações que fazem parte da nossa rede, e a gente tem um respeito e uma proximidade, uma relação de parceria já muito duradoura. E é até por isso que eu tenho vontade de escalar, porque a gente consegue apoiar mais os pequenos grandes empreendimentos da floresta quando aumenta o nosso negócio, aumenta a nossa capacidade de atingir novos mercados e novos consumidores.”
Na cidade do Rio de Janeiro, Santana abriu neste ano a Casa Tucum, que integra o projeto Reviver Rio, no centro da cidade, e que é definido por ela como um centro cultural que demarca território no coração da capital fluminense, sendo espaço de resistência e de encontro com a cultura indígena, de diálogo e construção permanente.
Inovação em mecanismos de financiamento
Outro ponto destacado pelas pessoas ao longo da terceira edição do Fiinsa diz respeito à necessidade de pensar e desenvolver mecanismos de financiamento mais flexíveis, que levem em consideração das especificidades amazônicas, e entendendo que escala e retorno têm tempos diversos dos esperados pelos investidores.
Mecanismos de financiamento existentes para negócios de impacto, em grande parte localizados no sudeste do Brasil ou fora do país, trazem lógicas e tempos muito diversos daqueles que se colocam como necessários para a região amazônica, e isso é um desafio.
No caso específico dos empreendedores, é importante não pular etapas. Passar por rodadas de aceleração, ter acesso a tickets de investimento menores, que ajudem o negócio a criar musculatura, estrutura de governança e comercial, e se preparar para receber investimentos maiores
“Desenvolver negócios na Amazônia para manter a floresta em pé, especialmente negócios rurais e florestais como os que a gente busca, implica em fazer investimento pesado em hardware, não software”, analisa Cenamo.
Para ele, a lógica dos multiplicadores de valuation dos negócios que crescem rapidamente funciona quando o investimento vem para resolver um ponto específico, que custa pouco e gera resposta rápida no faturamento. “Mas, na nossa realidade amazônica, o dinheiro vem para comprar estoque de artesanato indígena, adubo e muda para reflorestamento, cacau, castanha. São investimentos pesados, financeiramente caros e que não trazem retorno rápido.”
Ou seja: ou se criam novos instrumentos de investimento que permitam compreender a dinâmica e o tempo de investimentos na região, tomando risco e apostando no longo prazo, ou o pipeline não estará pronto para os investidores.
Isso faz com que Cenamo destaque a outra ponta dessa equação: “São os negócios que não estão maduros ou os investidores que não se prepararam para jogar nesse terreno e fazer diferença? Acho que é uma via de duas mãos. Um amigo meu, engenheiro, me explicou que para construir uma ponte, você começa dos dois lados e a ponte se encontra no meio. Talvez esteja faltando o setor financeiro fazer essa reflexão e se colocar como parte ativa dessa construção. Vamos construir pipeline, mas os investidores têm que sair da zona de conforto e refazer suas teses de investimento.”
O Fundo Vale, que completa 15 anos em 2024, tem funcionado, nas palavras de seu diretor executivo, Gustavo Luz, como um laboratório de soluções para apoiar e acelerar esse ecossistema, prototipando e testando mecanismos e estratégias na perspectiva do entendimento de que ainda é preciso muito capital para seu desenvolvimento.
A aposta é em arranjos fortemente colaborativos, em diferentes frentes, envolvendo múltiplos atores. O Fundo Vale se coloca como um investidor paciente e catalítico, capaz de alavancar investimentos de outras fontes ao assumir os riscos de investir em negócios de impacto nas agendas da biodiversidade. Ao longo de sua trajetória, a organização informa que foram investidos R$ 360 milhões, apoiando cerca de 340 iniciativas, ajudando a recuperar cerca de 15 mil hectares e em colaboração com dezenas de organizações.
O investimento no ecossistema de impacto na região é visível em quase todas as iniciativas inovadoras, e tem se dado especialmente por meio do apoio a dinamizadoras e aceleradoras, e pela testagem de mecanismos de investimento.
“Na nossa percepção, não tem como fazer nada em escala sem cooperação, sem colaboração. A gente não tem nenhum projeto ou programa que seja só nosso. Isso porque os problemas são complexos, o dinheiro é limitado, então a gente precisa juntar forças. Vemos muitas discussões sobre ‘ter um projeto para chamar de meu’, mas é fundamental fortalecer projetos que já existem. Capital fortalecendo boas soluções que já tenham lastro é uma forma de ganhar capilaridade”, diz Luz.
A adaptação do capital aos diferentes perfis de negócios e arranjos continua sendo um grande desafio. A aposta no chamado Venture Capital (VC) – tipo de investimento em empresas jovens e startups que possuem potencial de crescimento, mas que ainda estão em fases iniciais – por muito tempo foi celebrada como solução para o financiamento a esses negócios. Mas hoje a percepção é que esse capital não é facilmente atraído para o impacto, e nem mesmo tão adequado para os perfis amazônicos.
“O que eu percebo é que alguns pegaram a narrativa do impacto, mas quando você vai olhar as condições do investimento, houve pouca mudança. Então ainda temos esse desafio grande. Não basta o nosso ‘empurrãozinho’, de fazer a ponte. Enquanto esse capital não se flexibilizar ainda estamos falando de mundos muito diferentes. Vejo muitos fundos de olho na Amazônia, querendo apoiar, mas sem mudar suas regras e condições, sem mudar o retorno que pretendem dar para os investidores, e desse modo o casamento é impossível”, observa Márcia Soares, gerente Amazônia e de Parcerias do Fundo Vale.
A percepção de que o mercado financeiro parece despreparado para investir na Amazônia é corroborada por Daniel Brandão, diretor de Soluções baseadas na Natureza da Vox Capital, gestora de investimentos pioneira em impacto no Brasil.
“Quando você vai para o mercado, interessado em retorno, esse grupo financeiro ainda não está olhando para impacto. Isso em geral não é um driver de decisão. O Venture Capital é um mecanismo interessante e inovador, só que para acessar esse capital os negócios têm que ter características muito específicas. Os fundamentos do VC não têm que ser adotados por todo e qualquer negócio. Alguns negócios vão ter escala, outros não. E está tudo bem. Precisamos buscar outros mecanismos.”
Brandão destaca ainda que o mercado de VC está em retração desde 2021, o que leva a olhar para o crédito. Que, no caso dos negócios de impacto da Amazônia em seu atual estágio, com pouco track record (histórico de desempenho), não há como minimizar riscos. Essa realidade faz com que os investimentos concessionais, ou blended finance, reunindo atores que estão dispostos a correr mais ricos do que o mercado financeiro, seja atualmente uma opção.
“Precisamos olhar para outras fontes de crédito barato. Temos de incidir sobre esse mercado financeiro. Esse ambiente que o Fiinsa vai criando é essencialmente importante para isso. Estamos em uma clivagem, ou a gente vai para a frente ou vai fritar”, afirma Brandão.
Oferta de crédito para negócios de impacto é um dos horizontes da Sitawi, que dispõe de uma plataforma de empréstimo coletivo e uma trilha de preparação para organizações receberem aportes. Desde o lançamento da plataforma, já foram investidos R$ 11 milhões em 36 organizações na Amazônia. Ao perceber que uma lacuna que o mercado não estava endereçada – a de preparar essas organizações para receber esse investimento – a Sitawi criou uma trilha para trazer formações e desenvolver capacidades para buscar recursos no mercado.
“Estamos gerando oportunidades e pipeline para que novas organizações surjam e que não haja risco de escassez de oportunidades e de negócios lá na frente, e para que esses fundos e essas organizações consigam crescer”, diz Bruno Girardi, diretor vice-presidente da Sitawi.
Competição x colaboração: o elefante na sala
A crescente visibilidade da Amazônia e de sua importância para a regulação climática do planeta, e a proximidade da COP30 de Clima, a ser realizada em 2025 em Belém do Pará, amplia os olhares sobre o território e iniciativas também no campo dos negócios de impacto.
Novas organizações se juntam a outras que já atuam nesse terreno há muitos anos, mesmo quando ainda não se falava em ecossistema de impacto, buscando alternativas para geração de renda na conservação da floresta.
A atuação em redes, desde sempre fundamental, torna-se ainda mais importante no atual contexto, como os depoimentos já trazidos a este texto deixam ver. Mas há muitas nuances que emergem quando a palavra cooperação surge, que passam por disputa de protagonismo, de recursos e pipeline de negócios.
Fábio Deboni, produtor do podcast Impacto na Encruzilhada e diretor de Programas da Aliança Bioversity-CIAT, mediou uma mesa sobre o tema da competição durante a terceira edição do Fiinsa, e destaca que os atores do ecossistema começam, ainda que timidamente, a discutir o que ele define como temas um pouco mais espinhosos, o que era mais raro de se ver há alguns anos.
“Há uma competição mais explícita entre os atores, e uma prática em geral ainda colonialista em relação à Amazônia. Mas ainda que a gente fale pouco sobre esses incômodos, sentimos isso, essa temperatura está mais alta. Pouco a pouco as pessoas estão mais dispostas a falar. Essa conversa ainda é lateral, mas está acontecendo. Acho que a gente não deveria esperar grandes arranjos colaborativos no ecossistema em geral. Creio que pontualmente vamos ter iniciativas mais colaborativas, coalizões, que são muito boas porque acabam inspirando ou constrangendo outros atores que estão fazendo coisas meio tradicionais demais. Mas minha expectativa ainda é baixa quanto a isso.”
O Centro de Empreendedorismo da Amazônia, localizado em Belém, surgiu na primeira década dos anos 2000 tendo como foco o desenvolvimento de negócios da floresta. A ideia inicial era ser uma escola de negócios verdes. Mas, percebendo que o território estava ainda imaturo, começou a trabalhar com jornada empreendedora e processos de construção de ideias de negócios, a partir do aporte filantrópico de empresas na criação de novos negócios de jovens em seus territórios.
Raphael Medeiros, diretor executivo do Centro, relembra que o primeiro programa de pré-aceleração com foco exclusivo em produtos da sociobiodiversidade foi realizado pelo Centro em 2017. E depois vieram outros anuais de 2018 a 2023, inclusive no ano da pandemia de Covid-19. Este será o primeiro ano, depois de todo esse ciclo, em que o programa não é realizado.
“Tem muito programa de pré-aceleração rodando hoje. Dez anos atrás não tínhamos nada disso. Hoje temos muitas iniciativas, empresas grandes se envolvendo e isso significa que cumprimos a nossa missão. Mas agora é hora de ver onde a gente é necessário. Onde estão os buracos no ecossistema e atuar lá, para fazer a diferença para a floresta”, diz Medeiros.
Ele destaca que o melhor dos mundos seria ter buscar a complementaridade dos programas e iniciativas de dinamizadores do ecossistema que já atuam no território, de modo a dar uma real contribuição para acelerar seu desenvolvimento. Isso significa, por exemplo, tratar na base empreendedora os gargalos trazidos pelos negócios no momento da aceleração. Uma construção envolvendo múltiplos atores atuando em diferentes etapas do processo de estruturação do pipeline de negócios.
Na tônica da cooperação, uma iniciativa que se destaca e não existia nas duas primeiras edições do Fiinsa é a Associação dos Negócios de Sociobioeconomia da Amazônia (Assobio). A associação reúne e representa pequenos e médios negócios cuja cadeia produtiva e estratégia de impacto se baseiam na bioeconomia amazônica. São dezenas de empresas que já passaram por aceleração, investimento e se articulam em busca de fortalecimento no ecossistema, em uma rede de empreendedores da floresta.
No momento em que acontecia o Fiinsa, o grupo se preparava para a participação na COP 16 da biodiversidade – realizada em Cali, na Colômbia, de 21 de outubro a 1º de novembro –, onde assinou um Memorando de Entendimento com o Banco do Brasil, a fim de formalizar uma parceria para garantir benefícios aos associados. O grupo já projetava também presença na COP 29 de Clima, em Baku, no Azerbaijão, iniciada hoje – em um movimento que se torna cada vez mais frequente: o contato direto com financiadores e tomadores de decisão, em diferentes espaços, potencializando a voz dos empreendedores.
“Nós nos unimos em uma diversidade de empreendedores da sociobiodiversidade que trabalham com impacto para fortalecer o movimento e os pequenos negócios. Precisamos ser vistos como agregadores de valor dos produtos, com visibilidade em mercados no Brasil e no exterior, fortalecendo a marca Amazônia. Não somos apenas almoxarifado do mundo, que entrega commodities a preços baixos. Nosso trabalho é muito importante, gera renda na região amazônica, impostos”, afirma Priscila Almeida, vice-presidente da associação e empreendedora fundadora da Amazônia Smart Food.
“Precisamos ter visibilidade e apoio para nos fortalecer dentro desse ecossistema. A nossa presença nas COPs é um marco muito importante, assim como também a nossa presença no Conselho Consultivo do Selo Amazônico, que está sendo desenvolvido pelo governo federal”, complementa Almeida.
Amanda Santana, da Tucum, integra a Assobio juntamente com outros empreendedores de impacto que se conheceram em jornadas de aceleração, eventos e em espaços como o Fiinsa. Mobilizados por diferentes iniciativas ao longo de suas jornadas empreendedoras, percebem as forças de cada um e a possibilidade de construção em rede.
“Acho que há muito espaço para colaboração, e o maior exemplo disso é a Assobio, que tem várias empresas-irmãs como a Manioca, que trabalha com alimentos, a Da Tribu, que trabalha com acessórios, a Moma com cosméticos e a Mazô Maná. Juntos, conseguimos pautar projetos e necessidades que são comuns a todos, como a logística, por exemplo. Conseguimos uma parceria com a Azul para retirar mercadoria da Amazônia por um preço muito competitivo. Também temos desconto para ir para os territórios. Juntar as empresas para pleitear junto essas necessidades e encarar desafios juntos facilita muito a nossa vida”, conta Santana.
Trata-se de um movimento que o ecossistema de impacto da Amazônia e todos os seus atores nos últimos anos contribuíram muito para catapultar.
*Jornalista e antropóloga, acompanha o desenvolvimento do ecossistema de impacto na Amazônia desde 2018. Foi consultora de comunicação da Amaz Aceleradora de Impacto desde sua criação, em 2021, até o início de 2024.