Investimentos sociais de empresas se voltam para o desenvolvimento territorial, com o desafio de operar pela lógica do bem comum – e não só do privado
Há uma transformação em curso na forma como os investimentos sociais das empresas estão sendo executados. Se há menos de duas décadas a maioria das empresas no Brasil mantinha seus investimentos sociais desvinculados dos negócios, independentes das políticas públicas e desconectados de agendas globais de desenvolvimento, hoje esse cenário está mudando. Com o passar dos anos, a cultura de ações filantrópicas foi sendo substituída por uma preocupação crescente das companhias em buscar novos significados para seus investimentos no campo social – e isso inclui estratégias de atuação social vinculadas ao core business das empresas e, ao mesmo tempo, ao território onde estão presentes.
O alinhamento aos negócios se reflete na concentração dos investimentos sociais nas comunidades no entorno dos empreendimentos, com o objetivo de promover o desenvolvimento do território, além de mitigar as externalidades geradas pelas atividades econômicas. Esse movimento já aparece nas estatísticas: as duas principais pesquisas nacionais sobre Investimento Social Privado (ISP) apontam para a tendência de intensificar a dimensão territorial.
O Benchmarking do Investimento Social Corporativo (Bisc), levantamento anual realizado desde 2008 pela ONG Comunitas, mostra que 75% das organizações realizaram projetos sociais corporativos voltados ao desenvolvimento territorial em 2016 – em 2011, eram 45%. Já o Grupo de Institutos, Fundações e Empresas (Gife) apurou que 48% dos institutos e fundações empresariais investem em desenvolvimento local, comunitário ou de base, o que configura a área como a quinta na lista de temas prioritários, atrás de educação, formação de jovens, cultura e artes, e apoio a organizações da sociedade civil.
O ISP com foco em território também foi tema de estudo do mais recente ciclo da Iniciativa Empresarial Desenvolvimento Local e Grandes Empreendimentos (ID Local) do Centro de Estudos em Sustentabilidade da Fundação Getulio Vargas (FGVces), que tem o propósito de articular o setor empresarial para reflexão, troca de experiências e construção de diretrizes para o desenvolvimento local, especialmente em regiões carentes do Brasil.
Ao longo de 2017, foram realizados encontros com um universo de 22 empresas participantes da ID Local, que resultou em um conjunto de princípios e diretrizes para o chamado ISP Territorial (ISP-T). Eles abrangem desde estratégias de entrada e de saída – ou seja, como iniciar um processo de ISP-T, geralmente começando por um diagnóstico amplo socioterritorial, e como concluir o ciclo de investimento sem desamparar a localidade –, desenvolvimento de capacidades locais, monitoramento e mensuração de impactos.
De acordo com Lívia Pagotto, pesquisadora da ID Local, o investimento social foi tornando-se mais sofisticado e estratégico por dois principais motivos: a intenção das empresas de alinhar suas ações sociais aos negócios e também pela necessidade de aproximação com as políticas públicas. “O ISP territorial não deveria ser considerado um tipo de investimento social, mas sim uma abordagem. Usa das capacidades e do protagonismo local”, explica. Outra característica do ISP-T é ser determinado pelas vocações do lugar, que são sempre únicas, e esse contexto particular torna a estratégia difícil de ser repetida. Não há uma “receita de bolo” para o ISP-T.
A Fundação Bunge, que atua com programas de desenvolvimento territorial no Pará e Tocantins, sentiu isso na pele. Um dos principais problemas enfrentados pela Bunge, que tem operações de logística nas cidades paraenses de Barcarena e Itaituba, é a exploração sexual de crianças e adolescentes. Quando a empresa se deparou com a questão, não havia uma rede de enfrentamento do problema e de assistência às vítimas nessas localidades – nem mesmo a percepção, por parte da população, de que o abuso era uma violação de direitos. O trabalho teve de começar da base, pois apenas uma campanha educativa voltada aos colaboradores não resolveria a questão, explica Claudia Calais, diretora-executiva da Fundação Bunge.
A ação foi dividida em três frentes: dentro da empresa, com sensibilização dos caminhoneiros e aquaviários, que são os profissionais que dirigem embarcações nas hidrovias que transportam carga na região. Esses atores foram escolhidos como público-alvo em razão do envolvimento de caminhoneiros com a prostituição infantil e para evitar que o mesmo ocorresse entre os operadores das embarcações; mudanças nos contratos com os fornecedores, com cláusulas exigindo que monitorassem a questão; e apoio à política pública, com um fluxo de trabalho definido com 80 entidades ao longo de três anos, com criação de um banco de dados, aplicativo para denúncias e apoio às instituições para o acolhimento das crianças. As ações contaram com a parceria da Childhood Brasil, que tem um programa voltado ao combate da prostituição infantil nas estradas. “A empresa pode ajudar a sensibilizar, mas não tem o poder de fiscalização. O nosso papel foi fortalecer essa rede”, afirma Calais.
No Tocantins, os desafios da Bunge eram outros. No município de Pedro Afonso, onde a empresa construiu uma usina de açúcar, álcool e produção de energia elétrica, faltava qualificação dos trabalhadores locais, especialmente jovens – mais de 60% dos jovens até 25 anos tinham, no máximo, quatro anos de estudo. A usina começou a operar em 2011 com 60% da mão de obra vinda de outros estados, mas investiu, por meio da Fundação, em um programa de qualificação em parceria com a prefeitura. Em dois anos, reverteu o quadro e passou a contar com 63% de mão de obra local.
O mesmo ocorreu com os fornecedores: quando a Bunge chegou ao Tocantins, tinha menos de 1% de fornecedores locais. Dois anos depois, após um trabalho desenvolvido em parceria com o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), 27% dos fornecedores passaram a ser da região, que experimentou mudanças na dinâmica econômica local – mais postos de trabalho, aumento da arrecadação e diversificação do comércio. “Todo projeto de desenvolvimento territorial começa com a licença social para operar, mas com o passar dos anos migramos para a geração de valor compartilhado. A empresa ganha com isso: quanto mais desenvolvido um território, melhor para a companhia”, diz Calais.
Sintonia
Os números do Bisc 2017 reforçam a aproximação das empresas com as principais forças operantes nos territórios. Em 2016, 81% das empresas afirmaram assegurar canais de diálogo com as comunidades (eram 64% em 2011); 69% participam da formulação e/ou execução de políticas públicas locais (eram 55% em 2011) e 69% estão articulando com outras companhias para promover o desenvolvimento do território (59% em 2011). “Quando a empresa aproxima o investimento social dos negócios, o entorno fica mais importante. Uma das motivações é deixar um legado onde elas estão”, afirma a socióloga Anna Peliano, coordenadora do Bisc.
Ela ressalta, contudo, que a preferência por estratégias de desenvolvimento territorial não exclui o investimento social nas causas que as empresas e seus braços sociais julgam importantes. Tanto é que, segundo dados do levantamento, a educação ainda é o setor que recebe mais investimentos das companhias: dos R$i2,4 bilhões destinados a projetos sociais no Brasil em 2016, 41% foram para educação.
“Não houve uma ruptura com as causas, e sim um caminhar na direção de estratégias com foco nos territórios”, diz Peliano. Além disso, as empresas estão mais expostas às demandas da sociedade e hoje são cobradas em múltiplos canais, como as mídias sociais – então, é natural que elas se aproximem de temas que são caros às comunidades.
Ao desenvolver suas estratégias de atuação social, o Instituto Lina Galvani, braço social da Galvani, empresa de mineração e produção de fertilizantes, deparou-se com a necessidade de se entrosar com a realidade das comunidades no entorno das fábricas do grupo. Após realizar um diagnóstico no povoado de Angico dos Dias, na cidade de Campo Alegre de Lourdes (BA), onde a empresa tem atividades de mineração, o Instituto levantou algumas das principais demandas dos cerca de 1 mil moradores, que incluíam preocupações com o acesso à água e com a mitigação dos impactos da atividade mineradora, especialmente a poeira.
Localizado no Polígono das Secas e com baixo IDH, o povoado também sofria com a falta de mobilização dos moradores na busca por melhorias para a região. O Instituto montou uma rede de articulação social envolvendo os moradores, apoiando a comunidade na luta por melhorias em educação, acesso a cisternas e fomento à economia de base, por meio da criação de arranjos produtivos, com hortas comunitárias e venda dos produtos, aumentando a renda dos moradores.
Estratégia semelhante foi desenhada para Serra do Salitre (MG), município do Triângulo Mineiro com economia baseada na agricultura e que recebeu um empreendimento mineral e industrial da Galvani em 2016. O diagnóstico apontou para uma grande expectativa com a chegada da empresa ao município, preocupações com a falta de perspectivas para a juventude (estariam capacitados para trabalhar na empresa?) e verificou-se também um potencial turístico ainda pouco explorado na região, com cachoeiras e cenários rurais.
O trabalho na região teve como ponto central, então, o aporte financeiro a projetos que fomentassem o protagonismo dos jovens e o turismo local, por meio da realização de um edital, explica Ricardo Mastroti, diretor executivo do Instituto Lina Galvani. “O investimento social evoluiu de um patamar em que não basta o assistencialismo, é preciso pensar em soluções sintonizadas com as demandas contemporâneas, como o estímulo ao empreendedorismo, aos negócios sociais, às articulações que trazem autonomia para as comunidades”, diz.
Métricas de avaliação
As evidências apontam que o ISP-T está se consolidando no Brasil e, não obstante a melhora na qualidade dos projetos, os desafios ainda são grandes. Para 73% das empresas, a maior dificuldade é mensurar os resultados dos projetos de desenvolvimento territorial, segundo o Bisc 2017. Algumas organizações têm investido pesado em métricas de avaliação. É o caso do Instituto Votorantim, que apoia projetos nas áreas de educação, gestão pública, negócios inclusivos e infância e adolescência, e entre 2010 e 2012 passou por uma revisão estratégica, com o objetivo de aproximar os objetivos do negócio e as demandas sociais identificadas nos territórios onde as empresas do grupo Votorantim operam – não só no Brasil, mas também no Peru, na Colômbia e na Argentina.
“Temos investido muito no processo de monitoramento das metas e na elaboração de ferramentas e métricas que capturem esses resultados”, diz Ana Bonimani, gerente de gestão de programas do Instituto Votorantim. Segundo ela, o instituto acompanhou mais de 150 projetos, que tiveram suas metas alcançadas em 95%. E não se trata apenas de objetivos corporativos. “Estamos falando de metas relacionadas ao fortalecimento do ambiente de negócios nos municípios, melhoria da economia local, avanço nos indicadores de gestão na educação e no poder público em geral”, afirma. Em 2017, os investimentos sociais da Votorantim somaram cerca de R$ 127 milhões em 144 municípios dos quatro países.
Outro desafio para o amadurecimento do ISP-T é conseguir separar o propósito de gerar o bem comum, relacionado à atuação social, das demandas inerentes ao negócio, como a busca por certificações socioambientais ou mesmo o cumprimento de Termo de Ajustamento de Conduta. Há casos em que as empresas traçam uma estratégia de desenvolvimento local para cumprir alguns requisitos exigidos por certificações como ISO 14000 e 9000, que nas últimas revisões aumentaram as exigências em relação a mapear as expectativas das comunidades do entorno. Também é o caso do selo florestal FSC, que traz cada vez mais implicações sociais.
“Todos esses atores forçam as empresas a atentar para seus temas de materialidade, por isso as estratégias sociais acabando encontrando os negócios”, diz Vinicius Precioso, sócio da consultoria Avesso Sustentabilidade, que já realizou trabalhos de desenvolvimento territorial para empresas como Suzano e Fiat. Lívia Pagotto, do FGVces, alerta para a possível captura do sentido público do ISP-T pela lógica privada. “O investimento social não pode se confundir com uma área de negócios da empresa, senão perde credibilidade. Esse é um ponto ao qual as empresas precisam estar alertas”, conclui.
BOX
“Nas metrópoles, políticas públicas não chegam de forma igual a todas as regiões”
O Investimento Social Privado voltado aos territórios é uma realidade que se consolida no interior do Brasil, especialmente no entorno de grandes empresas e empreendimentos de infraestrutura. Mas ainda não é tão disseminado nas metrópoles e por fundações e institutos comandados por famílias. Para que o conceito se expanda, será preciso ampliar o olhar do investidor social, na avaliação de Paula Galeano, superintendente da Fundação Tide Setubal.
Há doze anos atuando no extremo da Zona Leste de São Paulo, em São Miguel Paulista, a fundação – ligada à tradicional família fundadora do banco Itaú –, comandada pela socióloga Maria Alice (Neca) Setubal, propõe-se a levar o debate sobre territórios para o Investimento Social Privado.
A fundação começou seu trabalho no bairro como uma organização tradicional do Terceiro Setor: aproximou-se de lideranças locais, ajudou a trazer equipamentos públicos e realizou atividades culturais e esportivas. Depois, voltou-se para uma maior oferta de serviços à população, intervenções em escolas públicas e formação de professores com metodologias próprias. A partir de 2011, passou a atuar de forma mais intensa na articulação e na ampliação de parcerias com agentes locais, instituições privadas e poder público.
Mesmo seguindo por essa trilha até hoje, a organização ampliou o foco e hoje trabalha com o combate às desigualdades sociais nas grandes metrópoles com base no olhar das periferias. Para Galeano, o território importa porque as políticas públicas não chegam de forma igualitária a todas as regiões. No caso dos grandes centros urbanos, são as periferias que mais sofrem com o descaso. “Os serviços prestados na periferia são de pior qualidade – desde o professor que tem mais alunos por classe em comparação a um bairro de classe média, até o posto de saúde que têm mais atendimentos por médico”, diz a superintendente. “O poder público tem de olhar para os territórios de forma diferenciada, para que as políticas sejam universais”.
Por isso, explica, a Fundação Tide Setubal opera em duas frentes: em políticas urbanas, utilizando o orçamento público como uma ferramenta de participação social; e na busca por novos territórios para atuar, com a identificação de projetos que tenham uma visão mais contemporânea e menos estigmatizada das periferias. Para isso iniciou um mapeamento em cinco cidades, em parceria com o Instituto Update, que deve ficar pronto no segundo semestre de 2018. O objetivo é sintonizar a fundação com o que as periferias pensam, as inovações que surgem delas e as novas lideranças em destaque. (AV)