Qual o papel da transparência na construção de uma economia não predatória do mundo? Especialistas debatem se é preponderante ou apenas coadjuvante
Por Magali Cabral
Ser transparente, grosso modo, é deixar entrar luz e mostrar o que está atrás. Dependendo do contexto, faz-se isso de maneiras distintas. A transparência nos poderes públicos é pautada por legislações, como a Lei de Acesso à Informação (LAI). Nas empresas, vem mais comumente em formato de relatórios financeiros ou socioambientais, onde em tese devem constar os benfeitos e as vulnerabilidades do negócio, mas também nos diversos canais de relacionamento, como o Serviço de Atendimento ao Consumidor.
[Lei Federal nº 12.527, de 2011, regulamentada em 2012]
Na internet, está presente, por exemplo, nos chamados softwares livres – livres porque seus códigos ficam abertos a quem quiser aprimorá-los – e, eventualmente, nos acessos ao Big Data, que serão facilitados pela Inteligência Artificial. A matéria-prima de todas essas formas de transparência é a informação. Produz-se hoje uma quantidade incalculável delas, o que leva a um novo questionamento: em que medida tanto dado, por si só, torna a humanidade mais sábia e capaz de melhorar a qualidade de vida na biosfera?
[Conjunto de dados produzidos no ambiente virtual que cresce exponencialmente. O desafio está em capturar, limpar, organizar e manipular dados específicos]
Além de ocorrer em vários meios, o exercício da transparência também se dá em gradações. Nos governos talvez seja onde a transparência mais se aproxime de uma condição protagonista pelo impacto que alcança. “A transparência é um elemento sem o qual uma democracia não se consolida”, resume a gestora pública Laila Bellix, fundadora do Instituto Governo Aberto e integrante da rede de Fellows em Governo Aberto da Organização dos Estados Americanos (OEA). O filósofo e político italiano Norberto Bobbio deixou em sua obra o ensinamento de que governos “escondidos” não podem ser controlados. E o desfecho mais trágico quando não há transparência nas tomadas de decisão é o fim de condições básicas de cidadania, como o direito ao voto.
Os alicerces da transparência no âmbito governamental brasileiro têm amparo na Constituição Federal, que estabelece em seu artigo 5º, parágrafo XXXIII, que todo ser humano tem direito de acessar informação de interesse coletivo ou particular. Mas todo cuidado é pouco. Para Bellix, o fato de a transparência, não raramente, expor as fragilidades dos governos pode gerar reações inesperadas. Há grupos que se aproveitam desses momentos para defender o “fechamento” do governo como forma de preservar as instituições. “Quando isso acontece, a sociedade passa a ter dois problemas em vez de um só”, adverte ela.
O risco de um empobrecimento democrático é inversamente proporcional ao grau de maturidade e de cidadania de uma população. Quanto maior um, menor o outro. Segundo a gestora pública, as informações produzidas por modelos de governo transparente podem ser inúteis, e até mesmo nocivas, se não se desdobrarem em reflexão e conhecimento. “Acredito na transparência como parte da solução desde que acompanhada de formação para o engajamento e a cidadania”. Em outras palavras, para Bellix, precisamos saber o que fazer com as informações disponíveis de modo que elas não se voltem contra nós mesmos.
Quando a transparência encontra usuários de dados com formação e engajamento, o céu é o limite para o que se pode produzir de prestação de serviços à sociedade. É possível criar todo um ecossistema de empreendedorismo. Um exemplo: em 2013, a prefeitura de São Paulo abriu os dados dos GPS dos ônibus urbanos da cidade. De posse dessas informações, uma startup desenvolveu o aplicativo Cadê o Ônibus?, por meio do qual os mais de meio milhão de usuários de ônibus que já baixaram o app em seus celulares conseguem saber a localização geográfica dos veículos em tempo real, entre vários outros serviços, como os pontos de ônibus mais próximos, o itinerário das linhas e o horário de partida dos coletivos.
Outro caso é o do aplicativo e site Prato Aberto. O cardápio da merenda escolar da rede pública, publicado semanalmente no Diário Oficial da Cidade de São Paulo, era pouco acessível às famílias. O app sistematizou as informações divulgadas pelo governo a fim de que o usuário pudesse encontrar, bairro a bairro, todas as creches ou escolas infantis, clicar em uma delas e descobrir o cardápio do dia. Desse modo, além de saberem o que seus filhos comeram, os pais passaram a poder denunciar às autoridades caso eles comam salsicha em dia de frango. “Além de permitir que os pais acompanhem a alimentação dos filhos, essa participação contribui também para que o poder público tenha mais controle sobre o cumprimento do contrato de compra de alimentos que estabeleceu com alguma empresa”.
PROPÓSITO É O QUE INTERESSA
Nas esferas empresariais, o valor da transparência também guarda uma relação de intencionalidade com aquilo que se quer entregar. “Eu gostaria de poder dizer que transparência [na gestão empresarial] é muito importante. Mas, para mim, se o propósito de uma empresa não estiver alinhado com o que realmente crie valor para a sociedade, que preserve e restaure ecossistemas, a transparência é um desperdício de tempo. Fico triste ao dizer isso, mas é como sinto.” As aspas são da canadense Lorraine Smith, escritora, pesquisadora e consultora de sustentabilidade, transparência e engajamento em grandes empresas.
[Trabalhou com o escritor e consultor britânico John Elkington, fundador da SustainAbility e criador do termo triple bottom line, ou tripé da sustentabilidade]
Bem familiarizada com o Brasil, ela explica o porquê do desalento: empresas de capital aberto invariavelmente têm como missão otimizar o capital e pagar os acionistas, o que costuma ser feito de maneira bastante transparente. “A própria Vale – diz Smith – é uma empresa premiada por sua transparência e continua mantendo um score alto no ranking ASG [Ambiental, Social e Governança], apesar de em seu histórico recente haver 22 pessoas ainda desaparecidas sob lama que desceu [da mina Córrego do Feijão em Brumadinho, Minas Gerais]”.
A consultora destaca ainda que o valor das ações da Vale está bem próximo da cotação anterior à tragédia e, portanto, em conformidade com o seu propósito de ganhar e distribuir dinheiro aos acionistas.
Claro que há exceções no mundo corporativo. Há momentos em que uma postura verdadeiramente transparente pode tirar a empresa de um apuro. Lorraine Smith elogia o comportamento proativo do CEO da Suzano Papel e Celulose, Walter Schalka, que aproveitou a sua participação em um evento internacional para fazer um chamamento em defesa da Amazônia, tão logo os focos de incêndios começaram, antes mesmo que as nuvens infladas de fumaça atingissem São Paulo fazendo o dia virar noite. Por ser uma das maiores empresas de papel e celulose do mundo, dona de 2,2 milhões de hectares de terra, entre áreas de cultivo de agroflorestas e áreas de preservação, o alarme do risco de reputação soou.
Segundo Smith, diante de uma comoção internacional com as queimadas na Amazônia, a chance de acreditarem que uma empresa de papel e celulose estaria queimando as florestas (como havia sugerido o próprio presidente da República) não era desprezível. Porém, o fato de a Suzano figurar entre as empresas mais transparentes do Brasil deu ao CEO tranquilidade para se colocar à frente em uma conversa sensível. Mais de um terço das terras da Suzano é coberto por florestas nativas e basta uma rápida pesquisa nos relatórios socioambientais e nas notícias divulgadas pela imprensa para conhecer suas ações em conservação.
“É dessa forma que a transparência pode ajudar aos que fazem a lição de casa”, explica a consultora canadense. “Quero mostrar que sem propósito e sem integridade, a transparência perde valor. Prova disso são os baixos índices de leitura dos relatórios socioambientais. São muito bem feitos, muito bonitos, há muito esforço de bons profissionais ali, mas ficam guardados nas ‘gavetas’”.
Em um artigo publicado em seu blog, Lorraine Smith cria uma analogia para explicar por que acredita que a exibição de dados pura e simplesmente não quer dizer muita coisa. Em síntese, seu texto pressupõe uma mãe contando ao filho as “boas novas”: um levantamento comparando o número de vezes que o seu marido a espancara no ano anterior em relação ao ano corrente mostrava uma redução de 10%. E a mãe, orgulhosa, diz ainda: e seu pai se comprometeu a diminuir os espancamentos ainda mais no próximo ano.
Sabemos todos que apenas a redução dos espancamentos não é aceitável no caso de abuso doméstico e, para Smith, o uso de dados ASG serve apenas para mostrar que os “espancamentos” à mãe Terra diminuem em vez de acabarem. “Passei a última década e meia contribuindo para o sistema ASG e esperando que fosse útil. Mas na verdade estava parabenizando as empresas pela liderança na redução dos ‘espancamentos’”, conclui o artigo.
Em suas visitas a São Paulo, Lorraine Smith conheceu o Instituto Feira Livre, no centro da cidade, uma loja de venda de alimentos orgânicos que exibe nas paredes do estabelecimento toda a sua contabilidade com o objetivo de que os consumidores conheçam os custos necessários para se manter aquela operação (mais sobre o Instituto Feira Livre nesta reportagem). Para Smith, ali há um ótimo exemplo de negócio com propósito e transparência. O propósito é estabelecer relações comerciais justas com todos os atores da cadeia produtiva de orgânicos, conectando quem produz a quem consome. A transparência é o meio que permite essa conexão.
VERTICAL E HORIZONTAL
Quando a transparência é parte do core business (atividade principal) de uma empresa, há sempre novos horizontes a serem abertos, diz o publicitário e filósofo Fabrício Muriana, um dos 14 fundadores do Instituto Feira Livre, todos patrões e empregados ao mesmo tempo.
“Por enquanto, foi possível abrirmos apenas um horizonte de transparência, o dos custos. Mas existem muitas outras camadas na cadeia privada de produtos orgânicos, como o local onde trabalham os produtores, a política pública que está por trás deles, o processo de logística para o alimento chegar até o centro de São Paulo. O que oferecemos hoje em termos de transparência não é um lugar acabado. É um início. A partir daqui a gente vai tentar abrir novos horizontes”, explica. “Um próximo passo seria conseguir tornar pública, por exemplo, a forma como são feitas as certificações dos produtos orgânicos vendidos no Feira Livre.”
Segundo ele, a cadeia de valor dos orgânicos ainda precisa abrir muitos dados. As certificadoras garantem apenas a “pureza” dos alimentos. E quanto à qualidade das relações de trabalho dos fabricantes de produtos certificados? Haveria trabalho análogo à escravidão na produção de orgânicos? Pouco se sabe sobre isso. “Nesse campo, eu gosto muito da tecnologia blockchain.”
Mudando da perspectiva horizontal para a vertical, Fabrício Muriana conta que, assim como nas teorias em geral, no estudo da transparência também existe uma diferença nos resultados quando as definições partem de dados que vêm de cima para baixo e quando vêm de baixo para cima. Dependendo da opção que a empresa fizer, ela poderá gerar relatórios bem diferentes. Assumir uma transparência de baixo para cima (bottom up), ou seja, partir exatamente daquilo que as pessoas realmente querem saber, e não daquilo que a empresa quer compartilhar (top down), talvez fosse uma solução para “desengavetar” os relatórios das empresas.
PRESTANDO CONTAS?
Um retrato da pouca transparência por parte das grandes empresas em temas sensíveis como sustentabilidade, diversidade e proteção dos trabalhadores está registrado em uma pesquisa realizada no ano passado pelo então Ministério dos Direitos Humanos (hoje denominado Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos) em parceria com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) .
A pesquisadora e professora da Universidade Presbiteriana Mackenzie, Ana Cláudia Ruy Cardia, atuou como consultora e fez um relato na Conferência Ethos 2019, realizada em setembro, em São Paulo, sobre o baixo interesse das empresas em divulgar seus dados. “Poucas empresas responderam aos ofícios encaminhados, o que mostra uma dificuldade em transparência até mesmo diante de uma consultoria das Nações Unidas para um órgão governamental”, declarou.
Dos 140 ofícios enviados solicitando informações, apenas 41 retornaram. Desses respondentes, boa parte trazia conteúdo copiado de seus relatórios de sustentabilidade, o que não chegaria a ser um problema, se os relatórios retratassem de fato a realidade, sem omitir suas vulnerabilidades. “Eu não estou aqui para demonizar os relatórios” – ponderou a pesquisadora. “Ao contrário, gostaria de discutir maneiras para que se incluíssem nesses relatórios a realidade que vemos na atividade empresarial”.
Na opinião dela, os relatórios socioambientais são um bom instrumento de transparência – estão disponíveis ao público e trazem uma linguagem acessível. O que falta é mostrar toda a realidade. Para Cardia, a responsabilização de empresas que publiquem determinadas práticas que não condizem com a realidade pode ser um caminho para que as empresas passem a relatar, além das benfeitorias, os riscos e os revezes que oferecem à sociedade.
De maneira geral, há consenso entre os atores que orbitam a agenda ASG de que o grau de transparência precisa de fato melhorar no âmbito empresarial. A superintendente geral do Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC), Heloisa Bedicks, está entre eles. Prestação de contas à sociedade não pode se restringir ao desempenho econômico-financeiro. Tem de abordar os aspectos negativos e ser muito célere em todos os momentos.
“Uma pesquisa bem antiga da [consultoria] McKinsey mostra que, quando uma empresa adota práticas de governança, incluindo full transparency [transparência total], aumenta a confiança dos investidores. Essa segurança diminui o risco da empresa na hora de uma análise de avaliação [se um determinado fundo investirá nela ou não]. Ou seja, a transparência, mesmo quando expõe uma vulnerabilidade, cria valor”, diz Bedicks.
Exemplo disso é o dos tênis da marca francesa Vert, fabricados no Brasil e comercializados na Europa, cuja cadeia de produção inclui comércio justo com seringueiros da Amazônia e com cooperativas de produtores de algodão orgânico do Nordeste brasileiro. O relato sobre a sustentabilidade dos fabricantes dos tênis que calçam os pés de muitas celebridades, como os da duquesa de Sussex, Meghan Markle, casada com o príncipe Harry, do Reino Unido, começa exatamente com uma exposição de suas fraquezas e incapacidades (mais nesta reportagem).
“Quanto mais transparente sobre seus desafios, mais madura a empresa demonstra ser. Não se trata de quantidade, mas da qualidade da informação e o quanto ela contribui para a decisão dos agentes econômicos”, avalia a diretora adjunta do Instituto Ethos, Ana Lúcia Custódio. No entanto, também para ela, ainda há muito espaço para avançar no disclosure (divulgação) de informações que sejam de interesse das partes interessadas, que representem os reais desafios de uma companhia.
A impressão do especialista em sustentabilidade empresarial, sócio da ABC Associados, Aron Belinky, é a de que a fase dos relatos socioambientais chegará ao fim nos próximos anos para dar início a um modelo de transparência factual, que será proporcionada pelas novas tecnologias da informação. Os avanços em Big Data, Inteligência Artificial e acesso à base de dados permitirão às pessoas acessarem informações primárias das empresas, antes que sejam trabalhadas, editadas e filtradas.
“Hoje, quando se fala em relatos, pressupomos que a empresa vai coletar e tratar as informações para, de um lado, torná-los mais sintéticos e palatáveis; de outro, ela pode passar a informação por uma filtragem que diminuirá qualidade”, afirma Belinky. “Quanto à informação disponibilizada no Big Data, teremos mais trabalho para fazer o acesso e a interpretação, mas seguramente será uma informação mais isenta.”
Diante da urgência climática e da já extensa linha do tempo da pauta da responsabilidade social corporativa (saiba mais em box desta reportagem), para Belinky, a transparência empresarial já deveria ser um dado e não ainda uma missão. “A esta altura, nós deveríamos estar mais preocupados em avaliar os impactos tangíveis que as atividades das empresas estão provocando no mundo. Isso não muda o fato de que a transparência é urgente e essencial, mas acho espantoso que essa discussão ainda seja necessária.”