A opção das Nações Unidas de transferir a Conferência sobre Mudança do Clima deste ano de Santiago para Madri foi a mais conveniente se considerarmos a agenda de negociação e seus prazos. Mas para a sociedade civil, especialmente na América Latina, não poderia ser pior
Por Bruno Toledo
Foto: Adri Tormo/ Unsplash
Há quase um mês, Santiago do Chile vem sendo agitada por manifestações populares, com cidadãos insatisfeitos com o custo de vida elevado, a falta de apoio público para setores como saúde e educação (ambos privatizados no país durante a ditadura de Augusto Pinochet) e a desconexão entre a população e seus representantes no Congresso Nacional e no governo de Sebastián Piñera. Aliás, essa desconexão fica ainda mais evidente com a violência que vem marcando a reação das autoridades policiais em todo o país, que resultou em mais de 20 mortos e em diversas acusações de prisão arbitrária e tortura.
Tudo isso aconteceu faltando meras semanas para que Santiago recebesse dois eventos de dimensões internacionais gigantescas para a região. Primeiro, a cúpula da Cooperação Econômica Ásia-Pacífico (Apec), que aconteceria em novembro e que seria o palco esperado da assinatura de um acordo comercial entre os Estados Unidos de Donald Trump e a China de Xi Jinping, em “guerra comercial” desde 2017. E, segundo, a 25ª Conferência das Partes (COP 25) da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UNFCCC), prevista para dezembro.
A recepção desses eventos fazia parte de uma estratégia do presidente Piñera para se posicionar como uma liderança internacional na América do Sul em um momento no qual outros chefes de governo da região enfrentam problemas domésticos. No vácuo da crise de liderança em países vizinhos, como Argentina, Brasil, Colômbia, Peru e Venezuela, o Chile e sua história de “sucesso econômico” poderia servir de contraponto e pavimentar um papel mais relevante para o país no plano externo.
Sai Santiago, entra Madri
No entanto, a aposta não poderia ter sido mais equivocada. O fracasso político foi tão retumbante que Piñera não teve outra alternativa a não ser suspender, na quarta-feira passada (30/10), a realização dos dois eventos em Santiago. A justificativa oficial foi que, ao desistir da cúpula da Apec e da COP 25, o governo chileno poderia se dedicar integralmente ao diálogo com a sociedade e à promoção de reformas sociais para aplacar a frustração de seus cidadãos. Porém, para muitos chilenos, o verdadeiro motivo é que governo Piñera não quer lidar com eventos que teriam o potencial de acentuar ainda mais as tensões sociais no país, especialmente no caso da Conferência do Clima, que reuniria milhares de representantes de organizações e movimentos sociais.
O Secretariado da UNFCCC foi rápido e, menos de 48 horas após o anúncio dramático das autoridades chilenas, confirmou que a COP 25 seria realizada nas mesmas datas originais (de 2 a 13 de dezembro) na cidade de Madri, na Espanha. Essa opção foi costurada pelo próprio Piñera, que conversou com o presidente do governo espanhol, Pedro Sánchez, e o convenceu a assumir a realização da Conferência do Clima em sua capital com pouco mais de um mês de antecedência para se preparar – algo insano quando pensamos que um evento dessa magnitude, que recebe em torno de 20 mil pessoas por duas semanas, leva quase um ano para ser organizado.
A escolha por Madri era a mais simples do ponto de vista logístico e burocrático para a UNFCCC. Com o compromisso do governo espanhol em viabilizar o evento dentro do prazo enxuto de um mês, o Secretariado da Convenção não foi forçado a fazer uma costura financeira delicada com o governo da Alemanha para realizar a COP 25 na cidade de Bonn, sede da UNFCCC, sem falar na organização logística do encontro, que ficaria a cargo das Nações Unidas. Além disso, a realização da COP 25 ainda em 2019 permite que os prazos originais de finalização de muitos tópicos na agenda de negociação para implementação do Acordo de Paris, como os instrumentos econômicos de mercado (artigo 6), sejam mantidos, evitando um verdadeiro pesadelo diplomático.
Bom negócio para negociadores, péssimo para observadores latino-americanos
Entretanto, se a opção madrilenha pode parecer a mais próxima do ideal para a UNFCCC, ela não poderia ter sido pior para a sociedade civil da América Latina, que passou quase um ano se preparando para participar da COP 25 em solo continental, cinco anos depois da última rodada de negociação que aconteceu por aqui, em Lima em 2014 (COP 20).
Mais do que perder a COP latino-americana, para muitas organizações, o drama é perder os poucos recursos que elas possuíam para participar do encontro de Santiago e não ter qualquer perspectiva de recuperá-los a tempo para viabilizar sua ida para Madri em menos de um mês.
Isso é grave pois empobrece o nível de discussão dentro das negociações sobre o Acordo de Paris. A sociedade civil latino-americana em geral tem poucas oportunidades para participar de Conferências do Clima fora do continente por conta dos custos de viagem. Sempre que a COP vem para a América Latina, ela se torna a grande chance para que muitos grupos e organizações menores possam participar do encontro e contribuir, seja através de estudos e informações técnicas, articulação com contrapartes de outros continentes, ou mobilização local durante a Conferência.
O cancelamento da COP 25 na América Latina é extremamente danoso para essas organizações, que novamente terão de assistir a tudo de longe, sem envolvimento direto, aprofundando ainda mais o abismo de representação que a sociedade civil possui nas negociações internacionais sobre mudança do clima. Hoje, organizações e movimentos sociais de países mais ricos conseguem participar das negociações independentemente do local em que elas acontecem, pois geralmente possuem mais recursos para tal. Não é o caso da maioria esmagadora da sociedade civil latino-americana, marcadamente mais pobre, que só consegue se envolver realmente quando as conferências acontecem por aqui mesmo.
E agora, Patricia Espinosa?
Um dos problemas mais graves no processo decisório internacional em geral é o que muitos especialistas chamam de deficit democrático. Ou seja, para os cidadãos em geral, as decisões tomadas em âmbito internacional carecem de legitimidade, pois foram produtos de interesses específicos que nem sempre refletem os da população nos respectivos países.
Um caminho para tentar reduzir essa percepção de déficit democrático na política internacional tem sido a incorporação, ainda que sob status de observador, de organizações da sociedade civil fora da alçada formal dos governos nacionais. Essa solução não reduz sozinha o déficit de representação, mas oferece um canal alternativo para representação difusa, que não depende necessariamente da anuência explícita dos Estados.
No caso de negociações ambientais, particularmente em mudança do clima, o déficit democrático se torna ainda mais acentuado, pois muitos governos permanecem politicamente sequestrados por interesses específicos que rejeitam a ciência em torno da questão climática, como são os casos de Estados Unidos, Austrália e, infelizmente, Brasil. Logo, para os cidadãos desses países, desprovidos de representação adequada de seus próprios governos, a sociedade civil se torna o canal último para se fazer presente nessas discussões.
A UNFCCC, na figura de sua secretária-executiva, a mexicana Patricia Espinosa, vem buscando reforçar a presença de atores não governamentais em seus encontros e conferências. O próprio Acordo de Paris reconhece textualmente a relevância da sociedade civil na implementação das ações necessárias para viabilizar seu objetivo de conter o aquecimento global neste século entre 1,5 e 2 graus Celsius com relação aos níveis pré-industriais. No entanto, a decisão de transferir a COP 25 para Madri atinge em cheio a perspectiva de participação da sociedade civil latino-americana em uma Conferência que deveria acontecer por aqui.
Por isso, é fundamental que o Secretariado da UNFCCC busque, agora com o governo espanhol, garantir condições básicas para a participação da sociedade civil latino-americana na COP 25. Se a Conferência acontecer sem a presença de atores sociais da região, a legitimidade do processo de negociação sob a batuta da UNFCCC sofrerá um golpe frontal que ressoará bastante nos próximos anos.
O espírito de rebelião que vem tomando conta de muitos países da América Latina em 2019 se dá em um contexto de frustração social tremenda, no qual as pessoas não conseguem se enxergar nos atores e nas estruturas que as governam. A resposta para muitos dos problemas que levaram a essa rebelião passa também pela busca por soluções para a crise climática. Por isso, não podemos nos contentar com discussões a portas fechadas, feitas por diplomatas e políticos: precisamos de uma participação plural, que dê voz a diferentes atores, perspectivas, interesses e iniciativas.
Sebastián Piñera suspendeu a COP 25 em Santiago para se dedicar às demandas populares dos chilenos. Que Patricia Espinosa faça agora o mesmo com a realização da Conferência em Madri: ouça as pessoas e busque soluções junto com elas.