[Foto: Projeto de floating islands realizado no Parque Burle Marx, em São Paulo, em 2018]
A Climate Ventures, em parceria de conteúdo com a Página22, mensalmente conta ao leitor histórias sobre negócios inovadores relacionados ao desafio climático. A Climate Ventures é uma plataforma de Bons Negócios Pelo Clima que existe para acelerar a economia regenerativa e de baixo carbono e reverter a mudança climática, desenvolvendo startups e conectando-as ao mercado e investidores. A seguir, a história da ÁguaV, que atua na Gestão da Água:
A natureza tem muitas respostas para os problemas que os humanos criam. Assim é com a questão do saneamento. Ao aplicar conceitos das Soluções baseadas na Natureza (SbN), a startup ÁguaV – nome que faz referência à vida e ao verde – foi pioneira no desenvolvimento de uma tecnologia inovadora de infraestrutura verde no Brasil, as chamadas floating islands. São ilhas artificiais flutuantes construídas com o reaproveitamento de materiais descartados, em que são plantadas diversas espécies nativas ornamentais a fim de tratar, purificar e regenerar corpos d’água contaminados por esgoto doméstico ou industrial.
Nesta entrevista à Página22, o diretor da ÁguaV, Leonardo Tannous, mostra que essas ilhas flutuantes trazem benefícios não só para o ambiente, como também para as comunidades próximas, com melhora sensível na qualidade de vida e no microclima local, além de ganhos estéticos e revitalização de espaços públicos que contribuem para a conscientização ambiental.
Leonardo Tannous é engenheiro Ambiental graduado pelo Centro Universitário Senac. Possui Livre Docência em Permacultura, formação como Paisagista pela Escola Municipal de Jardinagem SVMA e Designer para a Sustentabilidade pelo Eccovillage Design Programme – Gaia Education – Umapaz/SVMA. Aplica Soluções Baseadas na Natureza há 10 anos em seus projetos técnicos como engenheiro ambiental e sanitarista, dentro da abordagem de educação para sustentabilidade.
De onde surgiu a ideia de empreender em projetos que regeneram e cuidam da água?
Desde a universidade, um grupo de jovens estudantes dos cursos de Engenharia Ambiental e Sanitária e Gestão Ambiental se reuniu para “reativar” a empresa júnior do Centro Universitário. Começamos a empreender em projetos que integravam a engenharia ambiental e sanitária com os princípios de design da natureza, aplicando na prática aquilo que vínhamos estudando em teoria. Quanto à água, ela é vida e nos nutre, sem água não há vida.
A ÁguaV foi uma das pioneiras no desenvolvimento de floating islands no Brasil. Como elas funcionam?
Inspirada no conceito da biomimética, as floating islands são ilhas artificiais flutuantes construídas a partir de materiais descartados, em que são plantadas diversas espécies de plantas nativas ornamentais a fim de tratar, purificar e vivificar lagos, rios, canais, córregos urbanos, sistemas de drenagem pluviais e saídas de esgoto, com aplicações também na agricultura, indústria e aquacultura. São sistemas modulares ativos para tratamento, purificação e vivificação de corpos d’água que estão contaminados por esgoto doméstico ou industrial.
Como surgiu a ideia de implementar essa tecnologia por aqui?
Tendo uma visão sistêmica, sempre há um jeito de integrar, aprimorar, melhorar ou contemplar algo que ainda não está sendo visto nos designs de projetos e serviços, algo que ainda está por vir. Com a inquietude diante da qualidade das nossas águas, como Rio Pinheiros, Tietê e Tamanduateí – cartões-postais da cidade natal dos sócios-fundadores da ÁguaV – foi que se desenvolveu essa tecnologia adaptada ao contexto do Brasil.
Em relação à matéria-prima utilizada, reaproveitamos diversos tipos de resíduos de cooperativas e indústrias de reciclagem, o que estimula a economia circular, o saneamento e a vivificação dos rios e corpos d’água dos nossos municípios, estados e País.
O custo de produção e instalação das floating islands é alto?
O custo da instalação varia diretamente de acordo com a área superficial da floating island recomendada, associado a estudos iniciais necessários para diagnosticar e cocriar as melhores Soluções Baseadas na Natureza.
Em quanto tempo é possível ver os resultados das floating islands?
Dependendo da intenção da instalação do projeto, os resultados podem ser instantâneos. Em muitos casos, o efeito estético também é imediato, apesar de ter seu ápice geralmente, após de três a seis meses, quando as plantas se estabilizam e começam a se desenvolver.Quanto mais estável e diverso o sistema se torna, maior sua eficiência de atuação no corpo d’água.
A partir de 12 meses, as instalações já tendem a apresentar resultados em termos da melhoria do trecho do corpo d’água ou lagos em diversos parâmetros, não somente físico-químicos, mas também em termos de paisagismo e urbanismo do espaço público. É nítida a melhoria das paisagens e dos microclimas que se criam no entorno deste tipo de sistema regenerativo socioambiental.
Em 2018 vocês trabalharam na implementação das ilhas no lago do Parque Burle Marx, na Zona Sul da cidade de São Paulo, e tiveram bons resultados em curto período. Como se deu essa experiência da revitalização de um espaço público? Qual a situação atual do lago do parque?
A experiência de trabalhar em um espaço público é sempre muito rica pois envolve uma série de agentes distintos. Nesse caso específico, além da Secretaria do Verde e Meio Ambiente, tivemos também interações com a Fundação Aron Birmann, que administra o Parque. Para articular uma ação de uma empresa privada em um espaço público é fundamental existir uma agenda comum que, de alguma forma, beneficie a sociedade.
Quais são os indicadores de sucesso de uma floating island?
Normalmente é utilizado o Índice de Qualidade da Água (IQA) para se determinar a qualidade do corpo hídrico. Trata-se de um índice criado pela Cetesb [Companhia Ambiental do Estado de São Paulo], que conta com diversos parâmetros diferentes, como Ph, cor, turbidez, nutrientes, patógenos e grau de eutrofização, entre outros, que são analisados e ponderados para criar um resultado único e de fácil leitura. No caso do Parque Burle Marx, o IQA do mesmo se encontrava aceitável com 38 pontos, após dois meses da instalação das ilhas o IQA aumentou para 67 entrando na categoria de qualidade “Bom”.
Além dos parâmetros físico-químicos da análise de água, é possível levantar outros melhoramentos. Com o desenvolvimento das ilhas, foi constatada uma melhora visual da qualidade da água. Com mais oxigênio na água, houve aumento da vida aquática e, de acordo com relatos da gestora do parque, alguns pássaros que ela nunca havia visto começaram a aparecer pelo parque.
Existem casos de instalação de floating islands em outros locais do mundo – como no Mercado Paco, em Manila, capital das Filipinas – onde foi possível verificar na comunidade circunvizinha aumento de bem-estar, maior união da comunidade, menos gastos com despesas médicas, aumento da atividade física e até no comércio, além de redução de temperatura de até 2ºC no local de sua instalação.
Quais desafios são encontrados?
Um dos principais desafios são os paradigmas e “pré-conceitos” culturais no Brasil, entre eles a supervalorização de um produto de consumo, enquanto se deprecia o valor de alguns serviços. Por exemplo: compra-se por pequenas fortunas utensílios e bens de consumo, porém sempre se negocia os valores dos pedreiros, dos eletricistas, de instaladores e manutenções, entre outros. Além disso, ainda falta consciência, cuidado e respeito pelos elementos da natureza. Técnicas “amigáveis” ao meio ambiente em geral ficam em último plano dentro das prioridades de investimento em uma nova habitação, tanto para projetistas, quanto para clientes finais.
Nos casos de trabalhos realizados em comunidades isoladas, a viabilidade econômica sempre é um desafio, uma vez que tais projetos dependem de doação de instituições, muitas vezes estrangeiras, ou por arrecadações de pessoas do bairro ou virtuais. Desafios técnicos sempre existem, principalmente nas comunidades isoladas, entretanto, é necessário ter experiências e know-how diversos, para interpretar, “ler a situação” e o problema local, e a partir daí desenvolver soluções viáveis, econômicas e eficientes. Este é o real trabalho do engenheiro: criar soluções.
Na temática do saneamento, quais atores poderiam fazer mais do que fazem? O que sugerem?
A sociedade civil deve se instruir e se conscientizar sobre as causas ambientais, para poder pressionar e cobrar do poder público mudanças, novas legislações e projetos que beneficiem o meio ambiente e a sociedade como um todo. O poder público, por outro lado, pode criar incentivos fiscais para favorecer e estimular a implantação de soluções e tecnologias “amigáveis” da natureza, além de incentivar o consumo de produtos que tenham respeito e cuidado em toda sua cadeia produtiva.
A indústria, por meio de selos e certificações, deve procurar desenvolver cadeias produtivas e realizar análises de ciclos de vida de produtos que tenham cada vez menor pegada hídrica e pegada de carbono, que sejam cada vez mais biodegradáveis e recicláveis, e que tenham respeito pelos animais, não realizando testes, e pelas pessoas, e ofertando produtos a preços acessíveis e justos.
Que tipo de comportamento o cidadão comum pode adotar na direção do uso mais sustentável da água?
Simples atos como identificar pequenas goteiras, pingas-pingas e vazamentos de água pelas torneiras e chuveiros, tomar banho de no máximo 10 minutos. Cuidar com o resíduos que geramos, evitar a impermeabilização excessiva, regenerar da vegetação e permitir a drenagem da água.
Que tipo de impacto positivo no clima suas soluções podem trazer?
Trazendo a visão da ÁguaV para um empreendimento, pode-se captar água da chuva da cobertura para ser utilizada em vasos sanitários, irrigação e limpeza de pátios externos e internos. No piso térreo, é possível reter a água de escoamento através dos Sistemas Urbanos de Drenagem Sustentável, reduzindo a quantidade de água que escoa pelas ruas ou galerias pluviais que desembocariam em rios e córregos. Com isso, o empreendimento garante um solo mais úmido, o que favorece o crescimento de plantas e árvores, reduzindo, assim, o efeito de ilhas de calor nas cidades e contribuindo para o microclima.
De acordo com Agência Nacional das Águas (ANA), o Brasil tem, atualmente, mais de 80 mil quilômetros de rios poluídos. Vocês acreditam que a tecnologia das floating islands possa ser aplicada na despoluição de rios? Há algum trabalho em desenvolvimento nesse sentido?
Com certeza! A tecnologia aplica-se para muitos casos distintos e capazes de contribuir para o bem-estar da população, do turismo, do comércio, e de inovação em projetos no Brasil. Ainda que todo o esgoto fosse segregado e encaminhado devidamente às Estações de Tratamento de Esgoto, imagine todo o volume restante de água que é produzido em uma chuva forte de verão e que invariavelmente acaba desaguando em um corpo d’água mais próximo.
A ÁguaV encoraja e apoia estudantes e pesquisadores para o desenvolvimento de novos estudos e pesquisas referente a tecnologia das floating islands. Por meio de parcerias entre empresas e institutos, realizamos estudos e pesquisas de desenvolvimento em um lago-teste, localizado no estado de São Paulo.
Dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS) mostram que 55% de todo o esgoto do Brasil é jogado diretamente na natureza sem tratamento. Um dos trabalhos desenvolvidos pela ÁguaV é a implantação do esgoto ecológico em residências e comércios. Qual o diferencial desse tipo de tratamento? Ele pode ser uma solução para locais onde não há saneamento básico?
Estas soluções para o esgoto doméstico são descentralizadas pois atendem locais onde a rede convencional não chega. Os projetos constam com o tratamento de efluentes das águas cinzas (águas de pias, lavatórios, chuveiros e tanques) e águas negras (dos vasos sanitários). Utilizam-se sistemas modulares em série, dimensionados de acordo com as normas e recomendações vigentes no Brasil para se obter um efluente de qualidade, que após desinfecção pode ser reutilizado para fins não-potáveis e significar economia garantida.
Há outras soluções descentralizadas que comumente são disseminadas, uma vez que a comunidade também sente este desejo, é a compostagem, dado que aproximadamente 50% do nosso resíduo é orgânico. O cuidado com a água do poço caipira também é imprescindível, pois as contaminações cruzadas e contaminações dos lençóis freáticos e do solo por meio do uso desenfreado de defensivos e agrotóxicos são infelizes realidades, seja no meio urbano ou no rural.
A educação socioambiental é um dos pilares da ÁguaV. Vocês acreditam que por meio da sensibilização e conscientização da sociedade é possível promover mudanças efetivas e o entendimento de que todos estamos integrados ao meio ambiente? Nos cursos e oficinas que já ministraram houve alguma situação que poderia ilustrar isso?
Profundamente acreditamos que a regeneração da natureza está na transformação das pessoas, e isto se inicia com uma nova forma de educação, baseada na pedagogia integral, valorizando e desenvolvendo o ser humano.
Com projetos pedagógicos desenvolvidos dentro e fora do Brasil, possuímos ampla experiência na organização e facilitação de debates e oficinas com mais de 100 cursos e workshops ministrados e mais de 4 mil participantes formados ao longo de 12 anos.Alguns casos de estudantes do programa de uma fundação, que alguns anos após o término da formação, se tornaram trainees, estudantes ou funcionários de grandes empresas na área da sustentabilidade.
Em um projeto em Feira de Santana, BA, um dos estudantes, que era repetente e de comportamento problemático, melhorou o desempenho e, ao longo dos três anos de projeto, até que se tornou um verdadeiro guardião da horta comunitária, auxiliando, provendo e servindo a todos. Além disso, a escola recebeu uma nota positiva no Ideb [Índice de Desenvolvimento da Educação Básica] de 2017, índice esperado apenas para o ano de 2022. Foi um aumento extremamente expressivo, mesmo após dois anos do término oficial do projeto.