Diversos aspectos contidos na definição dessa expressão exigem um olhar atento. Em algum momento, será imprescindível explicitar que esse marqueteiro slogan se refere ao que seria, em termos científicos, a saúde da biosfera
Você já ouviu falar em “saúde planetária”? Esta expressão foi lançada, em setembro de 2013, pelo notável periódico The Lancet, e acabou ganhando a seguinte definição em 2015:
“… saúde planetária é a conquista do mais alto padrão possível de saúde, bem-estar e equidade em todo o mundo, mediante atenção criteriosa aos sistemas humanos – políticos, econômicos e sociais – que moldam o futuro da humanidade e os sistemas naturais da Terra que definem os limites ambientais nos quais a humanidade pode florescer. Em suma, saúde planetária é a saúde da civilização humana e o estado dos sistemas naturais dos quais ela depende”.
Diversos aspectos desse simples parágrafo exigem muita atenção. O primeiro surge logo na segunda linha, quando se evoca a conquista do mais alto padrão possível de “bem-estar” e de “equidade”, além da saúde propriamente dita. Como imaginar alto padrão de “bem-estar” que já não inclua altos padrões de “saúde” e de “equidade”?
Porém, não se trata apenas de apontar redundância, ou mesmo certa tautologia, logo na abertura da definição. O principal é notar a completa semelhança de tal formulação com as boas definições de “desenvolvimento”. Simultaneamente, ao condicionar a conquista do mais alto padrão possível de desenvolvimento ao respeito de seus limites ambientais, esta definição de saúde planetária fica idêntica à noção de “desenvolvimento sustentável”.
Já na acepção bem mais concisa, que surge nas duas últimas linhas do parágrafo, é a bela metáfora “saúde da civilização humana” que traduz o mais alto padrão possível de desenvolvimento (ou de bem-estar/equidade). Cabe aqui perguntar se não seria melhor inverter a ênfase, realçando que é a prosperidade (ou o “florescimento”) que tem comprometido a saúde dos ecossistemas, (ou da biosfera).
Além disso, também parece necessário perguntar se realmente existe/existirá uma civilização humana – a ser tratada no singular – pois isso pressupõe que o processo civilizador necessariamente tenda a eliminar as diferenças entre civilizações que vingaram nos últimos oito milênios.
Ainda mais importante, contudo, é lembrar que o cerne do desenvolvimento humano está na ampliação das escolhas das pessoas para que obtenham capacitações e usufruam das oportunidades para serem o que desejem ser. Por isso, é muito estranho que nem sequer apareça na definição tão indispensável valor que é a liberdade, mais como “freedom” que como “liberty”. Por incrível que pareça, dois termos inteiramente ausentes do conjunto do relatório que lançou a citada definição de ‘saúde planetária’.
Tais incongruências parecem suficientes para que seja reaberta a reflexão coletiva sobre definições. Mas também é imprescindível chamar a atenção para a impropriedade de se intitular tal definição de “Conceito de saúde planetária”. Por mais compreensível que possa ser a banalização do termo “conceito”, que dá margem a tal tipo de derrapagem, também é necessário deixar claro de que não se trata – nem de longe – de conceito científico, algo que nada tem a ver com as acepções mais em voga de “conceito normativo”, ou até mesmo de “conceito em construção”.
Nesta linha, a questão mais decisiva parece ser a escolha do adjetivo “planetária” para exprimir o imperativo de se relacionar a saúde humana à saúde ecossistêmica. Afinal, a cosmologia se pergunta qual poderá ser o destino do planeta em aproximadamente 5 bilhões de anos, quando o Sol se tornar uma gigante vermelha. Enquanto se sabe que – na melhor das hipóteses – os humanos (ou pós-humanos) só poderiam desfrutar de pequena fração, da ordem de alguns milhões, do mais de bilhão de anos que ainda restariam à biosfera.
Até 7,8 milhões de anos potenciais para os primeiros e não menos que 1,5 bilhão de anos de vida na Terra. Por isso, já há, inclusive, quem discuta como dar prioridade a ações que maximizem a vida de certas linhagens após a extinção da humanidade, no que chamam de “Conservação pós-Antropoceno”.
O prazo de validade do gênero humano será bem inferior, mesmo que a colonização do espaço e a sobrevivência na Terra deixarem de ser caminhos excludentes, graças, por exemplo, ao desenvolvimento combinado da inteligência artificial e da engenharia genética.
Só que ambas também estão na lista das muitas ameaças à persistência dos humanos. Então, tudo vai depender, cada vez mais, da emergência de arranjos institucionais voltados à governança mundial dos grandes perigos existenciais, o que não poderá prescindir, por sua vez, de simultâneo conhecimento coletivo sobre os alertas dos cientistas.
Largos passos desse tipo já foram dados nos casos de incertezas sobre a possibilidade de guerra nuclear, sobre a rarefação da camada de ozônio, sobre o aquecimento global e sobre a erosão da biodiversidade. Contudo, nada de parecido ocorreu, por enquanto – mesmo em níveis regionais – para muitos outros desafios socioambientais –muito embora façam parte dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável lançados, em 2015, pela Agenda 2030. Pior, isso nem sequer começou a ocorrer no âmbito das chamadas novas tecnologias, que vai muito além das duas já mencionadas: engenharia genética e inteligência artificial.
Tudo isso levado em conta, poderia parecer muito mais apropriada a expressão “saúde global”. Porém, foi justamente a ela que se contrapôs a opção preferencial pelo uso do adjetivo “planetária”. Então, só se pode concluir que, em algum momento, será imprescindível explicitar que o marqueteiro slogan “saúde planetária” se refere ao que seria – em termos científicos – a saúde da biosfera.
*José Eli da Veiga é professor sênior do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (IEA/USP) e mantém dois sites: www.zeeli.pro.br e www.sustentaculos.pro.br
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