Para que o modelo de negócio dos aplicativos de entrega seja viável, o entregador deve ser visto apenas por sua existência digital. O modelo entra em colapso se o app encará-lo como um ser encarnado do ponto de vista fisiológico, subjetivo e de sua dignidade. Para o negócio, a satisfação de quem consome conta. A integridade de quem entrega, não. A vida digitalizada levanta novos dilemas sobre externalidades, que em geral penalizam o que é vivo: os corpos e a natureza
O dia 1º de julho de 2020 marca a primeira greve nacional de entregadores por aplicativo no Brasil. A pauta geral fala em melhoria das condições de trabalho, que em tempo de pandemia têm beirado a crueldade. O movimento faz parte de uma tendência internacional de questionamento dos impactos e da ética associados aos serviços mediados por plataformas digitais, como Uber, Airbnb e Amazon. Para além dos elementos de direitos trabalhistas e até de direitos humanos, um outro elemento da greve dos entregadores aponta para características distintivas da sociedade em rede. A economia por aplicativos integra um processo de digitalização da vida: tudo que existe no mundo passa a ter uma dimensão virtual.
Por exemplo, as florestas passam a ser monitoradas e reconhecidas por imagens de satélites, dados sobre os solos, a biodiversidade, os mananciais de água – o que tem sido fundamental para esforços de conservação desses ecossistemas. Do mesmo modo, a ciência sobre mudança climática, em grande parte, depende da tradução da atmosfera terrestre em dados digitais, que permitem o acompanhamento da concentração de gases de efeito estufa e a construção de modelos matemáticos sobre os rumos das alterações do clima e seus impactos para a sociedade.
No plano dos seres humanos, a digitalização da vida vai desde a comunicação e a construção de personas nas redes sociais até o monitoramento da pandemia da Covid-19. Pode parecer divertido, às vezes, essencial em outras. Mas há efeitos colaterais. Entre eles, a digitalização da vida humana afasta as pessoas de perceber e expressar humanidade. Por exemplo, a sensorialidade presencial dos afetos, das relações e dos contatos é substituída por trocas mediadas por telas e aparatos digitais ou, simplesmente, por dados. É o caso dos sistemas de entrega por aplicativos, pelos quais os entregadores são reconhecidos pelo número de entregas, tempo despendido, trajetos realizados, estrelas recebidas, metas batidas etc.
Para que o “modelo de negócio” seja viável, o entregador deve ser visto apenas por sua existência digital. O modelo entra em colapso se o app encará-lo como ser encarnado. Um corpo com suas células, estruturas e fluxos precisa comer, hidratar-se, excretar, descansar. E isso apenas do ponto de vista fisiológico. Se avançamos para a perspectiva mais subjetiva, esse mesmo corpo está privado de seus afetos, por conta das longas horas de trabalho. Também no sentido da sua dignidade, de sua identidade, de sua autonomia e de tantas qualidades que são abdicadas para que o corpo apresente um desempenho compatível com o que estabelecem os algoritmos – caso o indivíduo queira receber em mais de oito horas de trabalho algo próximo a um salário mínimo.
Apesar de tantos dados precisos, o app é calibrado tendo em vista uma abstração: a de que dinheiro é o valor máximo a ser gerado pela empresa. Mais que imagem pública ou espírito de comunidade – pois isso levaria em conta os apelos dos entregadores. Em nome da lucratividade é que as empresas por trás de cada app abstraem os corpos que os servem e foquem apenas nos dados digitais. Dados são geridos, readequados, cancelados. Corpos têm muitas demandas e ainda podem gerar remorso aos olhos de um gestor ou funcionário desavisado, que se pegue pensando no entregador como espelho de sua própria humanidade. Isso não cabe no modelo de negócio.
Chama atenção que esses modelos venham de startups que se vendem como empresas contemporâneas, com novos jeitos de olhar para o mundo e muitas vezes de criar comunidades. Mas conforme os anos passam e fica mais clara a relação de abuso que algumas delas impelem, não só o discurso cai por terra como algumas dessas empresas revelam adotar práticas de um capitalismo antigo e abusivo. Uma palavra-chave para entender o fenômeno é externalidade. Todos os desdobramentos da existência de um negócio que devem ser excluídos da conta de entradas e saídas para garantir que ele seja o mais rentável possível.
A ideia é contemporânea, mas sua expressão esteve presente no modo de lidar com operários na Revolução Industrial no século XVIII, na escravização de pessoas para os projetos coloniais até quase o fim do século XIX, na poluição do meio ambiente para aumento de escala no século XX; na intoxicação por agrotóxicos da Revolução Verde, nos smogs da energia a carvão, na devastação socioambiental para construção de hidrelétricas, na saúde mental de quem trabalha no sistema financeiro, na sanidade humana abalada pelas redes sociais. A lista é longa, complete à vontade.
De modo geral, o impacto sobre o que é vivo entra para o campo da externalidade. Resumindo: os corpos e a natureza. Com a emergência da vida virtual na sociedade em rede, a digitalização permitiu transformar o que poderia evocar reações humanas em apenas mais uma imagem entre tantas outras. Só mais um dado. No caso dos aplicativos de entrega, a digitalização higieniza a humanidade dos entregadores, em relação a eles mesmos e a todos os envolvidos na cadeia de valor. Assim, conta para o negócio somente o que é imputado como dado digital. A satisfação de quem consome conta. A integridade de quem entrega, não.
A lógica da externalidade é a mesma por trás de vários imbróglios que enfrentamos hoje em dia – os mais reconhecidos são a pandemia, a mudança climática, a ideia de que “floresta é mato”. O modelo mental que sustenta a lógica da externalidade deve ser questionado não só em relação às crises mais gritantes, mas também em modelos de negócio que há séculos se viabilizam ao considerar uma pessoa sem corpo, sem alma.
Há quem diga que o sistema é inviável. Talvez ele seja possível se valor não se resumir a lucro e se as externalidades forem reintegradas pelos modelos de negócio. Um desafio tão grande quanto equilibrar nossa relação com o digital, para garantir a sanidade e os laços da humanidade. Conjecturas que parecem pertencer a categorias distintas, mas que remetem a um mesmo princípio: que o valor do vivo venha antes do valor de troca.
*Comunicólogo e educador somático. Pesquisa relações entre o corpo vivo, fluxos comunicativos e o ambiente. Diretor do ConeCsoma (www.conecsoma.com.br)
[Foto: Roberto Parizotti/ Fotos Públicas]