Novo modelo de desenvolvimento para a Amazônia deve ter como protagonistas os povos indígenas e as populações tradicionais. Mas o momento é dramático para aqueles que buscam a preservação da floresta e a sobrevivência do seu modo de vida e cultura
Os direitos dos povos indígenas e a proteção dos seus territórios não estão no seu melhor momento no Brasil: ao mesmo tempo em que a Amazônia perde vastas áreas de floresta para o desmatamento, o presidente da República, Jair Bolsonaro, cumpre a promessa de campanha de não demarcar nem mais um centímetro de Terras Indígenas, e frequentemente as ameaças aos territórios chegam nas mãos do Judiciário. Como se fosse pouco, a pandemia de Covid-19 afeta de forma contundente a saúde das populações indígenas, com mais de 43 mil casos da doença e 904 mortes registradas entre os povos originários do Brasil – a taxa de mortalidade entre a população indígena é 16% superior à mortalidade geral no País pela doença, segundo levantamento da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib).
O quinto encontro da iniciativa Uma Concertação pela Amazônia, realizado de forma online em 19 de outubro de 2020, tratou do respeito aos povos indígenas e trouxe as visões de duas personalidades fortemente conectadas às populações amazônicas: a liderança indígena Eloy Terena, advogado do povo Terena e assessor jurídico da Apib, e Sebastião Salgado, fotógrafo que já fez diversas expedições à Amazônia e também é fundador, junto com a esposa Lélia Salgado, do Instituto Terra. O instituto visa promover a restauração ambiental e o desenvolvimento rural sustentável no Vale do Rio Doce, em Minas Gerais.
Sebastião Salgado relatou algumas de suas experiências fotografando a Amazônia, sobrevoando a região a bordo de helicópteros do Exército e morando em comunidades indígenas e ribeirinhas. As lembranças incluem a visão de florestas exuberantes, gamas de tons de verde, as montanhas sublimes e o sistema de água que permite que todo o Centro-Sul do Brasil seja agraciado com chuvas.
“Sou apenas um fotógrafo que teve o privilégio de frequentar profundamente a Amazônia, sentir o vento amazônico e perceber que naquele espaço existe uma grande quantidade de pessoas que vivem ali há milhares de anos. E nunca foi necessário a essas pessoas destruir a floresta para produzir os bens que eles precisam para sua sobrevivência”, disse Salgado (saiba mais aqui sobre o modo de vida ancestral na Amazônia).
O fotógrafo defendeu que os brasileiros aumentem sua conexão com o mundo indígena por duas principais razões: a ancestralidade, pois muitos brasileiros descendem dos povos originários, e o fato de os indígenas serem os principais guardiães da floresta. O espaço amazônico corresponde a quase metade do território brasileiro – 49,21% – sendo que a parte mais verde e conservada da floresta são as reservas indígenas, que correspondem a uma fatia entre 25% e 27% do território amazônico. “Cada brasileiro deve aceitar a cultura indígena como a parte maior da nossa cultura, porque nas 305 comunidades e tribos indígenas da Amazônia talvez esteja concentrada a maior diversidade cultural do planeta”, refletiu Salgado.
Ele pontuou ainda a existência de 114 grupos que nunca foram contatados, mas estão ameaçados pela invasão do seu território por madeireiros, garimpeiros, exploradores de minerais e religiosos. “Dentro da Amazônia existe a pré-história da humanidade, e temos o privilégio de conviver, na atualidade, com essa pré-história.”
Visibilidade pela cultura e arte
Para dar visibilidade internacional ao momento delicado que vive a Amazônia, Salgado tem investido em atividades culturais. Em outubro de 2020, participou do projeto Música e Imagens da Ópera de Rouen, na França, com a projeção de 250 fotografias do bioma amazônico e de suas comunidades junto ao concerto A Floresta do Amazonas, de Heitor Villa-Lobos, regido pela maestra Simone Menezes e interpretado pela soprano Camila Titinger, ambas brasileiras radicadas na França.
Outra iniciativa é a organização de um livro, com lançamento previsto para abril de 2021, que contará com uma série de exposições em cinco grandes cidades – Paris, São Paulo, Rio de Janeiro, Roma e Londres – com o objetivo de chamar a atenção do mundo para a Amazônia e as comunidades indígenas. “Com os livros, as exposições e os concertos, vamos criar um movimento planetário que vai servir de base a uma discussão maior. Jamais as comunidades indígenas estiveram tão ameaçadas, mas jamais também estiveram tão organizadas”, afirmou.
Momento adverso
O líder Eloy Terena, de 32 anos, é a prova dessa mobilização crescente dos povos indígenas. Filho do povo Terena do Mato Grosso do Sul, ele faz parte de uma geração de jovens indígenas que tiveram acesso ao Ensino Superior por meio das ações afirmativas, e hoje faz seu pós-doutorado pela École des Hautes Études en Sciences Sociales, da França. Além de advogado da Apib, atua na esfera criminal, defendendo indígenas criminalizados por lutarem pela reintegração de posse e a demarcação de suas terras. Até a Constituição de 1988, os povos indígenas eram tutelados pelo Estado e não tinham o direito de constituir associações nem de se auto representarem.
Terena ressaltou como a luta dos povos indígenas é necessária neste momento adverso: a atual gestão de Jair Bolsonaro é o primeiro governo, após o período da redemocratização brasileira, declaradamente contrário aos direitos dos povos originários. “O atual presidente foi eleito com a promessa de não demarcar nenhum centímetro de Terra Indígena e quilombola e tem implementado uma política indigenista extremamente retrógrada e nociva aos direitos dos povos indígenas”, afirmou.
Mais do que preservar os modos de vida dos brasileiros originários, as Terras Indígenas cumprem papel no equilíbrio climático, na preservação da biodiversidade e no fortalecimento da democracia – os povos indígenas têm apenas o usufruto exclusivo dessas terras e protegem os patrimônios que pertencem ao Estado brasileiro.
A Constituição de 1988, aliás, representou um grande avanço para os direitos dos povos indígenas no Brasil. Desde o período colonial, a relação do Estado com os povos originários era colonial e autoritária, e o texto constitucional de 1988 deu uma guinada nessa visão, ao reconhecer a autonomia dos povos indígenas e o direito de estarem em juízo defendendo seus direitos, ao eliminar a tutela e, principalmente, ao reconhecer o direito originário às terras tradicionalmente ocupadas.
Desde a década de 1990, no entanto, não são raros os recursos judiciais que trazem interpretações distintas do texto constitucional – uma delas é o chamado marco temporal. Segundo essa tese jurídica, os povos indígenas só teriam direito às terras que estivessem ocupando na data da promulgação da Constituição – 5 de outubro de 1988. De acordo com Eloy Terena, trata-se de uma tese que restringe o direito dos povos indígenas e vem sendo aplicada por muitos magistrados, tribunais, pela Advocacia-Geral da União (AGU) e pela própria Fundação Nacional do Índio (Funai), ao rever processos de demarcação de Terras Indígenas.
Segundo Terena, pensou-se, em um primeiro momento, que a tese do marco temporal afetaria apenas as Terras Indígenas localizadas no Nordeste, Sul ou Centro-Oeste que ainda estavam pendentes de demarcação. Mas a tese também está servindo de parâmetro para rever demarcações de territórios que foram feitas na região da Amazônia, afetando, de fato, todas as Terras Indígenas do Brasil.
Um caso emblemático é o do povo indígena Xokleng, que luta pela ampliação e demarcação da TI Ibirama-Laklãnõ, no Alto Vale do Itajaí, em Santa Catarina. A etnia, que historicamente ocupava uma faixa de terra que ia de Curitiba a Porto Alegre, acabou reduzida a uma área de cerca de 14 mil hectares. Está agora nas mãos do Supremo Tribunal Federal (STF) a definição sobre o emprego do marco temporal para os Xokleng, o que consolidará a jurisprudência para o tema.
O julgamento, marcado para outubro, foi adiado e deveria ter sido realizado em 18 de dezembro de 2020. Mas o ministro relator Edson Fachin retirou o processo da pauta, com a justificativa de que os autos do processo estão com a Advocacia-Geral da União (AGU), de forma que a nova data para julgamento ainda não foi definida. Fachin, quando reconheceu a repercussão do caso, deixou claro que é preciso o Supremo dizer qual é o estatuto jurídico das TI – se é a tese do marco temporal ou a teoria do indigenato, como traz a Constituição de 1988, que fala claramente que os povos indígenas têm o direito originário às terras tradicionalmente ocupadas.
Nesse contexto, as organizações indígenas têm se mobilizado para sensibilizar os ministros do STF, com o encaminhamento de documentos e agendamento de audiências para a defesa dos direitos dos povos indígenas. A luta das organizações indígenas inclui derrotar o chamado “efeito de Copacabana”, existente no imaginário brasileiro, que versa que, se a teoria do indigenato for reconhecida, os povos indígenas vão querer de volta o bairro carioca de Copacabana – o que é uma inverdade, segundo Terena, já que a Carta Magna fala em tradicionalidade, o modo como os indígenas lidam com sua terra. “Para nós, o marco temporal é inconstitucional. A Constituição, quando conceitua Terra Indígena, não trabalha com uma data exata, tampouco com requisitos temporais, mas com requisitos tradicionais e o modo como os povos se relacionam com seus territórios”, destacou.
As organizações indígenas têm pressionado para que se concluam os processos demarcatórios. No Brasil, há 1.298 procedimentos de demarcação de Terras Indígenas e desses, 63% – ou mais de 800 procedimentos – estão pendentes de conclusão. De acordo com Terena, se a tese do marco temporal for aprovada, servirá para arquivar esses processos e permitir a reavaliação das demarcações que já foram feitas, como a Terra Indígena Kaiabi, dos povos Munduruku Apiacá e Kaiabi, no Mato Grosso e Pará, que foi contestada no STF e teve liminar deferida pelo ministro Luiz Fux com base na tese do marco temporal. Analisando os documentos, vê-se que esses povos não estavam no dia 5/10/1988, como os brancos querem exigir dos povos indígenas, uma vez que eles foram removidos da área durante o período da ditadura militar. “A tese serve também para anistiar muitas das violações que foram perpetradas contra os povos indígenas na ditadura, bem antes do texto constitucional”, disse Terena.
Por uma convivência mais harmônica
O movimento Uma Concertação pela Amazônia tem buscado tratar as questões da região com base na harmonia entre os diversos habitantes da Amazônia – povos indígenas, imigrantes, ribeirinhos, militares, visto que a Amazônia é um caldeirão com diferentes pessoas e histórias. Roberto Waack, presidente do Conselho do Instituto Arapyaú e membro da Concertação, levantou a questão: como, então, seria trazer esses atores para uma convivência mais harmônica do que a que temos hoje, na região?
Para Salgado, a criação de um novo modelo de desenvolvimento que possa gerar prosperidade para os mais de 25 milhões de pessoas que moram na Amazônia – quase a população do Canadá – passa longe da economia tradicional, que se resume a abater a floresta, plantar soja, criar gado e destruir o capital natural. Por trabalharem no projeto de recuperação ambiental no Vale do Rio Doce, Salgado e sua esposa sabem o valor econômico de um hectare de floresta. “O retorno econômico dessa área em que se destruiu a floresta jamais vai prover o que a floresta em pé faria em uma nova proposta de economia para a Amazônia”, afirmou.
Mas, em sua avaliação, qualquer que seja o novo modelo a ser proposto para a região, ele requer a participação do Exército, por ser a “organização mais presente na Amazônia” e por contar com oficiais genuinamente preocupados com o bioma, além do fato de grande parte dos soldados ser indígena (leia mais aqui sobre o papel das Forças Armadas).
Já a ex-ministra do Meio Ambiente nos governos de Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff, Izabella Teixeira vê a necessidade de uma agenda indígena inovadora para ser trabalhada nas lideranças dos civis, não só dos militares. Para ela, é preciso que a sociedade brasileira tenha outra conexão com os indígenas, neste momento em que o mundo todo discute temas como a integridade climática e ambiental e o papel da Amazônia nas políticas de defesa e segurança nacionais.
Guilherme Leal, fundador do Instituto Arapyaú, entende como necessária a mudança de percepção sobre a Amazônia e os mais de 10 mil anos de construção agroflorestal pelos povos tradicionais. “Essa mudança é desafiadora, mas entusiasmante. Conseguir mudar a percepção sobre o valor que essa multiculturalidade tem; esse tesouro que vai além da floresta e inclui os guardiães com sua riqueza de conhecimento que não se pode desprezar e ainda estamos tão pouco conscientes dela”.
Enquanto esses são desafios de médio e longo prazo, há ações emergenciais de curto prazo. Uma dessas prioridades, no entendimento de Terena, é assegurar a proteção e a autonomia aos 305 povos indígenas, especialmente para os 114 grupos que vivem isolados. “Existem terras que têm a presença de povos isolados e ainda não demarcadas, estão sem proteção territorial e têm alto índice de invasões por garimpeiros, madeireiros e agronegócio, especialmente para criação de gado”, diz o líder Terena.
Para Sebastião Salgado, o momento pede resistência dos povos indígenas, a busca de aliados em todas as esferas dentro e fora do Brasil e especialmente no Poder Judiciário. Em maio, ele e Lélia Salgado redigiram um manifesto pela proteção dos indígenas em meio à pandemia de Covi-19, com adesão de personalidades como a cantora Madonna e o ex-Beatle Paul McCartney. O abaixo-assinado foi direcionado aos Três Poderes brasileiros e apenas o Judiciário respondeu, de forma que Salgado vê maior chance de sensibilização junto a esse Poder.
“Há um verdadeiro poder de aliança entre o Judiciário brasileiro, os brasileiros que hoje se preocupam com a Amazônia e o restante do planeta que quer preservar a floresta”, disse. Junto ao Executivo, Salgado acredita que não há chances de sucesso na homologação de Terras Indígenas. Nos dois anos que ainda restam do governo Bolsonaro, a saída será trazer a população para a causa, difundir ao máximo a cultura indígena no Brasil e fora; e lutar para que o próximo governo seja aliado de novas ideias, com outro entendimento do que é progresso. “O momento é duro, mas vamos evoluir”, disse.