O dramaturgo Nelson Rodrigues dizia que “o Brasil não é uma pátria, não é uma nação, não é um povo, mas uma paisagem”. Se somos uma paisagem, é importante começar a (re)conhecê-la
“Dentro do enorme perímetro brasileiro, encontra-se tudo o que de pitoresco e grandioso oferece a terra. Ainda mais: encontra-se, em matéria de panorama, tudo o que a ardente imaginação possa fantasiar. E os espetáculos são tão variados quanto magníficos” (Celso Afonso, 1908. Por que me ufano do meu país. Ed. Garnier).
O famoso tríptico de Bosch, o Jardim das Delícias, não foi inspirado no Brasil. Mas, segundo a fala de Conde Celso, um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras, poderia ter sido – pelo menos as duas primeiras abas desta imagem:
País de dimensões continentais, o Brasil possui parte de sua identidade cultural ligada às representações sobre a natureza. O motivo edênico (Jardim do Éden) habita a imaginação nacional e olhares estrangeiros desde os primórdios da presença europeia.
Um jardim é uma composição paisagística, uma tentativa de domesticação de um espaço para torná-lo mais agradável ou útil. Toda tentativa de criação de jardim é precedida por um desejo de representação de algo já existente, é balizada por exemplos que compõem, consciente ou inconscientemente, a bagagem cultural de quem o projeta.
Há um conceito desenvolvido pelo pesquisador francês Alain Roger, o de “artealização da paisagem”, que discute, justamente, o processo de imitação da arte para a construção da paisagem. Segundo o autor, a paisagem tende a emular as obras de arte, lembrando que o conceito de paisagem nasce ele mesmo nas artes, a partir de pinturas.
Ainda no período colonial, o que acontecia nas primeiras experiências brasileiras de criação de jardins e paisagens era uma tentativa de reprodução de padrões europeus, já retratados artisticamente em quadros. Esse processo elucida o quão cultural é a paisagem, uma vez que quem nesse momento a estava transformando (os colonizadores) o fazia a partir de suas experiências de vida, de seus filtros, do conhecido e vivido, ou seja da cultura. O processo de artealização mostra como a paisagem é uma construção cultural, historicamente datada e explicável.
Paralelamente à construção de jardins, uma outra maneira de domesticação da natureza operada pelo colonizador foi o estabelecimento dos latifúndios monocultores. Essa forma de uso do solo se fez através da organização de uma utilização que maximizava os ganhos obtidos no trato com a terra. Nesse sentido, os portugueses procuraram adaptar as práticas agrícolas incipientes que encontraram entre os indígenas e as direcionaram de acordo com a sua conveniência. A utilização de espécies originárias, como o pau-brasil, foi misturada com a introdução de espécies exóticas, como a cana-de-açúcar. O estabelecimento da lavoura canavieira foi responsável por grande parte da destruição da vegetação nativa nos primeiros anos da colonização portuguesa.
Mais tarde, novamente a agricultura é protagonista, desta vez, contribuindo para um novo ciclo de devastação das áreas naturais preservadas com a introdução e o sucesso da produção cafeicultora. O agenciamento do meio ambiente levou a modificações na paisagem nativa, que passou a ser formada pelas vastas regiões cultivadas e pela instalação de complexos produtivos, as fazendas de café.
Voltando aos jardins, foi somente a partir da década de 1920 que os modelos europeus passaram a sofrer críticas no Brasil. Tiveram participação nesse processo de superação os intelectuais e artistas modernistas brasileiros, que redimensionaram as relações entre tradição e modernidade, afirmando a existência de um “sentimento nacional”, de uma “realidade nacional” que poderia ser expressa nas mais diversas formas de arte. O paisagismo de Roberto Burle Marx, neste sentido, apresentou uma nova forma de lidar com as espécies vegetais e sua articulação com o ambiente construído na composição das paisagens.
Mas por que, tantas vezes, o que se viu e ainda se vê é a repetição de padrões que nem sempre são os que melhor funcionam para nossa realidade? Por que não fazer do Brasil o próprio Brasil?, como uma vez questionou Nelson Rodrigues.
O dramaturgo dizia que “o Brasil não é uma pátria, não é uma nação, não é um povo, mas uma paisagem”. Se somos uma paisagem, é importante começar a (re)conhecê-la. É importante fortalecer, atualizar ou criar uma identidade vestida de paisagens, de nossas paisagens.
Mas o que é mesmo uma paisagem?
Na linguagem coloquial a palavra paisagem está comumente associada a uma imagem bucólica em um quadro. Para as ciências, no entanto, esse é um conceito riquíssimo, capaz de permitir a análise da complexidade das relações entre pessoas e natureza com todas as suas potencialidades e fraquezas, desafios e fragilidades. Comum em todas as tentativas de definir esse termo, científica ou socialmente, está a questão do olhar. Sempre existe um observador e um espaço contemplado.
Esse conceito é vital para intervenções em territórios. Não se trata de uma forma de gestão, mas de uma abordagem, de uma visão de mundo. O ponto de partida para essa conceituação é a interação das pessoas em um determinado tempo com o espaço. Tempo, espaço e pessoas são as dimensões que baseiam toda e qualquer análise espacial, de território e de paisagem. A abordagem de paisagem é uma combinação de imersões materiais (análises técnicas), sensíveis (expressadas a partir da relação com as pessoas que vivem no território) e referenciais (arte).
Se os jardins e paisagens começaram a ser concebidos a partir de referências artísticas, por que não continuamos a aproveitar essa entrada analítica, tão sensível, para ultrapassar a racionalidade (limitada), e captar os aspectos que ultrapassam as questões materiais, mas que são também relevantes para o pensamento de futuros possíveis para nossos territórios?
A arte é uma potência!
*Fernanda Rennó é doutora em Planejamento Territorial – Meio Ambiente e Paisagem pela Université de Toulouse/UFMG. Atua hoje como consultora do Instituto Arapyaú, onde é responsável pelos eixos de Educação e Cultura da iniciativa Uma Concertação pela Amazônia.
**O Tardígrado é o ser mais resiliente da Terra. É cultura de resistência para tempos extremos (extrapolação dos limites ambientais, acirramento das desigualdades, pandemia e riscos à democracia). Porque razão e ciência não dão conta sozinhas. O Tardígrado é espaço para manifestações artísticas e culturais de todo tipo: poesia, artes plásticas, música, fotografia, gravura, escultura, dança, vídeo, arte-ativismo, charges, memes. Envie sugestões para: contato@pagina22.com.br. E acompanhe o perfil no Instagram: @otardigrado22