O novo Plano Nacional de Recursos Hídricos para o período de 2022 a 2040 está em processo de construção neste momento em que o País é atingido pela pandemia de Covid-19 e por uma crise hídrica que abrange a Bacia do Paraná, colocando em risco a oferta de água. Diante disso, como o PNRH pode ganhar estratégia?
O Brasil possui um significativo arcabouço legal para a gestão dos recursos hídricos. A partir da Lei nº 9.433/1997 teve início a consolidação do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos que atualmente é composto por mais de 200 Comitês de Bacias Hidrográficas, Conselhos Nacional e Estaduais de Recursos Hídricos, Órgãos Gestores Nacional e Estaduais, Secretarias de Meio Ambiente e Recursos Hídricos, envolvendo diretamente cerca de 13 mil atores em todos os estados do Brasil.
Nesse arcabouço legal está prevista uma série de instrumentos de gestão para garantir água em quantidade e qualidade para o abastecimento das cidades, agricultura, pecuária, indústria, turismo e todos os usos.
Entre os instrumentos, estão os Planos Nacional e Estaduais de Recursos Hídricos e os Planos de Recursos Hídricos das Bacias Hidrográficas, cada um deles procurando tratar das diferentes escalas e preparação de políticas públicas para enfrentar os desafios de gestão das águas.
Os Planos de Bacias Hidrográficas, como o nome diz, são elaborados por bacias ou por regiões hidrográficas e devem realizar o diagnóstico e prognóstico da bacia, de forma a identificar como está a situação em termos de qualidade e quantidade de águas na área da bacia ou região hidrográfica considerada. Cabe ao Plano da Bacia Hidrográfica fazer uma leitura detalhada da bacia.
Os Planos Estaduais e o Plano Distrital de Recursos Hídricos possuem caráter estratégico de abrangência estadual, ou do Distrito Federal, com ênfase nos sistemas estaduais de gerenciamento de recursos hídricos.
Já o Plano Nacional de Recursos Hídricos tem como objetivo estabelecer um pacto nacional para a definição de diretrizes e políticas públicas voltadas para a melhoria da oferta de água, em quantidade e qualidade, gerenciando as demandas, e considerando ser a água, um elemento estruturante para a implantação das políticas setoriais, sob a ótica do desenvolvimento sustentável (PNRH, 2006).
O Plano Nacional de Recursos Hídricos abrange todo o território nacional e deve ter cunho eminentemente estratégico, contendo metas, diretrizes e programas gerais.
O NOVO PLANO NACIONAL DE RECURSOS HÍDRICOS
É do instrumento Plano Nacional de Recursos Hídricos (PNRH) que trataremos neste artigo, pois um novo PNRH para o período de 2022 a 2040 está em processo de construção neste exato momento em que o País e o mundo são atingidos pela pandemia de Covid-19. O caso do Brasil é ainda agravado por uma “crise hídrica” que abrange a Bacia do Paraná, apresentando uma situação que pode colocar em risco a oferta de água para todos os usos, em especial, para manter o rio enquanto um ecossistema vivo, para geração de energia, para a produção agrícola e o abastecimento humano.
Sobre a crise hídrica atual, o País deve lançar mão das diferentes instâncias e organizações que fazem parte do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos para discutir as soluções para o enfrentamento emergencial. E não se voltar apenas para as instâncias de governos, seja federal, seja estadual.
O que desejamos trazer para o debate são caminhos para que o novo Plano Nacional de Recursos Hídricos (PNRH) se torne estratégico e prepare o País, a população e as instituições para enfrentar os riscos de novas crises hídricas e garantir água em quantidade e qualidade para todos os usos.
Situação pouco confortável
A situação das águas no Brasil, em que pese termos 13,2% da água do mundo, não é confortável, a crise hídrica atual é exemplo disso.
Se de um lado temos uma boa quantidade de água, é preciso lembrar que a distribuição de água no Brasil é bastante diferenciada entre as regiões e de outro temos um sério problema de qualidade das águas, conforme a figura abaixo.
Quantidade de água e densidade populacional por região no Brasil
A diferença na distribuição de água e a densidade populacional no Brasil é o primeiro desafio que a gestão das águas no Brasil enfrenta. Como atender a demanda crescente de diferentes usos das águas nas diferentes regiões combinado com as diferenças de distribuição?
Vale dizer que, desde a década de 1980, o consumo global do recurso cresce 1% ao ano, em média. No atual ritmo de consumo de água, e de crescimento da população, concentrado em locais marcados por condições adversas para moradia, a água potável tende a se tornar um bem cada vez mais escasso. Por mais que o planeta esteja cercado por água, apenas uma fração do total é própria para consumo.
Estudo realizado pela Fundação SOS Mata Atlântica entre março de 2020 e fevereiro de 2021 sobre a qualidade da água nas bacias da Mata Atlântica revela um quadro de alerta e permite apontar a fragilidade da condição ambiental em 73% dos principais rios monitorados do país, nos 17 estados do bioma.
O estudo indica que a qualidade regular da água obtida em 95 pontos monitorados demanda atenção especial dos gestores públicos e da sociedade e indica a condição frágil dos recursos hídricos, especialmente neste momento de emergência climática e de pandemia, quando aumenta a demanda por água limpa para todos.
Quando é analisado o manejo e uso do solo, o modelo de produção agrícola, a forma e a concentração de ocupação na área urbana e o desmatamento já não se pode mais colocar culpa somente na ausência de chuva nesta nova crise hídrica.
Os mapas e dados atualizados do MapBiomas mostram que o Brasil perdeu 87,2 milhões de hectares de áreas de vegetação nativa entre 1985 e 2019. Isso equivale a 10,25% do território nacional. Os desmatamentos aumentaram a partir de 2018 em todos os biomas: Amazônia, Cerrado, Pantanal, Caatinga, Mata Atlântica e no Pampa.
É bom lembrar que a Floresta Amazônica é responsável pelas chuvas que chegam na região Centro Oeste, Sudeste e Sul, por meio dos rios voadores.
Análises da equipe do Centro de Sensoriamento Remoto da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) mostram que a quantidade anual de chuva caiu à metade ao longo dos últimos 20 anos em regiões de Rondônia, norte de Mato Grosso e sul do Pará, onde a agropecuária ocupou até 60% de áreas antes florestadas, com prejuízo anual estimado em R$ 5,7 bilhões.
Sobre a forma de ocupação na área urbana que é padrão no Brasil, as cidades de Belo Horizonte e São Paulo por exemplo, tiveram seus rios urbanos canalizados em cerca de 80% e praticamente 90% da área urbana destas cidades estão asfaltadas. Com isso, a água da chuva nos centros urbanos não infiltra, causando enchentes com frequência.
O aumento do desmatamento em todos os biomas do Brasil provoca a diminuição das chuvas e ao mesmo tempo, quando chove, por conta da ausência da cobertura vegetal, a água da chuva não infiltra no solo. Isso impede a regularidade na quantidade de água durante o período seco.
Para que seja de fato estratégico, o novo Plano Nacional de Recursos Hídricos não pode trabalhar de forma setorialmente essas questões. É preciso que seja construído de forma sistêmica, com um olhar combinado entre o rural e o urbano, considerar a gestão ambiental (que para isso precisa ser mantida e não desmantelada como vem acontecendo) e a gestão das águas, e integrar os diversos usos: saneamento, produção de energia, produção agrícola (do pequeno ao grande produtor), indústria, pesca, lazer e outros – estes não devem ser trabalhados de forma separada.
O Plano precisa ser construído de forma abrangente e cooperativa, pois gerir as águas exigirá também uma integração efetiva entre a gestão das águas subterrâneas e as águas dos mananciais de superfície, bem como entre as águas costeiras e continentais.
Para que o novo PNRH seja estratégico, é necessário:
1- Fortalecer a Política Nacional de Recursos Hídricos, por meio da universalização da implantação e implementação de todos os instrumentos da gestão das águas das águas em toda a dimensão do território brasileiro equalizando a governança hídrica entre as diferentes regiões do País;
2-Analisar sistemicamente os desafios para a gestão das águas no Brasil e integrar gestão dos recursos hídricos com gestão ambiental e manejo e uso do solo na área urbana e rural;
3- Dar atenção especial à gestão das Águas Subterrâneas face ao seu caráter estratégico para o Brasil;
4-Fortalecer a governança das instituições públicas e a participação social com os diversos atores que já estão dentro e trazendo novos atores sociais e novas linguagens (não somente a técnica) para construção do novo PNRH. O diálogo entre diferentes é essencial para a construção do novo PNRH. A construção do PNRH não pode privilegiar segmentos ou setores;
5-Fortalecer os mecanismos e órgãos fiscalizadores e inibidores do desmatamento criminoso dos biomas brasileiros, aliado à campanhas permanentes e sistemáticas contra a enorme devastação florestal em curso no país inteiro;
6-Fortalecer as Diretrizes para o Reuso da Água, as Diretrizes contra as perdas de água pelo Sistema de Abastecimento, e as Diretrizes para o Fortalecimento da Revitalização de Bacias;
7-Fortalecer políticas de Soluções baseadas na Natureza para os diversas temas e áreas (saneamento, área urbana, etc) que têm interface com a gestão das águas;
8-Fortalecer as Unidades de Conservação, que exercem papel importante para a manutenção da qualidade e quantidade das águas;
9-Fortalecer a incorporação dos cenários de mudança climátics na gestão dos recursos hídricos em todo o Brasil. Fortalecer políticas de segurança hídrica para prevenção dos riscos hídricos;
10-Garantir áreas de preservação de ecossistemas aquáticos que são essenciais para a manutenção da vida aquática e da qualidade e quantidade das águas, bem como estabelecer os limites essenciais para que nenhum rio brasileiro perca a sua condição de Ecossistema Vivo;
11-Construir de forma participativa um sistema de monitoramento das metas e dos indicadores de implementação do novo PNRH.
12-Reconhecer e identificar a melhor forma de fazer a gestão das águas em relação às especificidades e características das regiões hidrográficas, inclusive discutir de forma participativa uma posição de como deve ser realizada a gestão das águas para as Bacias Amazônicas.
Isso somente será possível se todos os atores sentarem-se à mesma mesa e trabalharem de forma articulada para que o novo PNRH tenha chances de se tornar de fato um Pacto Nacional pela Água no Brasil. Somente assim será possível garantir desenvolvimento sustentável e a segurança hídrica para o conjunto da população brasileira – pois a crise hídrica que o País vive atualmente é, na realidade, uma crise de governança que só será resolvida ampliando a democracia e garantindo a participação social.
*Anivaldo de Miranda Pinto – Presidente do CBH São Francisco e membro do Conselho Nacional de Recursos Hídricos; Elio de Castro Paulino – Vice-coordenador Geral do Fórum Capixaba de Comitês de Bacias Hidrográficas e membro do Conselho Nacional de Recursos Hídricos; Angelo Lima – Secretário-executivo do Observatório da Governança das Águas (OGA Brasil).
[Foto: Sohaib Al Kharsa/ Unsplash]