Pensar o futuro da Amazônia não cabe apenas aos brasileiros. A floresta é pan-amazônica e estende-se por outros sete países da América do Sul que também fazem parte dessa concertação
“Todos vocês, brancos, que vivem em todos os lugares: venham… se aproximem para me escutar. Todos vocês hoje estão com medo! Essa fumaça da epidemia apareceu. Vocês morreram. Então, agora, entenderam meu pensamento. E o pensamento de vocês, expandiu?” As palavras do xamã Davi Kopenawa Yanomami foram extraídas de um trecho do filme A Queda do Céu, que estreará em 2022 e abre o painel “Pan-Amazônia – Entre o céu e a terra”, durante plenária da iniciativa Uma Concertação pela Amazônia, realizada virtualmente em 14 de junho. O encontro propôs pensar o futuro da Amazônia para além das fronteiras entre os oito países que compõem o bioma: Brasil, Guiana, Suriname, Venezuela, Colômbia, Equador, Peru e Bolívia.
No contexto pan-amazônico, a maior floresta tropical do mundo abriga cerca de 10% da biodiversidade da Terra, 16% do fluxo total de rios do mundo para os oceanos e cerca de 500 povos indígenas de origens culturais diferentes. A Floresta Amazônica já perdeu 20% de sua área original desde a década de 1970, de acordo com estudo publicado este ano pelo Joint Research Centre (JRC), órgão de pesquisa científica que produz informações para embasar as políticas formuladas pela Comissão Europeia, apresentado pelo pesquisador do JRC em Ispra, na Itália, René Beuchle.
Intitulada Deforestation and Forest Degradation in the Amazon, a pesquisa do JRC mostra que, após atingir taxas anuais de desmatamento muito altas, a Amazônia Legal Brasileira chegou a conter a devastação de meados dos anos 2000 em diante. A menor taxa registrada pelo Programa de Monitoramento do Desmatamento da Amazônia, operado pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Prodes-Inpe), foi alcançada em 2012 (4.571 km2 contra 27.772 km2 no início do milênio). No entanto, de lá para cá, foi reportado um aumento progressivo e sistemático nas áreas de desmatamento anual na região, cujo ápice ocorreu em 2019 e em 2020: 9,5% – o equivalente a 10.129 km2 desmatados em 2019 e a 11.088 km2 em 2020.
O aumento também foi expressivo na Pan-Amazônia. A área anual de distúrbios florestais, que considera desmatamento e degradação florestal juntos (quando há desmatamento ocorre uma degradação das florestas no entorno, o que nem sempre aparece em imagens de satélite), aumentou 18% na região de 2019 a 2020, de 26.605 km2 para 31.418 km2.
Na Amazônia brasileira, o aumento do distúrbio florestal foi de 24% (de 17.303 km2 chegou a 21.379 km2). Outros países da Pan-Amazônia também apresentaram um aumento nos distúrbios florestais no período, variando de 11% (Equador) a 52% (Bolívia). Mas houve o registro de países ou regiões, como a Venezuela e o Escudo das Guianas (Guiana, Suriname e Guiana Francesa), que tiveram uma diminuição de 5% e 54%, respectivamente, no período. Já a Colômbia apresentou estabilidade, com 3.660 km2 desmatados ou degradados.
Pontes de amizade
Diante desse quadro, a secretária-geral da Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA) e ex-ministra do Meio Ambiente da Bolívia, Alexandra Moreira López, considera fundamental para o futuro sustentável da floresta a construção de pontes entre os diferentes países da região. Segundo ela, o Tratado de Cooperação Amazônica, assinado em 1978 pelos oito países, é um instrumento ainda atual, que tem o objetivo principal de promover o desenvolvimento harmonioso da Pan-Amazônia, com preservação do meio ambiente, uso racional dos recursos e melhoria da qualidade de vida dos povos que ali habitam. “Atualmente planejamos formas de incorporar os territórios amazônicos às economias de seus respectivos países”. Ela lembra que a região ocupa 40% da área da América do Sul e sempre esteve em posição muito periférica em relação às realidades nacionais.
Alcançar um desenvolvimento sustentável e harmonioso da região amazônica, alinhando-a às políticas econômicas dos seus países, será ainda mais premente, de acordo com López, no contexto da recuperação econômica no pós pandemia de Covid-19. Ela defende que a formulação das políticas de gestão dos recursos naturais não mais se restrinjam a abordagens setoriais.
“Políticas isoladas não respondem às complexas inter-relações que naturalmente existem entre recursos naturais e desenvolvimento econômico. Por exemplo, os recursos hídricos produzidos pelas florestas estão fortemente relacionados a vários setores, como energia, alimentação e saúde”, afirma.
A secretária-geral da OTCA sugere ainda que os países se unam em torno de uma política comum de gestão dos recursos hídricos amazônicos. Ela admite que não é fácil a tarefa de criar uma convergência entre os oito países responsáveis pela maior e mais importante bacia hidrográfica do mundo, mas é papel da OTCA assumir esse desafio.
Que futuro se deseja para a Amazônia?
Quem procura uma resposta para essa pergunta é o coordenador da Divisão de Desenvolvimento Sustentável da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), em Santiago, no Chile, José Javier Gomez. Tal busca começou durante um trabalho de avaliação do Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAm) e do Fundo Amazônia. “Nos vários fóruns que realizamos para fazer essa avaliação, a primeira lição aprendida foi que ninguém tem a mesma ideia e nem sequer uma ideia muito clara do que quer exatamente para a Amazônia no longo prazo”, diz.
Concluída dois anos atrás, a pesquisa de Gomez apresentou uma relação de ações pontuais, que seguramente são importantes para o futuro da Amazônia, mas apenas parte de um todo – por exemplo, a necessidade de uma ampla cobertura de sinal de internet para que iniciativas privadas tenham perspectiva na região. “Todos querem o desenvolvimento sustentável da Amazônia mas, ao final, não conseguimos reunir ideias mais claras sobre como isso se dará”, afirma o coordenador.
Há um consenso entre alguns debatedores de que, enquanto esse futuro segue um tanto desfocado, o mais importante é cessar o desmatamento. Conforme observa o pesquisador da Cepal, o Brasil já provou que isso é possível mesmo quando não há uma alternativa produtiva que substitua negócios que desmatam florestas. “É uma grande lição que deve ser motivo de orgulho para o Brasil”, ressaltou ele, referindo-se ao período da década de 2000 e início dos anos 2010. Ele cita também a Moratória da Soja, um acordo entre o setor privado e a sociedade civil para cessar o cultivo do grão em territórios desmatados, como um bom exemplo de arranjo para a região.
O gerente técnico da Conservação Internacional (CI), na Bolívia, Cándido Pastor, crê que respostas podem ser encontradas ouvindo os povos indígenas, inclusive para o desafio global da mudança climática. “Eles são uma parte importante da solução, uma vez que seus territórios estão mantendo estoques de carbono, serviços ecossistêmicos e biodiversidade de forma muito eficiente”, afirma.
Além de poder contribuir no combate à mudança do clima, Pastor ressalta que os indígenas também geram uma eficiência econômica que beneficia seus países. Segundo ele, há estudos comprovando que proteger uma Unidade de Conservação custa, em média, sete vezes mais aos governos do que manter um Território Indígena demarcado. Portanto, apoiar a integridade dos povos indígenas não é nenhum favor. Ao contrário, segundo ele, a sociedade urbana produtora de CO2, é devedora dos povos indígenas.
O gerente da CI também questiona o fato de os indígenas terem pouco acesso aos fundos captados para a Amazônia. “Os discursos nas conferências internacionais em prol da conservação do meio ambiente falam da importância de os povos indígenas terem voz e seu papel na defesa da floresta reconhecido. Mas os mecanismos financeiros para garantir esses direitos quase não são acessíveis a eles”. Ele informa que, nos últimos anos, apenas 5% do Fundo Global para o Meio Ambiente (GEF, na sigla em inglês) chegou às comunidades dos povos indígenas do Brasil, da Colômbia e do Peru.
“Discursivamente reconhecemos o papel das comunidades indígenas na conservação das florestas, mas não criamos mecanismos suficientes para romper algumas barreiras de entrada desses fundos nas comunidades, como a capacitação em administração e a gestão de recursos”, afirma Pastor.
Nas palavras de Davi Kopenawa, pinçadas por Gabriela Carneiro da Cunha, codiretora de A Queda do Céu juntamente com Erik Rocha, “os brancos dormem muito e só sonham com eles mesmos”. O filme baseia-se em livro homônimo, escrito em coautoria pelo líder Yanomami e pelo antropólogo francês Bruce Albert.
Para a cineasta, é importante trazer o pensamento de Davi Kopenawa como uma força geopolítica contemporânea, com seus projetos políticos, sociais, culturais e espirituais, para se encontrarem saídas para Amazônia e para nós mesmos.
“Temos de ler e entender o livro não como uma profecia exótica, mas como diagnóstico e aviso sobre um modo de proceder que precisa chegar ao fim. E também como um convite para outro modo possível, que já está aí e que esses povos estão clamando há muitos anos”, diz ela.
Gabriela Cunha conta que o filme responde a um chamado e a uma convocação do próprio Davi Kopenawa. No livro, ele pede que suas palavras sejam levadas o mais longe possível, para que os brancos possam ouvi-las. “Quando eu e o Erik lemos esse livro, em 2017, imediatamente vimos que ali tinha um filme, porque o pensamento do Davi é todo em imagens e som. Foi o encontro do nosso cinema com o cinema Yanomami”.
A equipe de criação e montagem do filme é composta por indígenas e não indígenas. Segundo Erik Rocha, entre os indígenas estão dois fotógrafos e vários integrantes da produção, além do próprio Davi Kopenawa, que assina o roteiro. No momento, os cineastas estão estudando as 130 horas de material captado para editá-lo, fazendo traduções e tentando viabilizar financeiramente a produção.
Enquanto o filme era rodado, o sistema de monitoramento da floresta identificou um angelim de quase 90 metros de altura no Amapá. A imagem daquele exemplar ancestral trouxe à mente de Jean-Pierre Ometto, pesquisador do Inpe no Programa de Grande Escala da Biosfera-Atmosfera na Amazônia (LBA), uma série de questionamentos, entre os quais, o legado que deixaremos às futuras gerações: “Que trajetórias permitirão perpetuar um legado tão rico e bem cuidado como o que recebemos das comunidades tradicionais amazônicas?
A resposta está, segundo ele, na composição de todos os conhecimentos – os das comunidades tradicionais originárias e os da ciência contemporânea. “Essa é a base para a busca de soluções. Mas o conhecimento só se torna um saber ao ser compartilhado”, diz Ometto. Nesse sentido, vale repetir Kopenawa: “Venham… se aproximem para me escutar”.