Seguimos destruindo áreas naturais em grande escala, mesmo sabendo que não é minimamente razoável seguir por esse caminho de exploração
Por Clóvis Borges*
Alterar comportamentos estabelecidos na sociedade como práticas usuais e plenamente aceitas representa, sem dúvida, um desafio de grandes proporções. As consequências dos desequilíbrios ambientais da atualidade são cada vez mais exacerbadas e dão mostras de que o custo da nossa irresponsabilidade já está passando de todos os limites. Apesar de um cenário cada vez mais complexo, em geral, aceitamos a premissa de que, “no futuro”, saberemos enfrentar com sucesso cenários que coloquem em risco nossa existência, empurrando para frente a perspectiva de enfrentamentos mais consistentes.
Mas parece que as coisas não são assim tão lineares, a partir da forma com a qual temos reagido às mazelas causadas pelo mau manejo da natureza. Os efeitos já estão presentes e causando estragos em todas as direções. Sem produção de natureza não existe qualidade de vida nem negócios, mas evidências, mesmo comprovadas, não mudam cenários.
Seguimos destruindo áreas naturais em grande escala, mesmo que não seja minimamente razoável seguir por esse caminho de exploração espoliativa. E incrementamos, a cada ano, nossas emissões de gases de efeito estufa. Não estamos reagindo adequadamente a esses desafios, apesar das sinalizações muito explícitas de que esses dois temas têm efeitos sinérgicos e que se potencializam de forma a nos causar todo o tipo de problemas, em grande magnitude.
Uma arrogância excessiva, a falta de humildade e a evidente inconsequência, aliadas à existência de interesses próprios de uma fração de nossa sociedade, parecem impedir que mudanças de rumo efetivas sejam colocadas em prática, no tempo e na escala necessárias.
Mudar comportamentos fortemente arraigados não representa uma tarefa simples, em especial, se estamos nos referindo ao estabelecimento de novos limites a serem respeitados.
Se há negócios, mesmo fora da legalidade, que se mantêm viáveis e uma parcela da população conseguindo manter-se em condições aceitáveis nessas condições, é de se esperar que esses atores resistam de forma reticente a quaisquer mudanças de rumo nas regras do jogo.
Seguimos tratando a natureza com grande desrespeito, apesar dos discursos isolados que apregoam novas posturas de corporações e de governos em busca de “sustentabilidade”. Os recentes casos de mineração ilegal de ouro, que destroem e contaminam áreas naturais e condenam à fome e perda de saúde comunidades indígenas, é um caso exacerbado de como uma atividade econômica altamente impactante segue tendo espaço e a aceitação passiva dos diversos setores de nossa sociedade.
Da mesma maneira, a exploração de madeira de nossas florestas e a destruição de áreas naturais, cada vez mais intensa, para ampliação da fronteira de produção de commodities, não parece sofrer qualquer crivo mais contundente. Bem como o uso exacerbado de agrotóxicos e o não respeito ao Código Florestal brasileiro, são práticas que são mantidas a partir da força dos interesses setoriais frente ao interesse público – um valor que parece ter sido propositalmente esquecido num patamar de última prioridade.
Nossa inconsequência, neste particular, não pode ser justificada por falta de informação, mas sim, pela conivência abusiva que estabelecemos como um “normal” aceitável como sociedade. Mesmo cientes de que nos encontramos numa condição de emergência climática global e que o tema da conservação da biodiversidade, igualmente, não pode demandar mais tempo para a tomada de medidas efetivas, resistimos bravamente em aceitar a realidade posta.
As consequências desta postura vêm com a indisponibilidade dos serviços ambientais que são providos pela natureza, atingido a todos, mas de forma diferenciada. Vivemos uma crescente fragilidade, principalmente afetando comunidades menos favorecidas, com os efeitos brutais da mudança climática. A situação da utilização irregular em áreas urbanas é outro exemplo emblemático.
O avanço urbano em áreas de proteção permanente
As medidas necessárias para impedir o avanço de construções em áreas urbanas em regiões impróprias são uma responsabilidade do poder público. Como suporte para que ações coercitivas sejam levadas a cabo, existe legislação bastante consistente para que esse tipo de atividade seja coibida, no entanto, apesar de haver informação e mecanismos apropriados para essas ações de controle e fiscalização, sabidamente as forças contrárias que movem a especulação imobiliária perpassam as responsabilidades do poder público, de forma muito aplicada e eficiente.
Apesar dos prejuízos econômicos e sociais de enorme monta, decorrentes destas situações, mesmo que já tenham ocorrido inúmeros casos de milhares de perdas de vidas em desastres causados pela construção em locais impróprios, somados a ocorrência de chuvas torrenciais, cada vez mais intensas e frequentes, estamos muito distantes de evitar que eventos trágicos como esses sigam ocorrendo, tamanha a displicência com a qual o poder público vem administrando a expansão urbana em nossos municípios. Do outro lado desta corda, estão as pessoas que, em geral, por falta absoluta de alternativa, acabam buscando estabelecer suas moradias em áreas impróprias.
Ocorre uma condição generalizada de desapego com o cumprimento da legislação aliada a assimilação de riscos que não deveriam ser admissíveis em nenhuma hipótese. Essas condições demonstram de forma bastante evidenciada que não estamos sendo minimamente responsáveis em relação à destinação de condições de habitação segura à uma fração significativa da sociedade.
Cabe avaliar com profundidade quais as formas mais efetivas das quais podemos lançar mão para gerar mudanças que já deveriam estar sendo implementadas há décadas em nosso país. Seguiremos em nossa inércia na direção de cenários de um desequilíbrio cada vez mais intenso ou teremos como enfrentar o desafio de enquadrar nossas atividades dentro do que é plausível, buscando evitar avanços na destruição da natureza e a consequente indisponibilidade dos serviços ecossistêmicos?
Uma coisa é certa: estamos demorando demais para reagir e, como sociedade, não estamos apresentando um comportamento capaz de estabelecer uma agenda comum dirigida a enfrentar, efetivamente, a busca pelo equilíbrio entre o conjunto de nossas atividades e a adequada proteção à natureza. Até aqui, não estamos apresentando capacidade para isso, até porque, seguramente, na nossa forma corrente de ver o mundo, o “meu” é muito mais importante do que o “nosso”.
*Clóvis Borges é diretor-executivo da Sociedade de Pesquisa em Vida Selvagem e Educação Ambiental (SPVS).