Pode não ser o melhor corte de cabelo da história, mas com certeza é o mais divertido. Semana passada, fui com minha cara-metade a um cabeleireiro inusitado, repleto de crianças. E elas não estavam na cadeira recebendo cortes, mas sim em pé, executando-os. É o Haircut By Children, performance arquitetada por um grupo de teatro canadense, o Mammalian Diving Reflex, com o objetivo de fomentar a confiança nas futuras gerações.
“No futuro, cada criança receberá um par de tesouras e será convidada a moldar nossos destinos. No futuro, cada criança receberá todos os direitos de cidadania, será encorajada a votar, a ser votada e a dirigir ônibus”, diz o Mammalian Diving Reflex. Ao antecipar-se e oferecer-lhes um par de tesouras enquanto ainda são crianças, o grupo espera incentivar que sejam vistas como indivíduos competentes e criativos cujas escolhas estéticas podem ser confiáveis. A dupla que executou o corte que testemunhei provavelmente não compartilha as minhas escolhas estéticas, mas a experiência foi, no mínimo, diferente.
Logo na entrada, duas meninas muito sérias recepcionavam os “clientes” e, profissionalmente, confirmavam nome, horário marcado e recolhiam assinaturas para um termo de responsabilidade. No salão, duas cabeleireiras-mirins tomaram o controle da situação e, depois de uma bela raspada com máquina 2, usaram e abusaram de coloração para cabelos. Sobraram fios mais longos e um buraco na cabeleira, mas afinal trata-se apenas de … cabelo.
O Haircut by Children foi criado em 2006 como um dos projetos de “acupuntura social” do grupo canadense, que se dedica a atividades para aproximar pessoas diferentes em situações atípicas – digamos que crianças com tesouras em mãos é uma situação assaz atípica. O que Mammalian Diving Reflex quer é causar novas dinâmicas e demonstrar às pessoas que, ao contrário do teatro tradicional onde a platéia assiste e os artistas atuam, é possível haver contato e participação. O grupo descreve seu trabalho como “entretenimento ideal para o fim do mundo” e toma emprestado o nome de uma técnica de preservação de que os mamíferos lançam mão em situações extremas, desacelerando os principais sistemas fisiológicos para reduzir a necessidade de oxigênio e aumentar as chances de sobrevivência.
“Acreditamos que as artes performáticas embutem uma resistência ao totalitarismo do consumismo, simplesmente porque são difíceis de transformar em commodity – se não se pode duplicar, produzir em massa e distribuir, então qual é o valor?”, diz o grupo em seu website. “A resposta está em um atributo único às artes performáticas: o fato de que performer e platéia estão no mesmo lugar ao mesmo tempo. Nosso interesse está em capitalizar esse atributo, encorajando encontros entre corpos viventes e as ideias que eles contêm”.
Antes da performance do Haircut for Children, as crianças de uma escola local receberam treinamento e participaram de conversas sobre direitos das crianças e os significados de performance e arte. Embora a performance seja para crianças, beneficia os adultos que elas se tornarão, acredita o grupo. E, eu acrescentaria, também os adultos de hoje que se dispõem a mirar as crianças com outros olhos – além de, bravamente, disponibilizar suas madeixas para o exercício do futuro.