Tem quem veio pra ficar, tem quem vem e quer voltar, mas um em cada quatro residentes na Austrália é forasteiro
A primeira língua que ouvi quando cheguei na que seria minha casa em Western Australia, em abril de 2007, foi italiano. Uma corrente de animação desceu pela espinha, afinal, filha de imigrantes italianos, embora emigrada duas vezes, a Itália ainda é para mim como uma segunda pátria. Do outro lado da rua habitam vários senhores e senhoras italianos, que, a despeito de muitos anos longe de sua terra, mantêm tradições, costumes, dialetos.
Eu vinha de três anos residindo no Brasil, depois de quatro nos Estados Unidos, país de origem do meu marido, e onde aprendi que, mesmo que não se sinta imigrante, você é visto como tal. Em uma das revisões médicas – de várias que imigrantes têm de passar para ser aceitos em seus novos países –, o médico notou um furo no meu sapato e me chamou de “pobre imigrante”. Ironia à parte, nunca tinha pensado sobre mim mesma dessa maneira, afinal deixei o Brasil por opção, para estar com minha cara-metade. Imigrante, na minha concepção, era alguém forçado pelas circunstâncias a partir para uma nova terra. Meus avós, por exemplo, decidiram transferir a família para o Brasil logo após a Segunda Guerra Mundial, quando a depressão tomou conta da Europa. Tantos como eles rumaram para a Oceania, e ficaram.
A mudança para a Austrália de novo veio sem a sensação de que estávamos imigrando: tratava-se só de aceitar uma oferta para que meu marido lecionasse na universidade aqui. Com o tempo, percebemos que nossos conhecidos eram estrangeiros também, a maioria vindos da Europa, alguns poucos de outras partes. Difícil romper a barreira das impressões, forjar amizades com os australianos e, assim, mais uma vez me dou conta de ser vista como imigrante.
Ao longo do tempo, vemos gente ir e vir de acordo com as marés dos mercados, as forças das economias, desastres naturais, acontecimentos familiares, o que seja. Hoje, um de cada quatro residentes na Austrália nasceu no estrangeiro, mas o próprio Departamento de Imigração admite que nem todos ficarão permanentemente como meus vizinhos italianos, imigrados de outras épocas. Se para os australianos de raiz – ingleses e irlandeses há tempos extirpados de suas terras – ainda somos os “pobres imigrantes”, minha impressão é de fazer parte de um enorme contingente de itinerantes.
OS ORIGINAIS
A sensação de itinerância é forte na Austrália talvez porque a imigração ainda seja assunto que levanta emoções por aqui. Não me esqueço do dia em que vi pela primeira vez, colado em um carro no estacionamento de um shopping center perto de casa, um adesivo com o contorno do mapa da Austrália e os dizeres: “F… off, we’re full”. Em uma tentativa de tradução menos chula, significa: “Vá embora, estamos cheios”. A reação imediata é pensar duas vezes se este é o país para se estabelecer definitivamente. A realidade é que a Austrália é uma nação de imigrantes. A começar pelos aborígenes que, a despeito do nome, teriam desembarcado por aqui há dezenas de milhares de anos – as estimativas variam de 20 mil a 60 mil –, vindos do Arquipélago Malaio*, que hoje engloba partes da Indonésia, Brunei, Timor Leste, Malásia, Filipinas e Cingapura. Só no fim do século XVIII teve início a colonização europeia e, com ela, a grande onda de imigração britânica.
*Conhecido na época colonial como Índias Orientais
Em 26 de janeiro de 1788, atracou no que é hoje a cidade de Sydney a chamada Primeira Frota, trazendo condenados para instituir uma colônia penal. Muitos outros se seguiriam, mas australiano nenhum gosta de ouvir dizer que é descendente de prisioneiros. Hoje, o dia 26 de janeiro é celebrado como Australia Day, embora os aborígenes considerem a data como Invasion Day. Este ano, durante a queima de fogos que toma boa parte de uma hora durante o Australia Day, fiquei imaginando como devem se sentir os imigrantes originais ao ver tão exuberante celebração.
A demanda por detentos e condenados oriundos do outro lado do mundo só amainou quando, em 1851, descobriu-se ouro em New South Wales e a febre espalhou-se pelo país. De uma hora para outra, a Austrália se transformou de colônia penal em terra da oportunidade, com centenas de milhares de pessoas vindas de todos os cantos. Os chineses imigraram em massa e sofreram a discriminação na pele – a grande maioria retornou à China. Apesar disso um dos elementos mais sólidos que restou dessa época é a noção de mateship – a camaradagem entre os aventureiros que saíram país afora cavando por ouro –, hoje considerada traço da identidade nacional.
POVOAR OU PERECER
A partir de 1901, ficou claro quem eram os mates. O que até então eram seis colônias britânicas se juntaram para formar a federação australiana, que imediatamente adotou uma política de imigração “só para brancos”. Não estava escrito na lei com todas as letras, mas o jeito que se deu para evitar a entrada de gente indesejada foi a instituição de um teste no ato do desembarque: um ditado de 50 palavras em uma língua europeia ou à escolha do agente de alfândega do momento. Se o candidato não fosse europeu, a tentativa de imigração invariavelmente acabava em deportação por analfabetismo. Mas, no caso dos europeus, o governo australiano até pagava as passagens e prometia uma terra de oportunidades e futuro – especialmente após a Segunda Guerra Mundial, quando o lema era “povoar ou perecer”.
A política de “só brancos” foi oficialmente desmantelada no início dos anos 1970 e, gradualmente, substituída por uma de multiculturalismo. Mas os ecos que deixou puderam ser ouvidos por muito tempo. Faz pouco descobri que, em 1996, os australianos puderam votar em um partido chamado One Nation, formado por uma ex-proprietária de restaurante fish-and-chips do estado de Queensland, Pauline Hanson, que ganhou assento no Senado com uma campanha anti-imigração. Hanson personifica os rumores que se ouve, tempos em tempos, de que a Austrália vai ser invadida por asiáticos, que não se integram ao restante da população e mantêm suas línguas e seus costumes.
Que diferença faz 15 anos, porém. Há poucos dias o jornal estampava a notícia de que Hanson, que perdeu uma sucessão de eleições nos últimos anos, decidiu emigrar de volta para a terra de seus avós, a Inglaterra. Resta saber como será recebida como imigrante por lá. Milhares de asiáticos e outros forasteiros devem respirar aliviados por aqui.
Como resultado do multiculturalismo e das demandas do mercado de trabalho – é mais fácil imigrar se você fala inglês, tem competência específica e, melhor ainda, um empregador te esperando –, a Austrália é hoje um dos países mais diversos etnicamente. Isso não quer dizer que a interação entre tantas etnias seja tranquila, ou mesmo pacífica. Em 2009, uma série de atentados contra estudantes indianos e um continuum de barcos de refugiados – em grande parte asiáticos – chegando em águas australianas reacenderam o debate sobre imigração. Sete milhões de pessoas imigraram para a Austrália desde 1945 – de quantos imigrantes a Austrália ainda precisa?
QUANTOS SÃO MUITOS?
Um relatório lançado em fevereiro pelo governo projeta que a população vai crescer dos atuais 22 milhões para 35,9 milhões em 2050, a maior parte devido à imigração. As novas chegadas compensam, em parte, o envelhecimento da população que já estava aqui, mas, como outros países desenvolvidos, a Austrália precisa custear assistência de saúde e aposentadoria para uma crescente massa de idosos. Também é difícil manter a economia sempre crescendo se, sem imigrantes, a força de trabalho diminui a olhos vistos.
De outro lado, as mudanças climáticas prometem tornar ainda mais seco o que já é o continente mais seco habitado. Os ambientalistas e suas previsões catastróficas estão quase no posto de inimigo número 1 dos que defendem uma Austrália aberta aos imigrantes e multicultural – segundo estes, a questão ambiental é apenas desculpa para restringir a entrada e trazer apenas os poucos imigrantes que se deseja.
Enquanto ambos os lados – pró e contra imigração – se digladiam, para imigrantes e itinerantes como nós a tarefa é de adaptação. Traz imenso consolo ver que tem gente que, para equilibrar, prefere exibir colado no carro um adesivo que diz: “Venha, sim, temos muito espaço”.
Aprender como funciona a vida de outro povo, com costumes e tradições diferentes, é sempre instigante, mesmo que algumas vezes, frustrante. O sotaque australiano, quase incompreensível no início, aos poucos já me soa quase tão familiar quanto o americano. Carne de canguru entrou para o menu e piquenique e churrasco ao ar livre – pasmem, os parques oferecem churrasqueiras públicas! – viraram favoritos. Tem a preocupação com a água, tão escassa, o incômodo dos verões quentes e secos, mas também a possibilidade fácil de desfrutar de uma natureza única e, se distante o suficiente da cidade, quase intocada. E tem também a visita ao pub da esquina, com o pint de fim de dia, para jogar conversa fora e, quem sabe, ser chamada de mate por alguém.
Mas, talvez como milhares de tantos outros que vieram como imigrantes ou itinerantes, no fundo, o que acalento silenciosamente é, um dia, voltar para casa.