Uma vez, quando tinha acabado de me mudar para Paris e procurava abrigo, liguei para uma senhora que alugava quartos na sua casa. “Ahhh, você é brasileira?”, perguntou. “Sim”. “Brasileira, brasileira?”, insistiu. “Sim”. “Brasileira, brasileira, mesmo?”, continuou, e eu começando a perder a esportiva. “Sou brasileira, minha senhora. Meus pais também são brasileiros, mas meus quatro avós eram europeus”. “Ah, então maravilha: venha ver se gosta do quarto”. Eu, claro, recusei e saí à francesa.
O ótimo artigo Imigrantes e Retirantes, publicado pela Flávia na última Página 22, me levou a relembrar minhas venturas e desventuras de expatriada. Como a Flávia, uma imigrante voluntária, branca, fluente em outras línguas e com nível universitário – mas, ainda assim, expatriada.
Viver por um tempo ou pelo resto da sua vida em outro país é, em muitos casos, uma experiência fascinante. É um banho de imersão numa realidade paralela em que você é estimulado por todos os lados.
É fascinante, mas também perturbador. Por mais viajado e globalizado que você seja, não compartilha um volume enorme de informação com as pessoas que o circundam. Vira motivo de chacota porque pronunciou errado alguma palavra obscura. Não entende as regras do esporte nacional, nem para que time tem que torcer. Nunca ouviu falar de políticos e celebridades que despertam, nos seus interlocutores, sentimentos e opiniões passionais. E você fica lá, tentando reconstruir mentalmente esse passado que não lhe pertence, para poder participar da conversa.
Naturalmente, quando você não faz parte da panelinha, está muito mais exposto.
A Flávia comenta sobre o médico da imigração que viu o furo no seu sapato e inferiu que ela era uma “pobre imigrante”. Pois na minha cidade tem um único médico responsável pela emissão de relatórios para a imigração. Se ele levantar o polegar, você fica no país. Se baixar, porque tem uma das doenças que o Tio Sam considera indesejáveis (eu lembro que a lista incluía tuberculose e sífilis), você está fora do jogo. Meu advogado já havia dito que talvez eu preferisse buscar um médico em outra cidade, mas não entendi bem a mensagem. No dia da consulta, ele foi muito rude, mas me aprovou sem problemas, talvez porque àquela altura eu já era casada com um norte-americano. Com uma amiga, uma argentina para lá de curvilínea e solteira, foi pior. Depois de muita apalpação da cintura para cima, ele exigiu que ela tirasse a roupa para um “exame ginecológico” – coisa que não tive de fazer. Ela mentiu, dizendo que estava num daqueles dias. Ele pediu que ela voltasse para o exame num outro dia. Veronica voltou – com uma amiga que não desgrudou de sua saia um minuto. O médico disse que, pensando bem, era melhor deixar o exame para lá.
Imigrar exige sangue frio e muito jogo de cintura. Você está exposto a preconceitos (positivos ou negativos) o tempo todo. Cansei de ouvir – inclusive de gente letrada, em encontros promovidos pela ONU, insinuações sobre a hipersexualidade das brasileiras. Tenho um cunhado que não cansa de fazer comentários que aludem à floresta de onde venho (e olha que ele visitou São Paulo). Mostra uma máquina de lavar louças e fala: “vocês não tem dessas na sua terra, não é?”. Outras vezes, quando falo em português com a minha filha, pergunta porque expor a pequena a uma “língua tão horrível”. Ninguém merece.
Os preconceitos positivos são um pouco melhores, mas cansativos a longo prazo. Boa parte das pessoas que eu encontro pela primeira vez cantam para mim a “Garota de Ipanema” e dão uma piscadinha, como que dizendo “estou super por dentro da sua cultura”. E o que dizer da mulher que me prestou solidariedade pelo terremoto no Chile?
Definitivamente, imigração não é brinquedo.