As escolhas que temos feito não passam de variações do mesmo tema, restritas a um único conjunto dentro do universo
Fico incomodado com o bordão “liberdade de escolha”. Hoje, bastante relacionada a mercadorias, a expressão traz uma ideia falsa – já que o consumo se inscreve em limites bem definidos – que relegou o sentido positivamente anárquico das escolhas ao segundo plano.
Em nosso dia a dia, temos a todo momento opções 1, 2, 3, 4… em menus, gravações, planos, pacotes e definições de produtos e serviços que dariam aquela sensação de o mundo se adaptando a nossas necessidades e gostos. Você analisa com parâmetros próprios e passa à próxima etapa. Ok. Enter.
Senha. Assinatura. A propaganda dizia que, consumado o ato, você entraria em um estado de êxtase. Mas aposto que um plano cliente especial bônus plus de celular na verdade nos proporcionará em breve um suspiro enfadonho. Não é para menos. Rotina em demasia é difícil de suportar. Recorro à imagem de conjuntos matemáticos para explicar melhor.
Pensamos escolher coisas diferentes em um universo infinito e em quebrar com a mesmice. Mas, se reparamos bem, estamos sempre optando por elementos do conjunto C (onde C = Consumo). E aquela emoção diferente, prometida pela propaganda, está distante, contida em outros conjuntos que não C, espalhados pelo universo (U).
E se em vez de comprar aquele aparelho novo você escolhesse coisas na sua casa que estão encostadas para trocar via escambo eletrônico (alguns exemplos: xcambo, trocaster, freecycle, paperbackswap, gameswap) Pelo aparelho de outra pessoa? E se decidisse que comprar aquela peça de madeira não seria mais essencial do que levar as crianças na praça para plantar uma muda? E se abdicasse do slogan “eu consumo mesmo que a qualidade de vida na minha cidade piore”? Em vez de escolher um carro novo, com IPI reduzido, você poderia escolher os dias da semana em que o carro usado ficaria na garagem para você ir a pé, de bicicleta, ônibus, metrô, trem ou pegar uma carona.
Com alguma criatividade, começa a aparecer uma série de opções que não passam pelas de consumo – mas pelas opções fora do consumo. Algo saudável numa economia em que até o corpo virou nicho de mercado. Na área de serviços temos cabeleireiros, clínicas e academias prometendo milagres para que esse produto básico que é seu corpo se torne um master plus, como só se vê na mídia. Na área de produtos, químicas e adereços prometem o mesmo aprimoramento.
Nada contra o cuidado de si. Michel Foucault mostra que esse conceito segue a cultura ocidental há muito tempo. Já foi identificado com a experiência dos prazeres nos gregos, que determinava a ética da moral antiga; passou depois pela concepção cristã da experiência da carne – e a repressão a ela associada -; e chegou à experiência moderna da sexualidade, com todo o teor de controle que o conceito permite e que os padrões estéticos de hoje ajudam a reforçar.
O discurso atual pró-saúde, bem-estar e beleza parece criar mais uma neurose coletiva de padrões inatingíveis – que criam uma demanda sem fim por novas opções de produtos e serviços para o corpo – do que um estímulo ao equilíbrio físico e à propriocepção, que podem muito bem ser atingidos com uma boa aula de dança.
Quando penso nisso, tenho em mente um texto de Jean Baudrillard em que chama atenção para a possibilidade de contornarmos os sistemas à primeira vista hegemônicos – como uma espécie de jogo de corpo da capoeira, de passar pela tangente. Para o filósofo, é explorando o que não foi explorado pelo sistema que encontramos opções reais de constituir algo novo.
Céu se torna o limite. Aliás, uma fronteira da nossa existência, já que mantendo o consumo em níveis atuais, o patrimônio que chamará atenção é o carbono acumulado na atmosfera.
Ricardo Barreto é coordenador de comunicação do Gvces, bacharel em Relações Internacionais com especialização em Jornalismo e bailarino contemporâneo