Quando o economista bengali Muhammad Yunus resolveu emprestar dinheiro do próprio bolso para os produtores rurais de uma comunidade pobre perto de Daca, não foram poucos os que o taxaram de utópico ou mesmo louco. Ninguém honraria esse tipo de compromisso. Tratava-se de um Bangladesh pobre, que em 1976 acabava de emancipar-se do domínio paquistanês.
As previsões pessimistas, no entanto, não se efetivaram. O programa de financiamento tomou corpo e inspirou a criação do Grameen Bank, a primeira instituição de microcrédito do mundo. As experiências foram um verdadeiro sucesso: dinamizaram a economia da região e geraram renda nas camadas mais baixas, diminuindo a pobreza. Tudo com uma inadimplência de menos de 2%.
A prática rodou o mundo e foi o tema do ano de 2005 na ONU. O que não se imaginava, porém, é que o objetivo inicial do projeto de Yunus poderia enfrentar, depois de alguns anos, a influência da especulação financeira e assumir, em certos países, um caráter contraposto ao inicial, transferindo-se de uma função social a uma boa alternativa de lucratividade para uma série de instituições bancárias.
Em países como Nigéria e México, como indica matéria do The New York Times, certos bancos têm oferecido empréstimos de pequenos valores a taxas extremamente elevadas. O banco mexicano “Te creemos” (por ironia, em espanhol, “Acreditamos em você”), chega a cobrar taxas de juros anuais superiores a 125%.
Yunus reagiu ao oportunismo dessas instiuições: “O microcrédito deve ser visto como uma alternativa para ajudar as pessoas a saírem da pobreza por meio de uma forma de negócio, não como uma oportunidade para se ganhar dinheiro com os pobres”.
No Brasil, cenário diferente
Enquanto nos casos do México e da Nigéria a oferta das linhas de financiamento é elevada – em mercados de regulação menos rígida –, no Brasil, o caso é o inverso: a oferta é baixa, mas há um teto estipulado para as taxas de juros desse tipo de crédito, por conta de um sistema financeiro com forte presença regulatória em praticamente todos os seus segmentos, associado à própria estabilidade econômica alcançada pelo País nos últimos anos
Por aqui, as discussões se concentram nas formas de incentivar a prática e promover, com força, essa modalidade de crédito. Segundo especialistas, embora sejam muito pequenos os riscos de uma especulação desenfreada sobre os juros do microcrédito, o sistema financeiro do País não está preparado para atender à alta demanda por esse tipo de financiamento.
Os programas dos bancos privados ainda são muito modestos no valor disponibilizado. O volume maior atual vem dos bancos públicos, que repassam o dinheiro diretamente ao interessado – por meio de programas específicos de microcrédito – ou financiam outras instituições, como ONGs, OSCIPs, sociedades e cooperativas de crédito que oferecem linhas de concessão de empréstimos a juros baixos.
Para incentivar os bancos privados a oferecerem essa modalidade de financiamento, o governo aprovou em 2005 a lei nº 11.110, que instituiu o Programa Nacional de Microcrédito Produtivo Orientado. A regulamentação define que 2% dos depósitos à vista dos bancos podem ser aplicados em programas específicos de microcrédito produtivo.
Isso significa que, do dinheiro que uma insituição bancária deve depositar no Banco Central (BC) – que exige uma determinada porcentagem de tudo o que um banco recebe –, 2 % podem ser utilizados pela instituição para conceder esse tipo de crédito. Fica a critério dela decidir se vai ou não aplicar esse valor em linhas de microcrédito. Caso não o faça, a instituição não pode usá-lo em outro tipo de operação, devendo então devolvê-lo ao BC.
“A lei foi uma tentativa para estimular os bancos a criarem sistemas de microcrédito produtivo, possibilitando o acesso das camadas mais baixas à conta bancária”, afirma Elvira Ventura, gerente do Projeto de Inclusão Financeira do Banco Central.
Mas a regulamentação trouxe consigo outras determinações que, para alguns especialistas, acabaram inviabilizando o oferecimento desses empréstimos pelos bancos. Pela lei, a linha de microcrédito produtivo não pode trabalhar com uma taxa de juros superior a 4% ao mês. Além disso, na concessão do financiamento, o banco deve contar com uma estrutura treinada para efetuar o levantamento socioeconômico do cliente e orientá-lo sobre o planejamento do negócio. Os bancos, no entanto, não se interessam por esse tipo de programa e, cerca de 50% de um montante que poderia engordar as linhas de microcrédito, aproximadamente R$ 1 bilhão, acabam não utilizados e devolvidos para o Banco Central.
“Os bancos brasileiros convivem com uma série de outras modalidades de crédito mais rentáveis que os programas de microcrédito definidos pela lei. Os problemas não estão apenas na taxa de juros, mas em toda a estrutura que os grandes bancos, acostumados a lidar com as classes média e alta, devem preparar para lidar com as classes mais baixas”, revela Eli Moreno, especialista em microcrédito produtivo e diretor da EMS Consultoria Financeira.
Postura equivocada seria relegar aos bancos privados o papel de promotores de renda, diz Moreno. Para ele, essas instituições estão inseridas em uma conjuntura de mercado diversa, marcada pela forte concorrência e orientada pelo objetivo principal da lucratividade. Tal tarefa seria atribuição fundamental do setor público, que, com instituições como o BNDES, a Caixa Econômica Federal e o Banco do Brasil, poderia agir de forma mais atuante nesse setor, aumentando os valores destinados a programas de microcrédito.
Futuro animador
Apesar do imbróglio entre responsabilidade pública e privada, podem-se assinalar também os reconhecidos avanços que o microcrédito têm conquistado no País. As estatísticas mostram um aumento significativo no número brasileiros atendidos. Entre 2001 e 2009, o total de clientes saltou de 160 mil para cerca de 700 mil em todo o país, um aumento de mais de 337%.
“Se esse segmento de mercado continuar crescendo nesse ritmo, poderemos zerar a demanda de clientes em 10 anos”, afirma Lauro Gonzalez, coordenador do Centro de Estudos em Microfinanças da FGV . O professor ainda alertou para a necessidade de um crescimento mais contínuo e sustentado do que propriamente elevado. Para ele, um boom no oferecimento dessas linhas de empréstimo poderia trazer consigo problemas sérios, como a inadimplência.
Apesar dos dados, há ainda um mercado potencial enorme para explorar. Segundo Gonzalez, há cerca de 8 milhões de microempreendedores elegíveis ao crédito, com apenas 10% desse total sendo atualmente atendido. Para o professor, uma das medidas que ajudariam a incrementar esse índice seria maior agilidade nos financiamentos públicos das OSCIPs reconhecidas pelo bom trabalho na concessão dessas linhas de financiamento.
O caminho mais animador estaria relacionado à criação de bancos específicos de microcrédito, uma alternativa ainda inexistente no Brasil – o próprio Grameen Bank seria a maior inspiração. Tais instituições teriam como objetivo central o oferecimento desse tipo específico de financiamento, já pré-concebido no mundo dos baixos juros. Bancos nesse formato estariam mais preparados para oferecer toda a estrutura social e econômica que envolve o microcrédito produtivo. “Os bancos microfinanceiros são uma alternativa bastante promissora. Seriam novos players no segmento e com potencial de representar uma grande mudança no mercado”, afirma Gonzales.