A euforia com as usinas do rio Madeira toma conta de empresários e comerciantes, enquanto cresce o temor de que a empreitada repita antigos erros de um modelo não sustentável de desenvolvimento
Antônio Luiz Almeida poderia ser considerado um aventureiro. Há um ano, o empresário do ramo de hotelaria abandonou o pólo turístico de Porto Seguro, na Bahia, para abrir um hotel na “não tão turística” Porto Velho. Para isso, investiu integralmente o capital que acumulou durante toda sua vida (cerca de R$ 200 mil) e se diz muito satisfeito com a troca: “Porto Velho é um lugar a desenvolver. É muito boa a oportunidade de negócios”. Seu sócio, Jair Alves Lima, complementa: “Isso aqui é um eldorado”.
Jair e Antônio fazem parte de um fenômeno, misto de euforia e preocupação, que tomou conta da capital rondoniense, graças à expectativa de construção do complexo hidrelétrico do Rio Madeira. O projeto, um dos maiores do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), defendido pelo governo federal como única alternativa diante da nova ameaça de ‘apagão’, é composto pelas usinas de Santo Antônio e Jirau. Juntas, vão representar 6.450 MW de potência instalada e podem gerar cerca de 10% da energia consumida hoje no País. Durante dois anos, a questão provocou um dilemma entre as preocupações com os impactos ambientais que uma obra de R$ 25 bilhões pode causar em plena Amazônia e o interesse nacional pelo incremento do parque energético. Entretanto, uma subtrama que permaneceu quase apagada durante esse período agora começa a se desenhar, e diz respeito às conseqüências sociais do crescimento da cidade de Porto Velho.
“Acreditamos que o resultado final deva ser positivo, com a geração de empregos e melhoria na indústria local, especialmente a do agronegócio”, aposta Antônio Marrocos, consultor técnico da Federação das Indústrias do Estado de Rondônia (Fiero). Essa organização, em parceria com a Federação do Comércio de Rondônia (Fecomercio), fundou ainda este ano o Comitê Pró-Usinas. O sucesso da campanha promovida pelos empresários pode ser observado nas ruas. Em muitos carros, vê-se o adesivo distribuído pelo comitê, reflexo da expectativa de desenvolvimento provocada por um empreendimento dessa envergadura. Vários outdoors também foram afixados, por diferentes políticos locais, em comemoração à Licença Ambiental Prévia, concedida pelo Ibama em junho deste ano.
Se por um lado o aumento do mercado consumidor anima os negócios, por outro, a sobrecarga de demandas por serviços públicos preocupa. Os movimentos sociais locais estimam que Porto Velho receberá um fluxo migratório de 100 mil pessoas durante as obras, atraídas pela oportunidade de emprego. Em Porto Velho, somente a metade dos cerca de 380 mil habitantes recebe abastecimento de água (os demais utilizam poços artesianos), 98,9% não têm acesso à rede de esgoto e há um défi cit de aproximadamente 13 mil novas moradias. Esses dados correspondem a um levantamento realizado pelo Instituto Pólis.
O movimento de migração em busca de emprego pode ser explicado a partir da realidade social na região. Segundo estudo do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), 45% da população na Amazônia Legal vive abaixo da linha da pobreza, com menos US$ 2 por dia, e ainda atrai de mão-de-obra ociosa de outros estados mais pobres, como Maranhão e Piauí.
Para Artur Moret, coordenador da Campanha Rio Madeira Vivo, de oposição às usinas, Rondônia viverá a repetição de um ciclo: “Na década de 70, teve a migração pra cá, que foi uma reorganização do espaço. Em 80 e 90, o garimpo também foi outra reorganização. E as pessoas têm essa noção. Eu não sei como é que eu vou viver depois, porque vai mudar tudo”.
Em seu parecer sobre os impactos das usinas no meio urbano, o Instituto Pólis expressou preocupação com a questão dos empregos. Isso porque a alardeada criação de 20 mil postos de trabalho em cada empreendimento no pico das obras dura apenas um mês. Em verdade, apenas 1.500 empregos fi xos serão criados, justamente os de maior capacitação técnica, que normalmente são ocupados pelo próprio quadro de funcionários dos empreendedores, nesse caso, o consórcio formado pelas empresas Furnas e Odebrecht. Embora sejam autoras do projeto, terão de disputar o leilão com outras empresas.
“Um impacto bem negativo é que um grande número de pessoas que serão contratadas fi carão sem emprego em pouco tempo. Não se está planejando nem prevendo recursos para atender essa população. Da mesma forma que se preocupam com os peixes do rio, teriam que se preocupar com ela”, alerta Nelson Saule Junior, pesquisador responsável pelo parecer. Até o fechamento desta reportagem, as assessorias de imprensa de Furnas e Odebrecht não designaram ninguém que pudesse comentar o caso.
Tudo isso é mais do que poderia explicar o assistenteadministrativo do escritório de
Furnas em Porto Velho, Aildo Venâncio. É ele o responsável por encaminhar os currículos que são entregues na portaria e que hoje formam um arquivo de mais de 10 mil exemplares. “E todo dia chega mais gente”, declara.
Para capacitar a população, a Secretaria Municipal de Desenvolvimento Socioeconômico (Semdes), em parceria com o Sesc e o Senai, abriu 72 cursos voltados para qualifi cação profi ssional em construção e também na área de serviços. Três mil pessoas foram inscritas e outros milhares tiveram de fi car de fora. “Essa é apenas a primeira fase, em que começamos a gastar os recursos repassados pelo PAC (cerca de R$ 545 milhões, dos quais R$ 1,3 milhão foi investido nos cursos). Também vamos fazer com que o empresário local possa trabalhar a demanda por produtos dessas novas pessoas”, explica Flavio Nogueira, secretário-adjunto.
O aumento da população também se reflete no mercado imobiliário. Segundo o Conselho Regional dos Corretores de Imóveis (Creci), houve aumento de 30% nos preços de imóveis e terrenos. Em um município onde predomina a falta de regularização fundiária, esse aquecimento de preços se traduz em desmatamento e grilagem. De acordo com a Associação de Defesa Etnoambiental Kanindé, nos últimos dois anos houve um agravamento das invasões em terras indígenas do estado. Mas talvez o exemplo mais expressivo esteja no distrito de Jaci-Paraná.
Canteiro de obras
A paisagem típica de uma comunidade simples, com ruas de terra, casas de madeira e pequenos estabelecimentos comerciais, contrasta com a enorme quantidade de placas anunciando a venda de imóveis e lotes. Durante uma visita de duas horas, a reportagem encontrou dezenas de exemplos. Contudo, a súbita valorização de terras em Jaci-Paraná é explicável: trata-se do centro urbano mais próximo do futuro canteiro de obras da usina de Jirau, de onde serão demandados serviços como hotéis, bares e restaurantes.
Há dois anos, o povoado era composto de cerca de 600 domicílios. Hoje são mais de 2 mil e o administrador municipal, Jurandir Rodrigues, não agüenta mais ouvir reclamações: “Não tem vaga nas escolas, atendimento de saúde, não tem nada. O povo chega aqui achando que vai ganhar um terreno e que, depois, o governo regulariza. Mas só tem terreno pra vender e está cada vez mais caro”. Tal comércio, entretanto, é ilegal, já que o distrito está inteiramente situado em terras da União.
Para Roberto Smeraldi, diretor da ONG Amigos da Terra, desdobramentos como esses são comuns em grandes obras na Amazônia. Como exemplo, cita a usina hidrelétrica de Tucuruí, no Pará: “Em trinta anos, sete municípios novos se formaram ali, o que representa 420 mil pessoas a mais. Esses municípios não têm arrecadação própria. E só os royalties da obra são insufi cientes para fazer frente às necessidades sociais”.
Em Rondônia, pelo menos um grupo de pessoas certamente terá suas vidas modifi cadas para sempre. São os ribeirinhos, que deverão ser deslocados pelas barragens. O consórcio trabalha com estimativa de 2 mil pessoas, mas as ONGs locais apostam em 10 mil. No distrito de Mutum-Paraná, uma das comunidades em vias de desaparecer, há quem se anime com a possibilidade da transferência para uma nova localidade. “Eles (Furnas/ Odebrecht) prometeram fazer a Nova-Mutum, com escola, asfalto, parque, tudo”, comemora a administradora municipal Rosilene Prestes.
Mas a desconfi ança também assombra a comunidade e, enquanto não se defi nem as empreiteiras encarregadas da obra, não há garantias. Rubinho Luis Benarroque mora há 40 anos em Mutum, onde tem um restaurante que construiu com as próprias mãos. “Foi aqui que eu fi z a minha vida. Se a minha opinião valesse, eu não queria sair, mas a gente é pequeno, né?”, lamenta.
Diante de um destino duvidoso, uma coisa é certa. Conforme atesta a Gerência Regional do Patrimônio da União, as margens de rios pertencem ao Estado. Uma vez deslocados, os moradores só terão direito à indenização por suas casas e plantações, mas não receberão nada pelas terras que perderem. Enquanto aguarda o desfecho fi nal, Seu Rubinho decidiu aproveitar o melhor da vizinhança com o rio e construiu um córrego ao redor do seu restaurante, por onde passam grandes peixes de cauda vermelha, chamados pirarucu. “Mas aqui a gente não pesca”, garante o ribeirinho, “senão acaba a boniteza”.