Previsões que reforçam a velha civilização do petróleo contradizem a necessidade de lançar o sistema econômico-ecológico sobre novas bases. Para o Brasil é a grande oportunidade de liderar a transformação para uma economia de baixo carbono, mas falta uma articulação nacional
Por Amália Safatle
Foi nos intervalos entre subidas e descidas de avião que o secretário-executivo do Fórum Brasileiro de Mudanças Climáticas falou a Página 22. Luiz Pinguelli Rosa, físico, diretor da Coppe, que reúne os cursos de pós-graduação em engenharia da Universidade Federal do Rio Janeiro, sabe que a reengenharia energética necessária ao combate do aquecimento global é mais complexa do que podem dar a entender as mensagens das empresas petrolíferas, por exemplo, em seus websites, pontuados por campos floridos e pessoas sorridentes.
“Acabo de desembarcar de um avião, então não vou botar a culpa toda na Shell. A questão é que a sociedade está montada sobre a energia fóssil”, afirma o secretário. Mas, se o colapso dos mercados serve como um ruidoso wake-up call de que o sistema econômico-ecológico em que vivemos no planeta precisa ser relançado sobre novas bases, nada mais fundamental que rever o combustível que deve girar novos motores.
O histórico de relacionamento entre a civilização e sua primordial fonte energética é extenso e íntimo demais para que em um estalar de dedos tome rumos radicalmente diferentes. Tão íntimo que estamos falando de moléculas de carbono, das quais o petróleo é feito tanto quanto nós e demais seres vivos. Entretanto, é justamente o carbono lançado na atmosfera de forma descontrolada que se tornou a maior ameaça da vida na Terra.
Energia altamente concentrada em forma líquida, com ocorrência nos quatro cantos do mundo e capaz de ser utilizado em todos os países, o petróleo prestou-se a mover a economia mundial com escala, preços globais e eficiência. Finito é, mas há controvérsias quanto à data em que se esgotará ou se tornará tão difícil de extrair que até as mais avançadas tecnologias não conseguirão garantir sua viabilidade comercial.
Se a oferta é discutível, a demanda, mais cedo ou mais tarde, será objeto de certeza, acreditam alguns especialistas. “Os governos a cada dia vão impor maiores restrições à emissão de gases de efeito estufa, a pressão da opinião pública vai aumentar e o carbono começará a ser ‘precificado’ na cadeia produtiva”, diz Marco Antonio Fujihara, presidente do Instituto Totum, consultoria voltada para a sustentabilidade, e conselheiro superior de meio ambiente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo.
É o caso, cita ele, das “pegadas de carbono” que produtos vendidos nos supermercados ingleses começam a estampar nos rótulos, e colocam no radar do consumidor consciente a quantidade de emissões liberada no processo produtivo de cada item das prateleiras. Para Fujihara, o cenário de restrições ao petróleo e derivados, assim como seus pares fósseis carvão mineral e gás natural, terá uma virada muito rápida. Ele faz um paralelo com o mercado de alimentos orgânicos, que até cinco anos atrás era praticamente inexistente e já começa a amadurecer, em taxas contínuas de crescimento de 30% ao ano.
Mas tal avaliação não é exatamente a refletida nas previsões de matriz energética divulgadas em documentos como International Energy Outlook, com base em informações cedidas pelos países.
Tudo como dantes?
Conforme essas estimativas, a participação do petróleo e do gás natural deve cair apenas 4 pontos percentuais em um horizonte largo, passando de 61% para 57% até 2030. É um tanto aflitivo, ainda mais diante de informações do Programa da ONU para o Meio Ambiente, segundo as quais a emissão de dióxido de carbono nos últimos sete anos supera as piores estimativas do Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática (IPCC), enquanto a elevação do nível dos oceanos também supera as previsões.
Hoje, apenas 13% da energia primária produzida no mundo é renovável. Os demais 87% dividem-se em petróleo, gás natural, carvão mineral e energia nuclear. No Brasil, a proporção é de 45% (renovável) para 55%, relação que tende a ficar estável, segundo Leonardo Caio, coordenador-executivo da Pós-Graduação em Negócios de Petróleo, Gás e Combustíveis da Fundação Instituto de Administração (FIA). Por mais que as petrolíferas anunciem sua transformação em empresas de energia, a participação de fontes renováveis nos investimentos totais ainda é diminuta.
“Nós bem que gostaríamos, mas a matriz energética no mundo não vai mudar significativamente em menos de 30 anos”, diz Saul Suslick, diretor do Centro de Estudos do Petróleo (Cepetro), da Unicamp. Isso basicamente por uma questão de escala, explica o professor. Não há ainda substitutos à energia fóssil capazes de atender a uma economia globalizada, por isso não florescem com a força de uma commodity como o petróleo. Fontes alternativas que são sucesso em um país, não o são em outro. “No Brasil, o etanol deu certo, mas na França faltou posto, houve gargalo na distribuição.” Outras fontes não são tão renováveis como parecem.
O sol é inesgotável, mas as células fotovoltaicas, pela atual tecnologia, dependem de elementos finitos na natureza, como irídio e ósmio. A eólica não se presta a qualquer lugar, depende de ventos e, segundo Caio, da FIA, tem um aproveitamento energético baixo, de 20%, em relação a sua capacidade instalada. Para efeito de comparação, o índice de aproveitamento nas grandes hidrelétricas é de 52%, e, nas usinas nucleares, de 95%, em média.
Com isso, a transição para fontes mais limpas deve ser mais lenta que o desejável, e caminhar gradualmente para um portfólio variado de fontes adequadas às particularidades de cada país, diz Suslick, do Cepetro. É de perguntar o quanto as mudanças climáticas e o agravamento da crise ambiental, ao tocarem fundo nas preocupações humanas, serão capazes de impor um ritmo mais acelerado ao desenvolvimento de alternativas capazes de suprir uma economia de baixo carbono, com tecnologias economicamente mais viáveis e menor consumo de energia.
O governo do Equador, por exemplo, inova ao propor uma forma de geração de valor para a não exploração do petróleo no Parque Nacional de Yasuní, reconhecido pela Unesco como Reserva da Biosfera, dotado de altíssima diversidade biológica – só as espécies de árvores catalogadas somam 644. É a chamada “reprecificação de ativos”, expressão usual nesses tempos de crise, levada às últimas conseqüências.
A proposta do presidente Rafael Correa, lançada no ano passado – mesmo quando o petróleo ainda estava bem cotado no mercado internacional -, é receber de outros países uma quantia de US$ 350 milhões por ano, durante dez anos. Em troca, deixará de extrair 1 bilhão de barris de petróleo que dormem sob Yasuní, equivalentes a um quarto das reservas totais do país, e dará garantias de que a floresta será preservada e a comunidade local protegida – além de a emissão de carbono evitada.
Os Certificados de Garantía Yasuní, emitidos pelo governo equatoriano, poderiam ser negociados no mercado europeu de carbono. Trata-se de uma sofisticada idéia, pois eleva o debate sobre a criação de valor para a conservação a patamares ocupados pelo rentável petróleo. No caso do Brasil, país que também reivindicou – e obteve da Noruega – recursos internacionais para evitar emissões na Amazônia, a moeda de troca é o combate ao desmatamento, uma atividade de baixo valor econômico agregado.
Mas, embora a iniciativa equatoriana tenha sido elogiada por países como Alemanha, Espanha e Itália, nenhum acordo foi fechado ainda, para uma proposta que expira no final do ano. E, com as nuvens carregadas espalhando-se nos céus da economia por todo o globo, tem menos chances de sair do papel.
Enquanto isso, no Brasil…
O presidente Lula vê a indústria automobilística e o incentivo à compra de veículos como instrumentos para evitar o desaquecimento da economia. Assim, bancos oficiais devem entrar em ação e tornar mais “agressivo” o financiamento ao consumidor.
O pequeno exemplo indica como ainda se recorre a velhos “motores” para acionar a economia brasileira. Pelo que se apurou na reportagem a respeito do Plano Nacional de Mudanças Climáticas, a discussão da sociedade sobre o combate ao aquecimento global ainda se concentra muito no desmatamento da Amazônia, enquanto falta uma clara diretriz nacional no tocante à questão energética que conjugue, na opinião de Fujihara, do Instituto Totum, um necessário debate anterior sobre o modelo de desenvolvimento econômico e a política industrial que se almejam para o País.
Com uma matriz energética menos suja que na grande parte do globo, o Brasil pode liderar o desenvolvimento de uma economia mais sustentável e de baixo carbono, neste momento em que o mundo parece disposto a reavaliar modelos.
Mas o Plano Nacional de Mudanças Climáticas, sentado sobre dados segundo os quais 75% das emissões são geradas pelo desmatamento e apenas 25% pelo consumo de energia, traz propostas consideradas risíveis, como a troca de 10 milhões de geladeiras por modelos mais eficientes energeticamente. (E ainda há dúvidas de que essa proporção valha até hoje, pois se baseia no inventário de emissões datado de 1994.) Um ano de emissões evitadas com a troca dos eletrodomésticos equivaleria a menos de três dias de desmatamento da Amazônia.
Na visão de Celio Bermann, professor do Instituto de Eletrotécnica e Energia (IEE) da USP, sem uma política pública focada e consistente, o nascimento de uma economia “verde” no Brasil ficará ao sabor do mercado, por enquanto – ou cada vez mais – avesso ao crédito e a riscos de toda sorte. E assim os empregos “verdes” no Brasil pouco irão além dos cortadores de cana. “O colapso dos mercados demonstrou como a participação do Estado é um instrumento importante para superar crises. Isso reforça a idéia de como políticas públicas são fundamentais para o desenvolvimento das energias renováveis, a exemplo de países como Espanha e Alemanha”, diz.
Procurado para falar sobre a construção de uma política energética mais sustentável para o País, o Ministério de Minas e Energia não respondeu até o fechamento desta edição.
Movidos pelo aperto
Para Leonardo Caio, da FIA, a restrita disponibilidade de energia e a alta dependência de suprimentos de fora levaram a Europa a desenvolver políticas públicas em busca de segurança energética.
Já o governo brasileiro, no berço esplêndido dos recursos hídricos, pouco foi impelido a desenvolver outras matrizes renováveis – a não ser nos períodos dos choques do petróleo, em 1973 e 1979, em que a disparada de preços se traduziu em aumento da dívida externa e uma forte desestabilização econômica. “Aí a resposta foi o desenvolvimento do Proálcool”, diz Caio. Esse know-how, acumulado durante décadas, possibilitou o sucesso do etanol como alternativa renovável hoje.
Depois dos choques do petróleo, não é à toa que a confirmação da auto-suficiência do Brasil em petróleo em 2006 tenha gerado uma “comoção nacional”, nas palavras de Bermann. “Praticamente não houve voz alguma questionando os impactos do aumento de produção”, diz ele, ao comentar o fato de que o socioambientalismo no Brasil parece menos ativo na discussão da cadeia de petróleo que na dos biocombustíveis ou da energia nuclear, por exemplo.
Entre as exceções estão algumas organizações baseadas no Rio de Janeiro, como a ONG Fase e a Rede Brasileira de Justiça Ambiental, que acompanham de perto as atividades da Petrobras e também denunciaram graves contaminações nas operações que a empresa e outras petrolíferas mantinham em áreas indígenas no Equador, no Peru e na Bolívia. E o Movimento Nossa São Paulo, mas que se atém especificamente à luta pela diminuição da quantidade de enxofre no diesel.
“A sociedade civil talvez não esteja bem mobilizada, devido à histórica dependência do petróleo e às visões de que a auto-suficiência é um dado positivo, de que a Petrobras é uma grande companhia e motivo de um certo orgulho do brasileiro”, avalia Peter May, professor-adjunto do Departamento de Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ).
Para Julianna Malerba, técnica da Fase e membro da Rede Brasileira de Justiça Ambiental, o histórico da atuação e criação da Petrobras remete a uma estratégia estatal de romper com a dependência externa de um recurso considerado estratégico para o desenvolvimento econômico do País. “Esse processo, pertinente do ponto de vista geopolítico, contribuiu muito para que a Petrobras se tornasse um símbolo de soberania e orgulho nacional, que é permanentemente alimentado por uma forte política de apoio a atividades culturais, sociais, ambientais e esportivas”, diz. Segundo o relatório anual de 2007 da Petrobras, a soma dos investimentos nesses projetos chega a R$ 585,2 milhões.
Na visão de Mauro Passos, diretor-presidente do Instituto para o Desenvolvimento de Energias Alternativas da América Latina (Ideal), a mobilidade global ainda é tão associada a petróleo e gás que existe certa cumplicidade da sociedade. “As pessoas pensam assim: ‘Não quero polemizar porque não sei o que pôr no lugar'”, diz Passos.
Isso, na opinião de Julianna, faz com que a conquista da auto-suficiência e o recente anúncio das descobertas de petróleo na camada pré-sal mobilizem a sociedade e os movimentos sociais para um debate muito mais centrado no controle desses recursos do que em um questionamento sobre a viabilidade social e ambiental de um modelo de desenvolvimento “petrodependente”.
May, da UFRRJ, pondera, entretanto, “que a Petrobras não está sentada esperando o mundo acabar”. Tem, por exemplo, investido de forma significativa em biocombustíveis e outras fontes renováveis, como Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs), eólica e solar. Em termos absolutos, sem dúvida. Mas e relativos?
Em seu relatório anual, a empresa prevê investimentos de R$ 2,4 bilhões até 2012 em projetos de renováveis. Ao mesmo tempo, estima aporte de 1,5 bilhão – nesse caso em dólares – para a construção de dutos, alcooldutos e programas de biodiesel. Mas são valores até modestos, diante dos US$ 112,4 bilhões em investimentos totais previstos no plano 2008-2012, destinados a transformar a Petrobras em uma das cinco maiores empresas integradas do mundo – cifra que não inclui investimentos na exploração do petróleo recém-descoberto abaixo da camada de sal, por enquanto adiada em função da crise econômica e da queda do preço do petróleo.
Procurada pela reportagem desde o dia 13 de outubro, a Petrobras não conseguiu atender ao pedido de entrevista até a data de fechamento desta edição, apenas enviou algumas informações sobre ações que vem tomando para reduzir as emissões de gases de efeito estufa, combater o desperdício e aumentar sua eficiência.
A questão da dependência do petróleo, como lembra Julianna, não se refere apenas à mobilidade e ao papel das empresas, o que remete à afirmação de Pinguelli, do Fórum Nacional de Mudanças Climáticas, no início desta reportagem. “Mesmo que haja uma crescente pressão para redução de emissões e para que as empresas assumam sua responsabilidade nisso, o próprio governo tem apostado no desenvolvimento de atividades produtivas dependentes de petróleo, como a produção agroindustrial em grande escala para exportação, intensiva em petroquímicos”, diz ela.
Água fria no pré-sal
Até que a bolha dos mercados estourasse e o preço do barril despencasse pela metade em poucos meses, o noticiário brasileiro abordava poucos assuntos que não fossem o pré-sal – o petróleo depositado a 7 mil metros do nível do mar, em uma camada formada há mais de 115 milhões de anos, que elevariam o Brasil do 24º lugar para uma posição entre os dez maiores produtores de petróleo do mundo, e fariam as reservas saltar dos atuais 14 bilhões para 50 bilhões de barris.
Mesmo antes de a exploração ser adiada, cresciam dúvidas sobre seu efetivo retorno comercial, diante de desafios tecnológicos que ainda precisam ser conhecidos e superados. Ainda assim, o governo federal sinalizou melhorias sociais que seriam alimentadas com recursos da exploração, e propôs a criação de uma empresa estatal à parte, destinada apenas à operação no pré-sal, embora a Petrobras há mais de 30 anos buscasse tecnologia para chegar a essas descobertas. “Houve um uso político da exploração e a tentativa de carimbar o pré-sal como um feito do atual governo”, diz Suslick, do Cepetro.
Mas a euforia com o pré-sal ao menos serviu para discutir a distribuição de riquezas geradas pelo petróleo, e um debate foicriado sobre o recebimento de royalties. Concentrados nas cidades produtoras, acabam reforçando as desigualdades socioeconômicas no País. Segundo Suslick, o grande volume de recursos que entra rapidamente em um município acaba “enfeitiçando” os dirigentes, que mal sabem o que fazer com a dinheirama. “Acabam construindo portais na cidade, esquecendo-se de que o recurso do royalty deve ser gerido de forma sustentável, por exemplo, investido em educação, de forma que seus benefícios sejam permanentes no momento em que o petróleo acabar.” Mais que impactos ambientais causados pela emissão de carbono, por vazamento de óleo, pelo uso de recursos finitos, a exploração energética deve ser avaliada sob a ótica da concentração de riquezas e poder. “Fóssilou não, o grande problema da energia é de que forma é controlada, isso já dizia Jeremy Rifkin, em A Economia do Hidrogênio“, afirma Fujihara, do Totum. Rifkin, presidente da Foundation on Economic Trends, propôs a criação de um modelo energético descentralizado e democrático, como forma de uma nova organização política da sociedade.
“A indústria da energia no Brasil sempre foiconcentradora, fosse elétrica ou petrolífera”, diz Passos, do Ideal. Fontes renováveis são alternativas também a esse modelo concentrador. “Veja o exemplo das PCHs. Com elas, a energia hidrelétrica começa a ter o rosto da descentralização. Já não atrai grandes empreiteiras, e sim empresas mais regionais, e isso traz toda uma nova cultura.” Novas culturas trazem arrepios ao investidor avesso a mudanças de status e em fuga de qualquer risco. Mas, uma vez que os velhos mercados ruíram, trincas maiores que essas não podem ocorrer.[:en]Previsões que reforçam a velha civilização do petróleo contradizem a necessidade de lançar o sistema econômico-ecológico sobre novas bases. Para o Brasil é a grande oportunidade de liderar a transformação para uma economia de baixo carbono, mas falta uma articulação nacional
Por Amália Safatle
Foi nos intervalos entre subidas e descidas de avião que o secretário-executivo do Fórum Brasileiro de Mudanças Climáticas falou a Página 22. Luiz Pinguelli Rosa, físico, diretor da Coppe, que reúne os cursos de pós-graduação em engenharia da Universidade Federal do Rio Janeiro, sabe que a reengenharia energética necessária ao combate do aquecimento global é mais complexa do que podem dar a entender as mensagens das empresas petrolíferas, por exemplo, em seus websites, pontuados por campos floridos e pessoas sorridentes.
“Acabo de desembarcar de um avião, então não vou botar a culpa toda na Shell. A questão é que a sociedade está montada sobre a energia fóssil”, afirma o secretário. Mas, se o colapso dos mercados serve como um ruidoso wake-up call de que o sistema econômico-ecológico em que vivemos no planeta precisa ser relançado sobre novas bases, nada mais fundamental que rever o combustível que deve girar novos motores.
O histórico de relacionamento entre a civilização e sua primordial fonte energética é extenso e íntimo demais para que em um estalar de dedos tome rumos radicalmente diferentes. Tão íntimo que estamos falando de moléculas de carbono, das quais o petróleo é feito tanto quanto nós e demais seres vivos. Entretanto, é justamente o carbono lançado na atmosfera de forma descontrolada que se tornou a maior ameaça da vida na Terra.
Energia altamente concentrada em forma líquida, com ocorrência nos quatro cantos do mundo e capaz de ser utilizado em todos os países, o petróleo prestou-se a mover a economia mundial com escala, preços globais e eficiência. Finito é, mas há controvérsias quanto à data em que se esgotará ou se tornará tão difícil de extrair que até as mais avançadas tecnologias não conseguirão garantir sua viabilidade comercial.
Se a oferta é discutível, a demanda, mais cedo ou mais tarde, será objeto de certeza, acreditam alguns especialistas. “Os governos a cada dia vão impor maiores restrições à emissão de gases de efeito estufa, a pressão da opinião pública vai aumentar e o carbono começará a ser ‘precificado’ na cadeia produtiva”, diz Marco Antonio Fujihara, presidente do Instituto Totum, consultoria voltada para a sustentabilidade, e conselheiro superior de meio ambiente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo.
É o caso, cita ele, das “pegadas de carbono” que produtos vendidos nos supermercados ingleses começam a estampar nos rótulos, e colocam no radar do consumidor consciente a quantidade de emissões liberada no processo produtivo de cada item das prateleiras. Para Fujihara, o cenário de restrições ao petróleo e derivados, assim como seus pares fósseis carvão mineral e gás natural, terá uma virada muito rápida. Ele faz um paralelo com o mercado de alimentos orgânicos, que até cinco anos atrás era praticamente inexistente e já começa a amadurecer, em taxas contínuas de crescimento de 30% ao ano.
Mas tal avaliação não é exatamente a refletida nas previsões de matriz energética divulgadas em documentos como International Energy Outlook, com base em informações cedidas pelos países.
Tudo como dantes?
Conforme essas estimativas, a participação do petróleo e do gás natural deve cair apenas 4 pontos percentuais em um horizonte largo, passando de 61% para 57% até 2030. É um tanto aflitivo, ainda mais diante de informações do Programa da ONU para o Meio Ambiente, segundo as quais a emissão de dióxido de carbono nos últimos sete anos supera as piores estimativas do Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática (IPCC), enquanto a elevação do nível dos oceanos também supera as previsões.
Hoje, apenas 13% da energia primária produzida no mundo é renovável. Os demais 87% dividem-se em petróleo, gás natural, carvão mineral e energia nuclear. No Brasil, a proporção é de 45% (renovável) para 55%, relação que tende a ficar estável, segundo Leonardo Caio, coordenador-executivo da Pós-Graduação em Negócios de Petróleo, Gás e Combustíveis da Fundação Instituto de Administração (FIA). Por mais que as petrolíferas anunciem sua transformação em empresas de energia, a participação de fontes renováveis nos investimentos totais ainda é diminuta.
“Nós bem que gostaríamos, mas a matriz energética no mundo não vai mudar significativamente em menos de 30 anos”, diz Saul Suslick, diretor do Centro de Estudos do Petróleo (Cepetro), da Unicamp. Isso basicamente por uma questão de escala, explica o professor. Não há ainda substitutos à energia fóssil capazes de atender a uma economia globalizada, por isso não florescem com a força de uma commodity como o petróleo. Fontes alternativas que são sucesso em um país, não o são em outro. “No Brasil, o etanol deu certo, mas na França faltou posto, houve gargalo na distribuição.” Outras fontes não são tão renováveis como parecem.
O sol é inesgotável, mas as células fotovoltaicas, pela atual tecnologia, dependem de elementos finitos na natureza, como irídio e ósmio. A eólica não se presta a qualquer lugar, depende de ventos e, segundo Caio, da FIA, tem um aproveitamento energético baixo, de 20%, em relação a sua capacidade instalada. Para efeito de comparação, o índice de aproveitamento nas grandes hidrelétricas é de 52%, e, nas usinas nucleares, de 95%, em média.
Com isso, a transição para fontes mais limpas deve ser mais lenta que o desejável, e caminhar gradualmente para um portfólio variado de fontes adequadas às particularidades de cada país, diz Suslick, do Cepetro. É de perguntar o quanto as mudanças climáticas e o agravamento da crise ambiental, ao tocarem fundo nas preocupações humanas, serão capazes de impor um ritmo mais acelerado ao desenvolvimento de alternativas capazes de suprir uma economia de baixo carbono, com tecnologias economicamente mais viáveis e menor consumo de energia.
O governo do Equador, por exemplo, inova ao propor uma forma de geração de valor para a não exploração do petróleo no Parque Nacional de Yasuní, reconhecido pela Unesco como Reserva da Biosfera, dotado de altíssima diversidade biológica – só as espécies de árvores catalogadas somam 644. É a chamada “reprecificação de ativos”, expressão usual nesses tempos de crise, levada às últimas conseqüências.
A proposta do presidente Rafael Correa, lançada no ano passado – mesmo quando o petróleo ainda estava bem cotado no mercado internacional -, é receber de outros países uma quantia de US$ 350 milhões por ano, durante dez anos. Em troca, deixará de extrair 1 bilhão de barris de petróleo que dormem sob Yasuní, equivalentes a um quarto das reservas totais do país, e dará garantias de que a floresta será preservada e a comunidade local protegida – além de a emissão de carbono evitada.
Os Certificados de Garantía Yasuní, emitidos pelo governo equatoriano, poderiam ser negociados no mercado europeu de carbono. Trata-se de uma sofisticada idéia, pois eleva o debate sobre a criação de valor para a conservação a patamares ocupados pelo rentável petróleo. No caso do Brasil, país que também reivindicou – e obteve da Noruega – recursos internacionais para evitar emissões na Amazônia, a moeda de troca é o combate ao desmatamento, uma atividade de baixo valor econômico agregado.
Mas, embora a iniciativa equatoriana tenha sido elogiada por países como Alemanha, Espanha e Itália, nenhum acordo foi fechado ainda, para uma proposta que expira no final do ano. E, com as nuvens carregadas espalhando-se nos céus da economia por todo o globo, tem menos chances de sair do papel.
Enquanto isso, no Brasil…
O presidente Lula vê a indústria automobilística e o incentivo à compra de veículos como instrumentos para evitar o desaquecimento da economia. Assim, bancos oficiais devem entrar em ação e tornar mais “agressivo” o financiamento ao consumidor.
O pequeno exemplo indica como ainda se recorre a velhos “motores” para acionar a economia brasileira. Pelo que se apurou na reportagem a respeito do Plano Nacional de Mudanças Climáticas, a discussão da sociedade sobre o combate ao aquecimento global ainda se concentra muito no desmatamento da Amazônia, enquanto falta uma clara diretriz nacional no tocante à questão energética que conjugue, na opinião de Fujihara, do Instituto Totum, um necessário debate anterior sobre o modelo de desenvolvimento econômico e a política industrial que se almejam para o País.
Com uma matriz energética menos suja que na grande parte do globo, o Brasil pode liderar o desenvolvimento de uma economia mais sustentável e de baixo carbono, neste momento em que o mundo parece disposto a reavaliar modelos.
Mas o Plano Nacional de Mudanças Climáticas, sentado sobre dados segundo os quais 75% das emissões são geradas pelo desmatamento e apenas 25% pelo consumo de energia, traz propostas consideradas risíveis, como a troca de 10 milhões de geladeiras por modelos mais eficientes energeticamente. (E ainda há dúvidas de que essa proporção valha até hoje, pois se baseia no inventário de emissões datado de 1994.) Um ano de emissões evitadas com a troca dos eletrodomésticos equivaleria a menos de três dias de desmatamento da Amazônia.
Na visão de Celio Bermann, professor do Instituto de Eletrotécnica e Energia (IEE) da USP, sem uma política pública focada e consistente, o nascimento de uma economia “verde” no Brasil ficará ao sabor do mercado, por enquanto – ou cada vez mais – avesso ao crédito e a riscos de toda sorte. E assim os empregos “verdes” no Brasil pouco irão além dos cortadores de cana. “O colapso dos mercados demonstrou como a participação do Estado é um instrumento importante para superar crises. Isso reforça a idéia de como políticas públicas são fundamentais para o desenvolvimento das energias renováveis, a exemplo de países como Espanha e Alemanha”, diz.
Procurado para falar sobre a construção de uma política energética mais sustentável para o País, o Ministério de Minas e Energia não respondeu até o fechamento desta edição.
Movidos pelo aperto
Para Leonardo Caio, da FIA, a restrita disponibilidade de energia e a alta dependência de suprimentos de fora levaram a Europa a desenvolver políticas públicas em busca de segurança energética.
Já o governo brasileiro, no berço esplêndido dos recursos hídricos, pouco foi impelido a desenvolver outras matrizes renováveis – a não ser nos períodos dos choques do petróleo, em 1973 e 1979, em que a disparada de preços se traduziu em aumento da dívida externa e uma forte desestabilização econômica. “Aí a resposta foi o desenvolvimento do Proálcool”, diz Caio. Esse know-how, acumulado durante décadas, possibilitou o sucesso do etanol como alternativa renovável hoje.
Depois dos choques do petróleo, não é à toa que a confirmação da auto-suficiência do Brasil em petróleo em 2006 tenha gerado uma “comoção nacional”, nas palavras de Bermann. “Praticamente não houve voz alguma questionando os impactos do aumento de produção”, diz ele, ao comentar o fato de que o socioambientalismo no Brasil parece menos ativo na discussão da cadeia de petróleo que na dos biocombustíveis ou da energia nuclear, por exemplo.
Entre as exceções estão algumas organizações baseadas no Rio de Janeiro, como a ONG Fase e a Rede Brasileira de Justiça Ambiental, que acompanham de perto as atividades da Petrobras e também denunciaram graves contaminações nas operações que a empresa e outras petrolíferas mantinham em áreas indígenas no Equador, no Peru e na Bolívia. E o Movimento Nossa São Paulo, mas que se atém especificamente à luta pela diminuição da quantidade de enxofre no diesel.
“A sociedade civil talvez não esteja bem mobilizada, devido à histórica dependência do petróleo e às visões de que a auto-suficiência é um dado positivo, de que a Petrobras é uma grande companhia e motivo de um certo orgulho do brasileiro”, avalia Peter May, professor-adjunto do Departamento de Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ).
Para Julianna Malerba, técnica da Fase e membro da Rede Brasileira de Justiça Ambiental, o histórico da atuação e criação da Petrobras remete a uma estratégia estatal de romper com a dependência externa de um recurso considerado estratégico para o desenvolvimento econômico do País. “Esse processo, pertinente do ponto de vista geopolítico, contribuiu muito para que a Petrobras se tornasse um símbolo de soberania e orgulho nacional, que é permanentemente alimentado por uma forte política de apoio a atividades culturais, sociais, ambientais e esportivas”, diz. Segundo o relatório anual de 2007 da Petrobras, a soma dos investimentos nesses projetos chega a R$ 585,2 milhões.
Na visão de Mauro Passos, diretor-presidente do Instituto para o Desenvolvimento de Energias Alternativas da América Latina (Ideal), a mobilidade global ainda é tão associada a petróleo e gás que existe certa cumplicidade da sociedade. “As pessoas pensam assim: ‘Não quero polemizar porque não sei o que pôr no lugar'”, diz Passos.
Isso, na opinião de Julianna, faz com que a conquista da auto-suficiência e o recente anúncio das descobertas de petróleo na camada pré-sal mobilizem a sociedade e os movimentos sociais para um debate muito mais centrado no controle desses recursos do que em um questionamento sobre a viabilidade social e ambiental de um modelo de desenvolvimento “petrodependente”.
May, da UFRRJ, pondera, entretanto, “que a Petrobras não está sentada esperando o mundo acabar”. Tem, por exemplo, investido de forma significativa em biocombustíveis e outras fontes renováveis, como Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs), eólica e solar. Em termos absolutos, sem dúvida. Mas e relativos?
Em seu relatório anual, a empresa prevê investimentos de R$ 2,4 bilhões até 2012 em projetos de renováveis. Ao mesmo tempo, estima aporte de 1,5 bilhão – nesse caso em dólares – para a construção de dutos, alcooldutos e programas de biodiesel. Mas são valores até modestos, diante dos US$ 112,4 bilhões em investimentos totais previstos no plano 2008-2012, destinados a transformar a Petrobras em uma das cinco maiores empresas integradas do mundo – cifra que não inclui investimentos na exploração do petróleo recém-descoberto abaixo da camada de sal, por enquanto adiada em função da crise econômica e da queda do preço do petróleo.
Procurada pela reportagem desde o dia 13 de outubro, a Petrobras não conseguiu atender ao pedido de entrevista até a data de fechamento desta edição, apenas enviou algumas informações sobre ações que vem tomando para reduzir as emissões de gases de efeito estufa, combater o desperdício e aumentar sua eficiência.
A questão da dependência do petróleo, como lembra Julianna, não se refere apenas à mobilidade e ao papel das empresas, o que remete à afirmação de Pinguelli, do Fórum Nacional de Mudanças Climáticas, no início desta reportagem. “Mesmo que haja uma crescente pressão para redução de emissões e para que as empresas assumam sua responsabilidade nisso, o próprio governo tem apostado no desenvolvimento de atividades produtivas dependentes de petróleo, como a produção agroindustrial em grande escala para exportação, intensiva em petroquímicos”, diz ela.
Água fria no pré-sal
Até que a bolha dos mercados estourasse e o preço do barril despencasse pela metade em poucos meses, o noticiário brasileiro abordava poucos assuntos que não fossem o pré-sal – o petróleo depositado a 7 mil metros do nível do mar, em uma camada formada há mais de 115 milhões de anos, que elevariam o Brasil do 24º lugar para uma posição entre os dez maiores produtores de petróleo do mundo, e fariam as reservas saltar dos atuais 14 bilhões para 50 bilhões de barris.
Mesmo antes de a exploração ser adiada, cresciam dúvidas sobre seu efetivo retorno comercial, diante de desafios tecnológicos que ainda precisam ser conhecidos e superados. Ainda assim, o governo federal sinalizou melhorias sociais que seriam alimentadas com recursos da exploração, e propôs a criação de uma empresa estatal à parte, destinada apenas à operação no pré-sal, embora a Petrobras há mais de 30 anos buscasse tecnologia para chegar a essas descobertas. “Houve um uso político da exploração e a tentativa de carimbar o pré-sal como um feito do atual governo”, diz Suslick, do Cepetro.
Mas a euforia com o pré-sal ao menos serviu para discutir a distribuição de riquezas geradas pelo petróleo, e um debate foicriado sobre o recebimento de royalties. Concentrados nas cidades produtoras, acabam reforçando as desigualdades socioeconômicas no País. Segundo Suslick, o grande volume de recursos que entra rapidamente em um município acaba “enfeitiçando” os dirigentes, que mal sabem o que fazer com a dinheirama. “Acabam construindo portais na cidade, esquecendo-se de que o recurso do royalty deve ser gerido de forma sustentável, por exemplo, investido em educação, de forma que seus benefícios sejam permanentes no momento em que o petróleo acabar.” Mais que impactos ambientais causados pela emissão de carbono, por vazamento de óleo, pelo uso de recursos finitos, a exploração energética deve ser avaliada sob a ótica da concentração de riquezas e poder. “Fóssilou não, o grande problema da energia é de que forma é controlada, isso já dizia Jeremy Rifkin, em A Economia do Hidrogênio“, afirma Fujihara, do Totum. Rifkin, presidente da Foundation on Economic Trends, propôs a criação de um modelo energético descentralizado e democrático, como forma de uma nova organização política da sociedade.
“A indústria da energia no Brasil sempre foiconcentradora, fosse elétrica ou petrolífera”, diz Passos, do Ideal. Fontes renováveis são alternativas também a esse modelo concentrador. “Veja o exemplo das PCHs. Com elas, a energia hidrelétrica começa a ter o rosto da descentralização. Já não atrai grandes empreiteiras, e sim empresas mais regionais, e isso traz toda uma nova cultura.” Novas culturas trazem arrepios ao investidor avesso a mudanças de status e em fuga de qualquer risco. Mas, uma vez que os velhos mercados ruíram, trincas maiores que essas não podem ocorrer.