O interesse do oligopólio do petróleo em desenvolver fontes alternativas de energia estaria apenas em ganhar uma segunda vida, sem levar em conta as questões sociais
O primeiro hotel submarino no mundo, uma pista para esquiar no deserto, ilhas artificiais para residências de veraneio e marinas dos milionários dos Emirados Árabes Unidos, no Golfo Pérsico, em Dubai. E agora, em Abu Dhabi, Masdar: planejada pelo conhecido arquiteto britânico Norman Foster, a primeira cidade no mundo, com uma população inicial de 40 mil habitantes, que não emitirá carbono nem produzirá lixo, funcionando unicamente com energias renováveis e entrada de carros proibida.
Os seus idealizadores preveem que ali serão instaladas até 1.500 empresas de alta tecnologia, com especial destaque para as energias renováveis. Para tanto, poderão contar com a ausência total de impostos e de tarifas alfandegárias, com a possibilidade de funcionar com capital 100% estrangeiro, eficiente proteção da propriedade intelectual e excelentes conexões de transporte com o mundo afora.
Masdar abrigará ainda um centro de pesquisas desenvolvido em cooperação com o Massachusetts Institute of Technology (MIT), dos EUA, e laboratórios afiliados ao Imperial College, de Londres, e ao Instituto de Pesquisa e Tecnologia de Tokyo. Desta maneira, Abu Dhabi ambiciona posicionar-se como um líder global nas novas tecnologias sustentáveis de produção de energia, um verdadeiro Silicon Valley de fontes renováveis.
Um mercado fantástico, já que, segundo um representante do Deutsche Bank, os investimentos em energias alternativas poderão totalizar US$ 45 trilhões até meados do século. É um longo caminho a percorrer, a começar pela necessidade de reduzir o próprio desperdício de energia. Neste momento, os Emirados Árabes Unidos são campeões absolutos em consumo de energia per capita no mundo.
Para comemorar o evento, foi organizada em janeiro último uma cúpula mundial de energia futura, com a participação de 2.634 delegados, entre os quais eminentes políticos ocidentais, como Tony Blair, executivos das grandes companhias petroleiras, pesquisadores e banqueiros. Os demais países do Golfo não querem ficar para trás. A recém-criada Universidade de Ciências e Tecnologia (Kaust), da Arábia Saudita, financia regiamente pesquisas sobre energias renováveis nas universidades de Stanford, Caltech, Cambridge, Cornell, Imperial College, Sapienza, Oxford e Utrecht.
Em Berkeley, alguns professores recusaram a oferta, alegando o desempenho pífio da Arábia Saudita em matéria de direitos humanos. Por sua vez, o Catar acaba de colocar US$ 230 milhões em um fundo britânico de tecnologias de baixo conteúdo de carbono. Não resta dúvida de que os países daquela parte do mundo têm todo o interesse em aproveitar os seus enormes recursos financeiros, proporcionados pela exploração do petróleo, para preparar o pós-petróleo.
A começar pela utilização da energia solar para dessalinizar a água de mar e instalar estufas no deserto para a produção de diversas biomassas. Vinod Khosla, uma das personalidades eminentes do Silicon Valley californiano presente na reunião de Abu Dhabi, observou, com razão, que os países do Golfo estão mais bem preparados que a Alemanha para aproveitar a energia solar.
Tecnologia para quem? Embora devamos nos dar por felizes que esses recursos não estejam sendo destinados à produção de armas atômicas ou biológicas, confesso que todas essas informações me deixam perplexo, pela maneira como a aposta sobre as novas tecnologias está dissociada de qualquer reflexão sobre os modelos sociais dentro dos quais elas serão aplicadas.
Tanto mais que os países do Golfo não representam deste ponto de vista uma referência positiva. O que me preocupa, ainda, é a tentativa dos países do Golfo e também das grandes empresas petroleiras em assumir o controle da produção das tecnologias alternativas às energias fósseis.
Tudo leva a pensar que por trás dessa estratégia está a ideia de que o oligopólio de produtores de petróleo poderá, assim, ganhar uma segunda vida. É difícil considerar os produtores de petróleo do Golfo como fazendo parte da comunidade dos países em desenvolvimento. Lembremo-nos da triste lição da crise energética dos anos 1970, quando os petrodólares reforçaram o caixa dos principais bancos ocidentais, em vez de contribuir à emancipação do Terceiro Mundo.
É também difícil ver na reunião de Abu Dhabi uma iniciativa favorável a essa emancipação. Os países tropicais chamados a liderar a transição para as bioenergias e biocivilizações do futuro, baseadas no uso múltiplo das biomassas produzidas conforme os preceitos de desenvolvimento socialmente includente e ambientalmente sustentável, devem com urgência criar um fórum próprio de debate mundial sobre tais assuntos. Quem mais bem colocado para fazê-lo do que o Brasil?
* Ecossocioeconomista da École des Hautes Études en Sciences Sociales