Energia renovável e de baixa interferência no ambiente compõem a boa fama das pequenas centrais hidrelétricas. Entretanto, a combinação de usinas em série e a flexibilidade do licenciamento ambiental podem ser fatais
Via de regra, as pequenas centrais hidrelétricas (PCHs) estão entre as opções preferidas dos ambientalistas quando se trata de geração de energia elétrica. Costumam ser associadas a outras opções de viabilidade mais recente, como eólica, solar e biomassa. O relatório Revolução Energética, produzido pelo Greenpeace, por exemplo, defende que metade da energia consumida no mundo poderia ser gerada pela combinação dessas modalidades.
De fato, as PCHs apresentam uma série de vantagens comparativas. As turbinas são do tipo fio d’água, que utilizam a vazão natural do rio para gerar energia, sem a necessidade de grandes reservatórios. Isso diminui a interferência no regime natural das águas, a área que precisa ser desmatada e a quantidade de terras a ser desapropriadas.
Além disso, as PCHs garantem redução da perda de energia na distribuição, graças à potência reduzida, que vai de 1 MW a 30 MW. Nesses casos, não compensa desperdiçar elétrons em enormes linhas de transmissão, no caminho entre a fonte geradora e o consumidor.
No Brasil, há ainda uma interessante convergência de fatores naturais e econômicos. O maior potencial para grandes hidrelétricas está nos caudalosos rios da Amazônia, o que demanda, por exemplo, uma linha de transmissão de 2. 500 quilômetros para ligar o complexo do Rio Madeira até Araraquara, no interior de São Paulo. Já os rios mais apropriados para PCHs estão nas regiões Sudeste e Centro-Oeste, justamente o grande centro consumidor de energia.
É possível falar em mínimo impacto ambiental quando se trata de uma única PCH. Mas e se forem duas, ou três, ou quinze, no mesmo rio? “Geralmente, rio de PCH tem pelo menos mais duas ou três usininhas em série. É o que se chama de sistema em cascata”, afirma Geraldo Lúcio Tiago Filho, secretário-executivo do Centro Nacional de Referência em Pequenas Centrais Hidrelétricas (CERPCH). Por ironia, é o tamanho reduzido do empreendimento que estimula a multiplicação em série.
Junte-se a isso uma lista de vantagens para o investidor. As PCHs têm pelo menos 50% de desconto na tarifa de uso do Sistema Interligado Nacional (SIN), são dispensadas de pagamento de royalties pela exploração dos recursos hídricos e podem fornecer energia tanto para o SIN quanto para sistemas isolados ou ainda para os chamados “consumidores livres”, como grandes indústrias de alumínio, por exemplo. Isso sem falar no Programa de Incentivo às Fontes Alternativas de Energia Elétrica (Proinfa), que age como uma espécie de avalista no BNDES para garantir o financiamento de 70% do investimento.
Se há um lugar assoberbado de PCHs no País, este lugar se chama Minas Gerais, o estado com maior número de pequenas usinas – cerca de 500. Para o padre Antônio Claret Fernandes, militante do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) de Minas, a sobreposição de usinas se tornou insustentável. “Hoje a gente quase não tem mais condição de dar assistência a todos os atingidos, porque são muitas as barragens que estão pipocando”, diz. “Falam que o reservatório é pequeno, mas 300 hectares é uma área grande, principalmente numa região como a nossa, que tem muita agricultura familiar, de propriedades pequenas.”
Em termos ambientais, o principal impacto do sistema de usinas em cascata é sobre a fauna de peixes. A grande quantidade de obstáculos no rio pode impossibilitar a migração, necessária para a reprodução de algumas espécies. O caso mais retumbante dos últimos tempos é do Complexo Hidrelétrico do Rio Juruena, em Mato Grosso, onde oito usinas estão em construção e vão somar-se a outras duas, já em operação.
“Onde termina o lago de uma começa a barragem da outra. Então, na prática, é um lago só, de 110 quilômetros”, diz Francisco Machado, zoólogo professor da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) e maior estudioso da ictiofauna do Rio Juruena. Ele diz que algumas usinas no País se valem com sucesso dos mecanismos de transposição de peixes, espécie de escadaria que imita os obstáculos naturais do rio para atrair a passagem dos animais. Mas, segundo o Machado, ainda não há evidências científicas suficientes sobre se as larvas de peixes conseguem percorrer o caminho inverso. “No caso do Juruena, em especial, não vai funcionar. Como é que o peixe vai vencer uma dezena de escadarias? Peixe não sabe ler placa”, diz.
Machado é autor de um dos relatórios periciais encomendados pelo Ministério Público Federal de Mato Grosso, que moveu uma ação civil pública contra os empreendimentos. A área de influência indireta dos projetos inclui sete terras indígenas, ocupadas por algumas etnias cuja única fonte de proteína são os peixes. Em outubro passado, 150 índios Enawenê-nawê promoveram uma depredação no canteiro de obras da PCH Telegráfica, em protesto.
Na ocasião, a Consórcio Juruena Participações, responsável pelas obras, distribuiu nota de esclarecimento à imprensa em que afirma que “todos os estudos solicitados pelos órgãos públicos para avaliar, mitigar e compensar impactos ambientais e antropológicos decorrentes dos empreendimentos foram realizados”. Integra o consórcio a empresa Maggi Energia, da família do governador do estado, Blairo Maggi.
A principal motivação para a interferência do Ministério Público tem a ver, justamente, com esses procedimentos. Seis das oito novas PCHs foram dispensadas de realizar estudo de impacto ambiental e relatório de impacto ambiental (EIA/Rima). “A falta de EIA/Rima não só compromete a qualidade dos estudos como implica ausência de audiência pública, o que impede o direito da população de se manifestar”, considera o procurador Mario Lucio Avelar, autor da ação civil pública.
A dispensa só foi possível porque uma lei estadual estabelece que usinas de até 30 MW só precisam de diagnósticos ambientais para serem licenciadas. Entretanto, uma resolução do Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama) diz que usinas com mais de 10 MW de potência devem ter EIA/Rima.
Esse caso é emblemático da confusão que se generalizou no País sobre regras e competências de licenciamento ambiental. Uma interpretação possível diz que o tamanho do empreendimento deve ser o critério para definição do órgão ambiental licenciador, se federal, estadualou municipal. Outra diz que a área do empreendimento – se ocupa território interestadualou apenas local – deve ser o critério. Assim, o Complexo do Rio Juruena foi licenciado pela Secretaria Estadual de Meio Ambiente (Sema), por tratar-se de empreendimento de menor porte, mas também poderia ter sido licenciado pelo Ibama, já que o Juruena é um rio federal.
Na prática, as grandes hidrelétricas podem causar mais estragos ambientais, mas acabam sendo analisadas pelo Ibama e submetidas ao licenciamento mais rigoroso. Já as PCHs costumam ser licenciadas pelos estados, que aplicam suas próprias regras. Muitas vezes, essas regras são mais brandas, o que provoca reação do Ministério Público.
A confusão penaliza também os investidores. “PCH é um bom investimento depois de entrar em operação, mas antes disso há toda uma gincana”, reclama Ricardo Pigatto, presidente da Associação Nacional dos Pequenos e Médios Investidores em Energia Elétrica. “Nós reconhecemos a responsabilidade sobre efeitos sociais e ambientais dos projetos, mas o empreendedor quer regras claras. Hoje em dia, a cada nova etapa (do licenciamento) mudam-se as regras.”
O artigo 23 da Constituição Federal estabelece que a gestão do patrimônio ambiental é de responsabilidade das três esferas de governo, mas não deixa claro como distribuir as competências. Em entrevista na edição 21 (julho de 2008) de Página 22, o ministro do Meio Ambiente, Carlos Minc, prometeu regulamentar o artigo 23 em menos de dois meses. A espera continua.[:en]Energia renovável e de baixa interferência no ambiente compõem a boa fama das pequenas centrais hidrelétricas. Entretanto, a combinação de usinas em série e a flexibilidade do licenciamento ambiental podem ser fatais
Via de regra, as pequenas centrais hidrelétricas (PCHs) estão entre as opções preferidas dos ambientalistas quando se trata de geração de energia elétrica. Costumam ser associadas a outras opções de viabilidade mais recente, como eólica, solar e biomassa. O relatório Revolução Energética, produzido pelo Greenpeace, por exemplo, defende que metade da energia consumida no mundo poderia ser gerada pela combinação dessas modalidades.
De fato, as PCHs apresentam uma série de vantagens comparativas. As turbinas são do tipo fio d’água, que utilizam a vazão natural do rio para gerar energia, sem a necessidade de grandes reservatórios. Isso diminui a interferência no regime natural das águas, a área que precisa ser desmatada e a quantidade de terras a ser desapropriadas.
Além disso, as PCHs garantem redução da perda de energia na distribuição, graças à potência reduzida, que vai de 1 MW a 30 MW. Nesses casos, não compensa desperdiçar elétrons em enormes linhas de transmissão, no caminho entre a fonte geradora e o consumidor.
No Brasil, há ainda uma interessante convergência de fatores naturais e econômicos. O maior potencial para grandes hidrelétricas está nos caudalosos rios da Amazônia, o que demanda, por exemplo, uma linha de transmissão de 2. 500 quilômetros para ligar o complexo do Rio Madeira até Araraquara, no interior de São Paulo. Já os rios mais apropriados para PCHs estão nas regiões Sudeste e Centro-Oeste, justamente o grande centro consumidor de energia.
É possível falar em mínimo impacto ambiental quando se trata de uma única PCH. Mas e se forem duas, ou três, ou quinze, no mesmo rio? “Geralmente, rio de PCH tem pelo menos mais duas ou três usininhas em série. É o que se chama de sistema em cascata”, afirma Geraldo Lúcio Tiago Filho, secretário-executivo do Centro Nacional de Referência em Pequenas Centrais Hidrelétricas (CERPCH). Por ironia, é o tamanho reduzido do empreendimento que estimula a multiplicação em série.
Junte-se a isso uma lista de vantagens para o investidor. As PCHs têm pelo menos 50% de desconto na tarifa de uso do Sistema Interligado Nacional (SIN), são dispensadas de pagamento de royalties pela exploração dos recursos hídricos e podem fornecer energia tanto para o SIN quanto para sistemas isolados ou ainda para os chamados “consumidores livres”, como grandes indústrias de alumínio, por exemplo. Isso sem falar no Programa de Incentivo às Fontes Alternativas de Energia Elétrica (Proinfa), que age como uma espécie de avalista no BNDES para garantir o financiamento de 70% do investimento.
Se há um lugar assoberbado de PCHs no País, este lugar se chama Minas Gerais, o estado com maior número de pequenas usinas – cerca de 500. Para o padre Antônio Claret Fernandes, militante do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) de Minas, a sobreposição de usinas se tornou insustentável. “Hoje a gente quase não tem mais condição de dar assistência a todos os atingidos, porque são muitas as barragens que estão pipocando”, diz. “Falam que o reservatório é pequeno, mas 300 hectares é uma área grande, principalmente numa região como a nossa, que tem muita agricultura familiar, de propriedades pequenas.”
Em termos ambientais, o principal impacto do sistema de usinas em cascata é sobre a fauna de peixes. A grande quantidade de obstáculos no rio pode impossibilitar a migração, necessária para a reprodução de algumas espécies. O caso mais retumbante dos últimos tempos é do Complexo Hidrelétrico do Rio Juruena, em Mato Grosso, onde oito usinas estão em construção e vão somar-se a outras duas, já em operação.
“Onde termina o lago de uma começa a barragem da outra. Então, na prática, é um lago só, de 110 quilômetros”, diz Francisco Machado, zoólogo professor da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) e maior estudioso da ictiofauna do Rio Juruena. Ele diz que algumas usinas no País se valem com sucesso dos mecanismos de transposição de peixes, espécie de escadaria que imita os obstáculos naturais do rio para atrair a passagem dos animais. Mas, segundo o Machado, ainda não há evidências científicas suficientes sobre se as larvas de peixes conseguem percorrer o caminho inverso. “No caso do Juruena, em especial, não vai funcionar. Como é que o peixe vai vencer uma dezena de escadarias? Peixe não sabe ler placa”, diz.
Machado é autor de um dos relatórios periciais encomendados pelo Ministério Público Federal de Mato Grosso, que moveu uma ação civil pública contra os empreendimentos. A área de influência indireta dos projetos inclui sete terras indígenas, ocupadas por algumas etnias cuja única fonte de proteína são os peixes. Em outubro passado, 150 índios Enawenê-nawê promoveram uma depredação no canteiro de obras da PCH Telegráfica, em protesto.
Na ocasião, a Consórcio Juruena Participações, responsável pelas obras, distribuiu nota de esclarecimento à imprensa em que afirma que “todos os estudos solicitados pelos órgãos públicos para avaliar, mitigar e compensar impactos ambientais e antropológicos decorrentes dos empreendimentos foram realizados”. Integra o consórcio a empresa Maggi Energia, da família do governador do estado, Blairo Maggi.
A principal motivação para a interferência do Ministério Público tem a ver, justamente, com esses procedimentos. Seis das oito novas PCHs foram dispensadas de realizar estudo de impacto ambiental e relatório de impacto ambiental (EIA/Rima). “A falta de EIA/Rima não só compromete a qualidade dos estudos como implica ausência de audiência pública, o que impede o direito da população de se manifestar”, considera o procurador Mario Lucio Avelar, autor da ação civil pública.
A dispensa só foi possível porque uma lei estadual estabelece que usinas de até 30 MW só precisam de diagnósticos ambientais para serem licenciadas. Entretanto, uma resolução do Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama) diz que usinas com mais de 10 MW de potência devem ter EIA/Rima.
Esse caso é emblemático da confusão que se generalizou no País sobre regras e competências de licenciamento ambiental. Uma interpretação possível diz que o tamanho do empreendimento deve ser o critério para definição do órgão ambiental licenciador, se federal, estadualou municipal. Outra diz que a área do empreendimento – se ocupa território interestadualou apenas local – deve ser o critério. Assim, o Complexo do Rio Juruena foi licenciado pela Secretaria Estadual de Meio Ambiente (Sema), por tratar-se de empreendimento de menor porte, mas também poderia ter sido licenciado pelo Ibama, já que o Juruena é um rio federal.
Na prática, as grandes hidrelétricas podem causar mais estragos ambientais, mas acabam sendo analisadas pelo Ibama e submetidas ao licenciamento mais rigoroso. Já as PCHs costumam ser licenciadas pelos estados, que aplicam suas próprias regras. Muitas vezes, essas regras são mais brandas, o que provoca reação do Ministério Público.
A confusão penaliza também os investidores. “PCH é um bom investimento depois de entrar em operação, mas antes disso há toda uma gincana”, reclama Ricardo Pigatto, presidente da Associação Nacional dos Pequenos e Médios Investidores em Energia Elétrica. “Nós reconhecemos a responsabilidade sobre efeitos sociais e ambientais dos projetos, mas o empreendedor quer regras claras. Hoje em dia, a cada nova etapa (do licenciamento) mudam-se as regras.”
O artigo 23 da Constituição Federal estabelece que a gestão do patrimônio ambiental é de responsabilidade das três esferas de governo, mas não deixa claro como distribuir as competências. Em entrevista na edição 21 (julho de 2008) de Página 22, o ministro do Meio Ambiente, Carlos Minc, prometeu regulamentar o artigo 23 em menos de dois meses. A espera continua.