Concentrar as apostas no que já temos expertise ou diversificar as fontes? O investimento em energia de baixo carbono no Brasil pede uma estratégia mais bem definida
Durante muito tempo, o Brasil era conhecido mundialmente por sua capacidade de inovação e domínio da tecnologia de uma atividade considerada fundamental em grande parte do mundo: o futebol. Se hoje já não somos a mesma potência futebolística de outros tempos, há outra área em que nos últimos anos ficamos imbatíveis, na opinião de especialistas: o domínio do ciclo de produção e distribuição do etanol feito à base de cana-de-açúcar. Mas este também é um jogo pesado, e que levanta importantes dúvidas. Estamos preparados para manter a liderança nos próximos anos? Mais que isso, as fichas em fontes de energia de baixo carbono devem ser colocadas principalmente no etanol?
Diante do alto risco de o Brasil sujar a sua matriz – o planejamento energético brasileiro em 2030 aponta justamente nessa direção -, o Plano Nacional de Mudança de Clima (PNMC) indica a expansão das fontes renováveis nos próximos 20 anos.
O destaque fica para os biocombustíveis, entre os quais o etanol figura como principal estrela. Não é por menos: o PNMC calcula que a substituição do combustível fóssil pelo etanol evitará o lançamento de cerca de 508 milhões de toneladas de CO2 no período compreendido entre 2008 e 2017.
Desde que não provoque desmatamento, o etanol de cana reduz 80% das emissões de gases de efeito estufa se usado em substituição à gasolina pura, e em 77% das emissões no caso do diesel.
Lugar certo, na hora certa
Para o professor da USP e coordenador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia do Bioetanol (INCT), Marcos Buckeridge, o Brasil deve investir em outras fontes renováveis de energia, tal como está previsto no PNMC, mas o foco principal precisa ser o etanol. Ele acredita que os recursos para investir são limitados se comparados, por exemplo, aos Estados Unidos e, por isso, acha que o País deve se concentrar naquilo em que já é bom.
“Com isso não quero dizer que não devemos pesquisar e produzir outras fontes alternativas de energia, mas acho que temos de consolidar o Brasil como liderança mundial em biocombustíveis. Somos considerados agora líderes mundiais no etanol, mas, até quando?”
José Luiz Oliverio, vice-presidente de Tecnologia e Desenvolvimento da Dedini, indústria pioneira no fornecimento de equipamentos e plantas completas para o setor sucroalcooleiro, é enfático ao defender o álcool brasileiro produzido a partir da cana-de-açúcar como o mais adequado para fazer frente aos desafios econômicos e ambientais gerados pela busca de alternativas de energia de baixo carbono. “Em termos de tecnologia, de condições competitivas, considerando-se o ciclo completo de produção do etanol, o Brasil é imbatível. Produzimos maior quantidade a um menor custo e com condições de sustentabilidade incomparáveis.”
Para o executivo, a posição do Brasil no mercado de etanol ficará ainda mais consolidada a partir do Zoneamento Agroecológico da cana-de-açúcar, lançado pelo governo federal em 2009, que prevê a possibilidade de a área de plantio chegar a 64 milhões de hectares, ocupando até 7,5% do território nacional. Isto – espera-se – sem a necessidade de incorporar novas áreas e com cobertura nativa ao processo produtivo ou afetar diretamente as terras utilizadas para a produção de alimentos.
O Zoneamento para a cana-de-açúcar proíbe a expansão dos cultivos nos biomas mais sensíveis – Amazônia, Pantanal e Bacia do Alto Paraguai – ou por meio de desmatamento de vegetação nativa, como o Cerrado. Na safra de 2008, para se ter uma ideia, foram plantados 8,89 milhões de hectares de cana-de-açúcar, o que representa cerca de 1% do território nacional. “Isso mostra o potencial de expansão da cultura, que se soma a inovações tecnológicas no sentido de aumentar a produtividade por área plantada.”
Outro ponto importante que deve ajudar o etanol brasileiro a aumentar a sua participação no mercado internacional são as diversas iniciativas de certificação sendo desenvolvidas e implantadas. A Comissão Europeia, por exemplo, divulgou em julho uma série de regras que produtores e distribuidores de biocombustíveis deverão seguir para que seus produtos recebam a certificação de sustentabilidade do bloco, atendendo a critérios sociais e ambientais.
Uma das exigências é a de que o biocombustível em questão deverá emitir ao menos 35% menos de gases de efeito estufa em comparação aos combustíveis de origem fóssil. Essa porcentagem aumentará para 50% em 2017 e 60% em 2018, no caso dos produzidos em novas instalações. O etanol produzido no Brasil enquadra-se e supera esses critérios, ao gerar acima de 80% a menos de emissões.
Novas gerações
Tudo isso se refere ao chamado “etanol de primeira geração”, ou seja, ao processo de obtenção do combustível por meio da transformação da glucose da cana-de-açúcar. Mas a busca por inovações não para e já há diversos países, incluindo o próprio Brasil, investindo em pesquisas para dar escala comercial ao chamado “etanol de segunda geração”, proveniente da transformação da celulose, cuja fonte é muito mais ampla e inclui, além da cana e do milho, até mesmo cascas de árvores, resíduos vegetais e capim.
Para Marcos Buckeridge, ainda há muito espaço para a exploração do etanol de primeira geração, mas o Brasil não pode “dormir no ponto”. “Não podemos dizer que estamos em uma situação confortável no que se refere às pesquisas de novas gerações de etanol ou de outros biocombustíveis.”
Em sua opinião, Estados Unidos, Europa, China e Coreia, por exemplo, têm um nível de investimento em pesquisa muito alto, são rápidos em desenvolver soluções e o fazem a partir de uma conexão muito boa com a indústria. “Caso o Brasil não se mexa em níveis comparáveis, podemos acabar perdendo nossa supremacia tecnológica no setor.”
Opinião semelhante tem José Manuel Cabral, chefe de comunicação e negócios da Embrapa Agroenergia, que reforça que o nível de investimento total em pesquisa, inovação e tecnologia dos Estados Unidos é de aproximadamente 2,75% do PIB e no Japão passa dos 3%. No Brasil está em torno de 1,1% do PIB, perdendo até para outros países emergentes.
Cabral acredita que no País existe ótima capacidade técnica, com bons profissionais e laboratórios, mas que é preciso aumentar o número de pessoas envolvidas na pesquisa de etanol e biocombustíveis. “Isso tem um aspecto estratégico para o Brasil. É só pensar, por exemplo, que, se formos capazes de dar escala comercial à transformação do bagaço da cana em etanol, usando tecnologia de segunda geração, poderemos elevar em 30% a 40% o volume total de álcool produzido sem aumentar a área cultivada.”
Sem descarte
Quando se fala em economia de baixo carbono, os desafios não ficam apenas no desenvolvimento de alternativas aos combustíveis fósseis, como o etanol, mas incluem também o uso mais eficiente dos recursos já existentes. Este é outro ponto para o qual o Brasil precisa ficar mais atento, segundo a opinião do professor Gilberto Jannuzzi, coordenador do Núcleo Interdisciplinar de Planejamento Energético da Unicamp.
Ele cita o exemplo da grande reserva de carvão mineral que o Brasil tem e que poderia ser explorada de maneira mais eficiente, se houvesse tecnologia para isso. “É um carvão muito ruim, mas é uma grande reserva passível de ser explorada. Só que estamos muito atrasados em descobrir como usá-lo de uma maneira mais limpa.”
Jannuzzi defende que, quando se fala em economia de baixo carbono, não se deve excluir nem mesmo o uso de combustíveis fósseis, desde que exista a capacidade de usá-los de maneira mais eficiente.
Nesse contexto, o papel indutor do governo, por meio das políticas públicas na área de energia, assume uma relevância especial, como destaca Alfred Szwarc, consultor de Emissões e Tecnologia da União da Indústria de Cana-de-Açúcar (Unica). Para ele, ações como o Proinfa, o programa federal de estímulo às fontes alternativas de energia elétrica, são importantes para sinalizar para o mercado a direção estratégica que o Brasil deseja seguir.
“Na verdade, não conheço nenhum programa de energias alternativas no mundo que tenha dado certo ou tido continuidade sem apoio inicial dos governos.” Szwarc lembra que com o etanol também foi assim, por meio do Proálcool. “Hoje ele se firmou e praticamente segue sem grandes ajudas do governo. No caso de outras possibilidades, como o etanol de segunda geração, esse apoio será fundamental.”
Como destaca Marcos Buckeridge, trata-se de uma questão de visão política a decisão de garantir que existam recursos suficientes para pesquisa e que as inovações tecnológicas sejam incorporadas pela indústria e cheguem aos consumidores finais. A esse ciclo ele chama de “prova de conceito”. “Se o Brasil consolidar isso com o etanol, se completar esse ciclo, aí poderemos passar para outros setores, investindo de maneira coordenada em outras áreas estratégicas.”
Ou seja, para o pesquisador, o investimento no etanol como produto estrela da economia de baixo carbono brasileira não se justifica apenas pelo produto em si e seu valor de mercado. “É essa prova de conceito de que o Brasil consegue realmente se planejar e atuar de maneira coordenada e estratégica.”
Propostas para o baixo carbono
A forte crítica ao processo de “ensujamento” da matriz energética brasileira, feita por Marcos Jank, presidente da Unica, foi um dos pontos de destaque do seminário “Caminhos internacionais para uma economia de baixo carbono”, promovido em 9 de novembro pela plataforma Empresas pelo Clima (EPC), do Centro de Estudos em Sustentabilidade da FGV-Eaesp (GVces).
Mais do que conhecer experiências nacionais e internacionais de gestão empresarial para baixo carbono, o evento foi uma oportunidade para apresentar à sociedade uma série de propostas para políticas públicas voltadas ao desenvolvimento de uma economia “verde” no País.
Mario Monzoni, coordenador do Gvces, mostrou os estudos que levaram à confecção do documento Recomendação de Políticas Públicas para uma Economia de Baixo Carbono no Brasil. O trabalho é resultado de um ano de estudos centrados nos setores de energia, transporte e agricultura, mostrando a inter-relação entre eles e trazendo uma série de recomendações que em seguida foram encaminhadas ao novo governo.
Entre elas estão: a ampliação do uso de fontes renováveis de energia (desconsiderando as grandes hidrelétricas, devido ao seu alto impacto socioambiental) e a conservação ou uso de forma mais eficiente dos recursos energéticos; a busca por mais eficiência do setor de transportes por meio da integração intermodal, além da ampliação do uso de biocombustíveis na matriz energética do transporte; e o desenvolvimento e difusão de tecnologia agropecuária de menor intensidade carbônica. O documento pode ser baixado aqui.