Com impactos maiores do que se supunha, o chamado efeito ricochete é uma ducha fria no combate às emissões de carbono. A lição que se obtém disso é que a eficiência não pode tirar o consumo do centro do debate
Uma visita às seções de iluminação das grandes lojas de construção do País é suficiente para detectar um paradoxo. As lâmpadas LED, que prometem uma grande eficiência – menos consumo e mais vida útil –, desembarcam em várias formas, cores, tamanhos e modelos. Os produtos, que em sua maioria vêm da China, são ideais, por exemplo, para deixar funcionando durante toda a noite e iluminar discretamente o quarto do bebê. No final do mês, provavelmente a conta de luz pode chegar com um valor menor. Mas o que a família fará com o dinheiro economizado pela substituição da lâmpada incandescente? Investir? Ou gastar no fim de semana em uma atividade de lazer? Nem sempre, na contabilidade de uma casa, economia significa menos consumo – e menos emissões de carbono.
O paradoxo que acaba de ser descrito é conhecido desde o século XIX pelos estudiosos do assunto. Um economista britânico, William Jevons, em 1865, publicou a obra O Problema do Carvão, em que discutia exatamente o aumento do consumo de carvão como principal fonte de energia da época, no momento em que as máquinas a vapor ganhavam cada vez mais importância. Sua eficiência não tinha precedentes.
Em última análise, a Revolução Industrial gerou um grande paradoxo do consumo. O uso da energia ficou mais eficiente, o que disparou o gatilho da produção. Todo o processo, no final da cadeia, estava sustentado por uma forte demanda. No século retrasado, não havia preocupação alguma com a poluição das indústrias, nem se conhecia a relação entre queima de fontes fósseis e mudanças climáticas.
Mas, agora, em um salto histórico, o Paradoxo de Jevons volta a preocupar especialistas em eficiência energética e em mudança climática, dado que os grandes países do mundo precisam mais do que nunca buscar formas de reduzir suas emissões.
A figura de linguagem representada pela Revolução Industrial, diz Donald Sawyer, pesquisador da Universidade de Brasília (UnB), tem tudo a ver com o dilema atual. “Não é preciso ser especialista em energia para perceber que foi justamente naquele tempo de engenhos a vapor, eletricidade e veículos de combustão interna, com grande aumento na eficiência energética, que se geraram impactos inéditos no planeta.”
De acordo com Sawyer, hoje o número de consumidores também cresce e, ao mesmo tempo, a tal da desmaterialização da economia [1] não é atingida. “Estados Unidos e Europa, onde isso supostamente ocorreria, continuam sendo campeões de produção industrial e agropecuária”, diz.
[1] Pela qual seria possível produzir, obter crescimento econômico e, ao mesmo tempo, baixar o consumo energético e gerar a menor quantidade de resíduos possível
O problema atual, também chamado de efeito ricochete, ou efeito rebote, tem dois desdobramentos. O primeiro é direto. O motorista que compra um carro mais eficiente, capaz de rodar mais quilômetros com um litro de combustível, em grande parte das vezes não vai guardar aquele dinheiro que deixou de gastar com gasolina. O mais natural é que ele passe a rodar mais com o carro, o que pode deixar nulo seu balanço de consumo de energia.
O segundo é indireto, bem mais difícil de medir e, segundo especialistas, está longe de ser desprezível. É, por exemplo, o dinheiro gasto a mais na viagem de férias, economizado durante o ano porque o aparelho de aquecimento da casa, em locais onde o inverno é mais rigoroso, ficou mais eficiente. Ou, no exemplo que abriu este texto, é a explosão do consumo com lazer sustentada pelos recursos que deixaram de ser gastos com a conta de luz.
Medir os impactos do efeito ricochete, como dissemos, não é tarefa fácil. Mas alguns esforços têm sido feitos. O United Kingdom Energy Research Center (Ukerc) analisou, no fim de 2007, mais de 500 artigos científicos e relatórios técnicos sobre o efeito ricochete. Os pesquisadores concluíram que o impacto direto, no caso do consumo das casas, pode ser de no máximo 30% – considerado relativamente pequeno pelos autores, mas o impacto indireto é grande, e praticamente imensurável.
Necessária, mas insuficiente
A busca pela eficiência em quaisquer processos é essencial em modelos de produção e consumo, daí sistemas de gestão se basearem em melhoria contínua e regulamentações ambientais fazerem menção à “melhor tecnologia disponível” (ou BAT, na sigla em inglês), conforme aponta André Carvalho, pesquisador do Gvces e professor da FGV-EAESP. Embora importantíssima, pondera ele, a eficiência não tira o consumo do centro do debate, uma vez que as inovações não têm dado conta de reduzir o impacto do consumo humano – estão longe disso quando se analisam os conceitos de decoupling (descasamento) relativo e absoluto [2]. “O discurso não deve ser contra a eficiência, mas, sim, contra a compreensão de que o ganho em eficiência garantirá que o consumo humano possa manter-se crescente”, afirma Carvalho. A cilada imposta pelo aumento de eficiência versus estímulo ao consumo tem mesmo de ser levada a sério, corrobora Ricardo Abramovay, professor titular do Departamento de Economia da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade e do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo.
[2] Em Prosperity Without Growth?, o autor Tim Jackson explica que há um descasamento relativo entre ganho de eficiência e uso de energia, mas não absoluto, pois a poupança obtida com a redução é empregada no aumento de consumo de outros produtos ou atividades
O pano de fundo da discussão, segundo o pesquisador, é a relação indesejável, para o clima do planeta, entre produção e consumo. “No horizonte 2002/2020, o aumento na produtividade por unidade de produto será feito com um consumo quase 50% maior de materiais. O ideal seria promover um descasamento entre esses dois fatores”, diz.
Assim, é inevitável repensar os padrões de consumo, os estilos de vida e o próprio lugar do crescimento econômico, como objetivo autônomo, nas sociedades contemporâneas. Em termos práticos, Abramovay também não titubeia quando questionado sobre a importância da taxação do uso intensivo de carbono. “Já estamos atrasados. Isso já deveria estar ocorrendo.” A ação defendida pelo pesquisador é considerada polêmica tanto no Brasil como em outros países do mundo.
O debate sobre taxar ou não as emissões está quente, neste momento, na Austrália. O governo federal anunciou, em meados de julho, a criação de um imposto para os maiores poluidores (mais em “A esperança em um imposto”). Os 500 grupos que entrarem nesta lista deverão pagar por volta de US$ 25 por tonelada de carbono jogada na atmosfera. A cobrança deve ser iniciada em julho de 2012, se o Parlamento aprovar o projeto. Grandes empresas de aviação que atuam no país já emitiram seus pareceres sobre a taxação, afirmando que a ação vai encarecer o preço dos bilhetes aéreos que serão comercializados aos australianos.
Visão integrada
A quebra do paradoxo, para Carlos Rittl, coordenador do Programa Mudanças Climáticas e Energia da ONG WWF-Brasil, não se dará sem uma visão integrada do problema, que atinja, no final do processo, a redução efetiva no gasto com energia como um todo. Não é o caso de abandonar a busca por equipamentos mais eficientes só porque eles podem, de forma paradoxal, deixar o balanço do uso de carbono nulo ou até mesmo positivo. Ao contrário. “Seria necessário até se pensar em dar incentivos de IPI para equipamentos que sejam mais eficientes.” Mesmo que isso, de forma isolada, pudesse até aumentar o efeito ricochete. Fato que seria neutralizado caso a visão mais global do problema, proposta pelo ambientalista, fosse realmente implantada.
Por isso, outra parte importante da saída, diz o ambientalista, é incentivar quem não apenas procura eficiência, mas também consome menos em seu dia a dia de forma geral. “Pode haver um escalonamento, por exemplo. Quem consumir mais deveria pagar mais pela mesma unidade de energia. E vice-versa, para quem baixar sua demanda.” O mote seria “usar menos a energia, e de uma forma melhor”.
A seu ver, antes de impor uma taxação no Brasil, é importante definir melhor as regras do jogo, ou seja, o papel que cada setor tem realmente que desempenhar para cortar suas emissões. “Hoje, o que temos, são apenas metas voluntárias. Algo bastante genérico. O ideal é que os mecanismos fiquem mais claros”, diz. Para ele, no futuro, a questão do uso intensivo de carbono será uma barreira não tarifária importante e o Brasil ainda não se preparou para isso.
Com tantos obstáculos a serem transpostos, ainda potencializados pelo efeito ricochete, Abramovay admite que tem, para as próximas décadas, uma visão pessimista. “Não no sentido catastrófico, de fim do mundo, mas de que a opção de desenvolvimento escolhida pelos países corre o risco de continuar atrelada ao uso intensivo do carbono. “Temos outra opção (a do desenvolvimento econômico desvinculado do carbono) que pode ser escolhida sem prejuízo dos países que ainda precisam de escolas, hospitais e de mais inclusão social.”
Que a ducha fria do efeito ricochete sirva para refletir sobre a relação entre consumo, inovação tecnológica e mudança do clima de maneira mais integrada e sistêmica.[:en]Com impactos maiores do que se supunha, o chamado efeito ricochete é uma ducha fria no combate às emissões de carbono. A lição que se obtém disso é que a eficiência não pode tirar o consumo do centro do debate
Uma visita às seções de iluminação das grandes lojas de construção do País é suficiente para detectar um paradoxo. As lâmpadas LED, que prometem uma grande eficiência – menos consumo e mais vida útil –, desembarcam em várias formas, cores, tamanhos e modelos. Os produtos, que em sua maioria vêm da China, são ideais, por exemplo, para deixar funcionando durante toda a noite e iluminar discretamente o quarto do bebê. No final do mês, provavelmente a conta de luz pode chegar com um valor menor. Mas o que a família fará com o dinheiro economizado pela substituição da lâmpada incandescente? Investir? Ou gastar no fim de semana em uma atividade de lazer? Nem sempre, na contabilidade de uma casa, economia significa menos consumo – e menos emissões de carbono.
O paradoxo que acaba de ser descrito é conhecido desde o século XIX pelos estudiosos do assunto. Um economista britânico, William Jevons, em 1865, publicou a obra O Problema do Carvão, em que discutia exatamente o aumento do consumo de carvão como principal fonte de energia da época, no momento em que as máquinas a vapor ganhavam cada vez mais importância. Sua eficiência não tinha precedentes.
Em última análise, a Revolução Industrial gerou um grande paradoxo do consumo. O uso da energia ficou mais eficiente, o que disparou o gatilho da produção. Todo o processo, no final da cadeia, estava sustentado por uma forte demanda. No século retrasado, não havia preocupação alguma com a poluição das indústrias, nem se conhecia a relação entre queima de fontes fósseis e mudanças climáticas.
Mas, agora, em um salto histórico, o Paradoxo de Jevons volta a preocupar especialistas em eficiência energética e em mudança climática, dado que os grandes países do mundo precisam mais do que nunca buscar formas de reduzir suas emissões.
A figura de linguagem representada pela Revolução Industrial, diz Donald Sawyer, pesquisador da Universidade de Brasília (UnB), tem tudo a ver com o dilema atual. “Não é preciso ser especialista em energia para perceber que foi justamente naquele tempo de engenhos a vapor, eletricidade e veículos de combustão interna, com grande aumento na eficiência energética, que se geraram impactos inéditos no planeta.”
De acordo com Sawyer, hoje o número de consumidores também cresce e, ao mesmo tempo, a tal da desmaterialização da economia [1] não é atingida. “Estados Unidos e Europa, onde isso supostamente ocorreria, continuam sendo campeões de produção industrial e agropecuária”, diz.
[1] Pela qual seria possível produzir, obter crescimento econômico e, ao mesmo tempo, baixar o consumo energético e gerar a menor quantidade de resíduos possível
O problema atual, também chamado de efeito ricochete, ou efeito rebote, tem dois desdobramentos. O primeiro é direto. O motorista que compra um carro mais eficiente, capaz de rodar mais quilômetros com um litro de combustível, em grande parte das vezes não vai guardar aquele dinheiro que deixou de gastar com gasolina. O mais natural é que ele passe a rodar mais com o carro, o que pode deixar nulo seu balanço de consumo de energia.
O segundo é indireto, bem mais difícil de medir e, segundo especialistas, está longe de ser desprezível. É, por exemplo, o dinheiro gasto a mais na viagem de férias, economizado durante o ano porque o aparelho de aquecimento da casa, em locais onde o inverno é mais rigoroso, ficou mais eficiente. Ou, no exemplo que abriu este texto, é a explosão do consumo com lazer sustentada pelos recursos que deixaram de ser gastos com a conta de luz.
Medir os impactos do efeito ricochete, como dissemos, não é tarefa fácil. Mas alguns esforços têm sido feitos. O United Kingdom Energy Research Center (Ukerc) analisou, no fim de 2007, mais de 500 artigos científicos e relatórios técnicos sobre o efeito ricochete. Os pesquisadores concluíram que o impacto direto, no caso do consumo das casas, pode ser de no máximo 30% – considerado relativamente pequeno pelos autores, mas o impacto indireto é grande, e praticamente imensurável.
Necessária, mas insuficiente
A busca pela eficiência em quaisquer processos é essencial em modelos de produção e consumo, daí sistemas de gestão se basearem em melhoria contínua e regulamentações ambientais fazerem menção à “melhor tecnologia disponível” (ou BAT, na sigla em inglês), conforme aponta André Carvalho, pesquisador do Gvces e professor da FGV-EAESP. Embora importantíssima, pondera ele, a eficiência não tira o consumo do centro do debate, uma vez que as inovações não têm dado conta de reduzir o impacto do consumo humano – estão longe disso quando se analisam os conceitos de decoupling (descasamento) relativo e absoluto [2]. “O discurso não deve ser contra a eficiência, mas, sim, contra a compreensão de que o ganho em eficiência garantirá que o consumo humano possa manter-se crescente”, afirma Carvalho. A cilada imposta pelo aumento de eficiência versus estímulo ao consumo tem mesmo de ser levada a sério, corrobora Ricardo Abramovay, professor titular do Departamento de Economia da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade e do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo.
[2] Em Prosperity Without Growth?, o autor Tim Jackson explica que há um descasamento relativo entre ganho de eficiência e uso de energia, mas não absoluto, pois a poupança obtida com a redução é empregada no aumento de consumo de outros produtos ou atividades
O pano de fundo da discussão, segundo o pesquisador, é a relação indesejável, para o clima do planeta, entre produção e consumo. “No horizonte 2002/2020, o aumento na produtividade por unidade de produto será feito com um consumo quase 50% maior de materiais. O ideal seria promover um descasamento entre esses dois fatores”, diz.
Assim, é inevitável repensar os padrões de consumo, os estilos de vida e o próprio lugar do crescimento econômico, como objetivo autônomo, nas sociedades contemporâneas. Em termos práticos, Abramovay também não titubeia quando questionado sobre a importância da taxação do uso intensivo de carbono. “Já estamos atrasados. Isso já deveria estar ocorrendo.” A ação defendida pelo pesquisador é considerada polêmica tanto no Brasil como em outros países do mundo.
O debate sobre taxar ou não as emissões está quente, neste momento, na Austrália. O governo federal anunciou, em meados de julho, a criação de um imposto para os maiores poluidores (mais em “A esperança em um imposto”). Os 500 grupos que entrarem nesta lista deverão pagar por volta de US$ 25 por tonelada de carbono jogada na atmosfera. A cobrança deve ser iniciada em julho de 2012, se o Parlamento aprovar o projeto. Grandes empresas de aviação que atuam no país já emitiram seus pareceres sobre a taxação, afirmando que a ação vai encarecer o preço dos bilhetes aéreos que serão comercializados aos australianos.
Visão integrada
A quebra do paradoxo, para Carlos Rittl, coordenador do Programa Mudanças Climáticas e Energia da ONG WWF-Brasil, não se dará sem uma visão integrada do problema, que atinja, no final do processo, a redução efetiva no gasto com energia como um todo. Não é o caso de abandonar a busca por equipamentos mais eficientes só porque eles podem, de forma paradoxal, deixar o balanço do uso de carbono nulo ou até mesmo positivo. Ao contrário. “Seria necessário até se pensar em dar incentivos de IPI para equipamentos que sejam mais eficientes.” Mesmo que isso, de forma isolada, pudesse até aumentar o efeito ricochete. Fato que seria neutralizado caso a visão mais global do problema, proposta pelo ambientalista, fosse realmente implantada.
Por isso, outra parte importante da saída, diz o ambientalista, é incentivar quem não apenas procura eficiência, mas também consome menos em seu dia a dia de forma geral. “Pode haver um escalonamento, por exemplo. Quem consumir mais deveria pagar mais pela mesma unidade de energia. E vice-versa, para quem baixar sua demanda.” O mote seria “usar menos a energia, e de uma forma melhor”.
A seu ver, antes de impor uma taxação no Brasil, é importante definir melhor as regras do jogo, ou seja, o papel que cada setor tem realmente que desempenhar para cortar suas emissões. “Hoje, o que temos, são apenas metas voluntárias. Algo bastante genérico. O ideal é que os mecanismos fiquem mais claros”, diz. Para ele, no futuro, a questão do uso intensivo de carbono será uma barreira não tarifária importante e o Brasil ainda não se preparou para isso.
Com tantos obstáculos a serem transpostos, ainda potencializados pelo efeito ricochete, Abramovay admite que tem, para as próximas décadas, uma visão pessimista. “Não no sentido catastrófico, de fim do mundo, mas de que a opção de desenvolvimento escolhida pelos países corre o risco de continuar atrelada ao uso intensivo do carbono. “Temos outra opção (a do desenvolvimento econômico desvinculado do carbono) que pode ser escolhida sem prejuízo dos países que ainda precisam de escolas, hospitais e de mais inclusão social.”
Que a ducha fria do efeito ricochete sirva para refletir sobre a relação entre consumo, inovação tecnológica e mudança do clima de maneira mais integrada e sistêmica.