A África já recebeu quase US$ 700 bilhões de países desenvolvidos e instituições financeiras. No entanto, como a pobreza e a dependência permanecem, será preciso seguir outros caminhos, desde que traçados pelas próprias nações africanas
A ajuda oficial à África está chegando à meia-idade e vive uma crise existencial. Formulada há exatos 50 anos, ela hoje é alvo de críticas severas: não teria sido eficaz no combate à pobreza nem na promoção de um desenvolvimento inclusivo, além de não ter permitido que os países africanos se tornassem independentes dela própria. Não bastassem as críticas, a ajuda corre o risco de diminuir, devido à crise na Europa e nos Estados Unidos, e enfrenta o contraponto de outras formas de cooperação, como a Sul-Sul.
A ajuda em questão não é o auxílio alimentar para mitigar a fome, como a que hoje assola o Chifre da África, nem as contribuições individuais por meio de ONGs. Trata-se da ajuda financeira que países ricos e instituições multilaterais como Banco Mundial e FMI transferem anualmente e de forma coordenada para os governos africanos. Até hoje, já foram concedidos US$ 697 bilhões, na forma de doações, créditos especiais e perdão de dívida, e em troca do cumprimento de condições econômicas, políticas e sociais. É a chamada ajuda oficial ao desenvolvimento.
A África vive um momento de transição. No final deste mês de novembro, o modelo de ajuda oficial vai sentar-se em um divã em Busan, na Coréia do Sul, no 4 ̊ Fórum de Alto Nível sobre a Eficácia da Ajuda. Lá, dirigentes dos países ricos e de instituições financeiras vão tentar encontrar um novo papel para ela, “que empregue abordagens inclusivas e inovadoras para combater problemas de desenvolvimento contemporâneos”.
POBREZA PERSISTENTE
Entre 1981 e 2005, a incidência da pobreza caiu de 70% para 47% da população, no conjunto dos países em desenvolvimento. Já na África Subsaariana, a mudança foi pífia: de 54% para 51%, segundo os Indicadores Mundiais do Desenvolvimento de 2010. Isso significa que, em números absolutos, a quantidade de miseráveis dobrou, devido ao aumento populacional do período. “Um fracasso total”, criticou o secretário-geral da Unctad, órgão de comércio das Nações Unidas, Supachai Panitchpakdi, em reunião do Painel de Comércio e Desenvolvimento.
Esse péssimo resultado se deu, apesar do elevado crescimento econômico africano na última década, de, em média, 6% ao ano de 2002 a 2008. Mas isso “não serve ao interesse das pessoas e elas não vão dizer que eu como o crescimento econômico, eu visto o crescimento, eu durmo com o crescimento econômico”, afirmou o economista moçambicano Carlos Nuno Castel-Branco, na ocasião da maior revolta popular já vista pelo país (foto abaixo).
Convocada por mensagens de celular, que se espalharam como vírus em Maputo, capital do país, a população compareceu às ruas no início de setembro de 2010, para protestar contra o aumento do custo de vida e a miséria. “Moçambicano, prepara-te para a greve geral em 1o/9/2010. Protestamos contra a subida do preço do pão, água, luz e diversos. Envie para outros moçambicanos. Despertar”, diziam os SMS. Homens, mulheres e crianças enfrentaram uma polícia armada de AK-47, antecipando um período de protestos globais contra um desenvolvimento incapaz de incluir e satisfazer a maioria da população.
A ajuda oficial ao desenvolvimento também cresceu: era de US$ 1,5 bilhão em 1961 e atingiu US$ 43 bilhões em 2008, segundo dados da OCDE. Naquele ano, somente a África Subsaariana recebeu US$ 39 bilhões, ou US$ 47 para cada habitante.
CAUSAS MÚLTIPLAS
Por que, após 50 anos, a ajuda ao desenvolvimento da África não obteve êxito? Não existe resposta definitiva, mas uma variedade de hipóteses. Uma das mais fáceis é a corrupção. Sem dúvida há um problema de desvio de fundos. No índice de percepção da corrupção da Transparência Internacional de 2010, os países africanos ocupam metade das posições do top 10. Mas essa questão não pode explicar por si só por que a ajuda oficial à África não obteve melhores resultados.
A forma pela qual a ajuda se distribui entre os diferentes países e como é gasta também oferece respostas importantes para sua baixa eficácia. “O problema é que a ajuda não vai necessariamente para os países menos desenvolvidos. Geralmente são escolhidos aqueles países em que os doadores têm mais interesses por motivos estratégicos”, diz a pesquisadora Radhika Lal, conselheira política do Centro de Políticas Internacionais para o Crescimento Inclusivo (IPC-IG) do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud).
Além disso, a ajuda teria falhado porque não expandiu as capacidades produtivas dos países africanos, aponta a Unctad. Por outro lado, a tal ajuda teria estimulado um crescimento baseado no aumento da extração de recursos naturais com capital estrangeiro, o que não beneficiou a maioria da população. “Não há nada a se orgulhar. Na verdade, isso tornou os países menos desenvolvidos altamente dependentes de certas commodities”, disparou Panitchpakdi.
Foi o que ocorreu, por exemplo, em Moçambique. No acumulado de 2003 a 2009, seu PIB cresceu impressionantes 55%, resultado baseado principalmente em grandes projetos extrativistas financiados com recursos externos. Por outro lado, o país não distribuiu renda e a incidência da pobreza absoluta se manteve inalterada em 54% da população. Tomando por base o crescimento não inclusivo, o secretário-geral da Unctad define: “Nós precisamos de novos modelos de desenvolvimento”.
A comunidade internacional doadora tem sua parcela de culpa. Isso porque, desde que os aportes começaram a fluir, ela impôs condicionalidades para o envio do dinheiro que foram determinantes para o tipo de desenvolvimento obtido. “A ajuda normalmente vem com condições e, nas últimas três décadas, estas têm sido neoliberais”, explica Joseph Hanlon, pesquisador britânico e autor de Há mais bicicletas, mas há desenvolvimento?
No início, os países que quisessem beneficiar-se eram obrigados a aderir ao FMI e ao Banco Mundial, assim como aplicar reformas na economia. A receita geral incluía austeridade fiscal, controle inflacionário, redução do tamanho do Estado e criação de reservas. Hoje, não existe mais uma vinculação direta entre o fornecimento da ajuda oficial e a adesão às instituições financeiras – apesar de as condicionalidades ainda serem, em grande medida, neoliberais, segundo Hanlon.
A partir dos anos 2000, quando foram lançados os objetivos do Desenvolvimento do Milênio [1] , o combate à pobreza ganhou mais destaque que as medidas de austeridade econômica. Em 2008, veio uma nova transformação: os doadores assinaram a Declaração de Paris pela Efetividade da Ajuda, que estabelece metas para torná-la mais eficiente. Um de seus pilares é o respeito às metas e objetivos nacionais.
[1] Conjunto de oito metas sociais que os países devem atingir até 2015, como acabar com a fome e a miséria, prover educação básica e de qualidade para todos, reduzir a mortalidade infantil e promover o respeito ao meio ambiente
Assim, em tese, os países africanos que desejem estimular um crescimento inclusivo podem encontrar na ajuda oficial um parceiro para conquistar seus objetivos, comenta Radhika. Mesmo assim, ficam sujeitos às condições dos doadores.
Em Moçambique, eles fizeram greve em 2010 porque estariam insatisfeitos com o desenrolar das eleições presidenciais de 2009 e o baixo comprometimento do governo com o combate à corrupção. Coincidência ou não, alguns meses depois foram tomadas medidas que iam ao encontro de seus interesses e o país voltou a receber a ajuda – que correspondia a nada menos que 40% do orçamento de Estado.
PERTENCIMENTO E AUTONOMIA
“É importante ressaltar que os países africanos precisam da ajuda. Então não é caso de pensar se deve existir ou não. Mas a ajuda tem sido mais eficiente em países que puderam colocar em prática suas próprias políticas, como Ruanda”, diz Hanlon. O atual presidente do país, Paul Kagame, é uma das vozes mais ativas contra a ajuda internacional. Para ele, é necessário superar a necessidade de recebê-la, através do desenvolvimento interno da economia.
“Apesar de a parceria com a comunidade internacional ser importante, os africanos precisam encontrar soluções definitivas para seus próprios problemas de paz e segurança e tomar os assuntos de desenvolvimento nas suas próprias mãos”, disse o presidente de Ruanda, em um evento no fim de outubro.
As ideias de Paul Kagame estão em sintonia com as da economista da Zâmbia Dambisa Moyo, que ganhou notoriedade com o livro Dead Aid (Ajuda Morta). Um dos seus principais argumentos é o de que a ajuda internacional danifica a relação do governo com seus cidadãos, porque sua preocupação maior é responder aos doadores, que são quem provém os fundos de que precisa para se sustentar no poder, e não à população.
Uma das medidas para estimular a economia interna, como propõe Kagame e Dambisa, é aumentar a produção manufatureira e o processamento nacional de matéria-prima. Porém, é preciso enfrentar a concorrência desleal dos produtos dos próprios países doadores. Segundo dados obtidos pela revista The Economist, só em subsídios e tarifas alfandegárias para agricultores, Estados Unidos, União Europeia e Japão gastaram US$ 219 bilhões, em 2008, oito vezes mais do enviaram em ajuda para a África naquele ano.
“Não adianta o governo de um país doador, por um lado, ajudar um país com investimentos em microcrédito, se por outro cria barreiras para o comércio com aquele país. É como se fosse um empregador que paga um mau salário e não assina a carteira do funcionário mas dá a ele uma cesta de mantimentos no Natal. A cesta nunca será suficiente para ajudar a pessoa se não tiver um aporte efetivo para superar a situação em que se encontra”, pontua Melissa Andrade, coordenadora da Rede de Humanização do Desenvolvimento.
História: a cópia do modelo não funcionou
A história da ajuda oficial ao desenvolvimento começa na década de 1960. Na época, o mundo ainda estava entusiasmado com o sucesso do Plano Marshall, programa que deu suporte para a recuperação de uma europa destruída pela Segunda Guerra Mundial. Acreditava-se que esse modelo também ajudaria a desenvolver outras regiões em dificuldades, a começar pela África. Foi então que um grupo de países se reuniu, em 1961, na organização para Cooperação e Desenvolvimento econômico (OCDE), para promover a cooperação internacional.
Foi preciso cinco décadas para dissipar o entusiasmo. Os resultados da ajuda ao desenvolvimento foram bastante diferentes daqueles do Plano Marshall, que, com duração predeterminada de quatro anos, possibilitou que as economias recuperadas voltassem a caminhar com suas próprias pernas. Já as nações africanas não só continuam altamente dependentes após 50 anos, como também sustentam o pior resultado do mundo na superação da miséria.