Exemplos mostram o que no Brasil parece um sonho: dinamismo cultural e vida de qualidade coabitando o mesmo lugar
Por Maria Lutterbach
Quando metade da civilização vive em cidades, a pergunta de como fazer delas um lugar melhor paira como uma nuvem negra sobre as avenidas congestionadas. Se falamos tanto sobre a falta de qualidade de vida, por que ainda nos dedicamos tão pouco a mapear as questões mais urgentes e buscar respostas coletivas? No caso do Brasil e de outros países em desenvolvimento, desfrutar da oferta cultural e de serviços nos grandes centros significa, também, estar sujeito aos problemas urbanos típicos das metrópoles inchadas – cenário para o qual caminha boa parte das cidades médias em crescimento.
Os dilemas são complexos e têm raízes históricas, mas podem ser combatidos se tratados como prioridade não só pelo poder público, mas por iniciativa de cada cidadão. Como oportunidades de trabalho, dinamismo cultural e vida de qualidade podem coabitar o mesmo lugar?
Não adianta nos queixarmos do trânsito interminável sem abrir mão do conforto do automóvel. Ou clamarmos por segurança se estamos paralisados diante da desigualdade social. Em vez de fiscalizar e cobrar ações governamentais, seguimos lamentando a falta de espaços públicos compartilhados. E, por fim, plantamos uma horta de temperos na lavanderia, tentando compensar a comida congelada do jantar. Então, quer dizer que a baixa qualidade de vida da cidade onde vivemos é responsabilidade nossa? Também.
Não por acaso, as imagens que ilustram esta reportagem mostram cidades de vida cultural pujante, desenvolvidas do ponto de vista socioeconômico e excelente qualidade de vida – sem que nem apareçam automóveis. A ditadura do transporte individual, com a apropriação do espaço público, traz mais problemas do que trânsito e poluição: é nada menos que definidora da relação do cidadão com o ambiente onde vive.
Resolver o drama do tráfego, por exemplo, não depende apenas de melhorias no sistema público de transporte. É urgente uma mudança de cultura por parte da população, que mostra resistência em utilizar meios alternativos de locomoção e ainda negligencia quem faz uso deles. Casos emblemáticos – como o atropelamento de ciclistas em Porto Alegre e a manifestação dos moradores do bairro paulistano de Moema contra a ciclofaixa – são sintomas de que a sociedade ainda não percebe a importância da bicicleta para a saúde da cidade. (mais sobre os benefícios econômicos, ambientais e urbanísticos do uso da bicicleta na reportagem “Se essa rua fosse minha”)
“O mesmo brasileiro que luta contra a ciclofaixa no seu bairro acha uma maravilha andar de bicicleta quando viaja para a Europa. O transporte, no nosso caso, não é instrumento de integração, mas de exclusão”, afirma o professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, Paulo Saldiva. Para ele, o transporte coletivo de má qualidade acaba se transformando na maior propaganda para a compra do carro. Como resultado, temos 35% do espaço da cidade reservado aos automóveis e pedestres espremidos em calçadas malcuidadas.
“A maior causa de acidentes no Instituto de Ortopedia do Hospital das Clínicas de São Paulo é a queda devido a buracos nas calçadas”, conta Saldiva. Ao mesmo tempo, no asfalto, os motoristas também agonizam, dirigindo a uma velocidade média de 12 quilômetros por hora. “Borba Gato, a cavalo, andava mais rápido que a gente no trânsito de hoje”, compara o especialista. Não só o cavalo dos nossos antepassados, mas também os galináceos andam mais rápido do que um carro na hora do rush, como mostra a simpática campanha “Vá de Galinha”.
Mesmo diante da força da indústria automobilística, iniciativas espalhadas pelo mundo mostram que é possível fazer frente ao autoritarismo do carro e ganhar espaços mais humanizados na cidade. Enquanto Bogotá oferece uma alternativa de transporte menos poluente à população com sua rede TransMilenio – uma evolução do sistema de transporte de Curitiba –, o Brasil começa a se preocupar em ampliar suas ciclovias em cidades como São Paulo, Rio de Janeiro, Santos e Sorocaba.
Como exemplos que merecem ser seguidos, estão lugares que fazem bom uso dos benefícios de duas rodas, como Barcelona. Criado em 2007, o sistema de bicicletas públicas da cidade conquistou mais de 250 mil usuários diários só nos primeiros dois anos. Importante dizer que o programa de bicicletas comunitárias da capital catalã não partiu do zero: desenhou-se com base na experiência acumulada de várias cidades americanas e europeias.
LABORATÓRIO EM PRAÇA PÚBLICA
As inovações implementadas em cidades mais desenvolvidas não devem servir só como incentivo para mudanças do lado de cá, e, sim, como referência. Na maioria dos casos, em vez de reinventar a roda, o caminho está em pesquisar boas práticas e realizar parcerias eficientes. “Um grande problema é dizer que algo criado para uma cidade não funcionaria e não poderia ser exportado para outra. Acontece que temos 557 mil cidades no mundo. Não existe nenhum produto que possa variar tanto assim”, defende o arquiteto Sascha Haselmayer, diretor do Living Labs Global, organização sem fins lucrativos com sede em Barcelona e Copenhague.
Entre as ações desenvolvidas por Haselmayer e sua pequena equipe, está uma plataforma de projetos inovadores criada para que governos de diferentes países possam pesquisar boas ideias e realizar pilotos antes de introduzir mudanças em suas cidades. Atualmente, o Living Labs Global já trabalha com 50 cidades de quatro continentes para avaliar e testar soluções para o ambiente urbano.
Uma das parcerias promovidas por meio da organização é um plano de mobilidade para deficientes visuais em fase-piloto em Estocolmo. O sistema e-Adept oferece, pelo celular, dados sobre trânsito e rota de obstáculos para ajudar os usuários a circular pelas cidades de forma mais independente. Já Barcelona, com seu próprio Urban Lab [1], vem testando nas ruas alternativas econômicas de iluminação pública e pontos de carregamento para carros elétricos.
Que integra o 22@, polo de inovação de Barcelona, objeto da reportagem “A cidade cíclica”
Criado nos anos 1990 no Massachusetts Institute of Technology e hoje um dos pilares da política europeia para cidades inteligentes, o conceito de Living Lab propõe a integração entre usuários, pesquisadores, empresas e governo na criação de produtos e serviços urbanos mais eficientes. Entre as vantagens do modelo estão o compartilhamento de boas práticas, a maior transparência nas compras públicas e a aceleração do processo de inovação.
Com a parceria público-privada, o “laboratório vivo” permite que os usuários sejam inseridos em processos criativos e que o poder público avalie os impactos de seus projetos urbanísticos antes de colocá-los em prática. “É a mudança de uma ‘cidade produtiva industrial’ para uma ‘cidade que produz tecnologia do conhecimento’”, resume o arquiteto.
Enquanto isso, no Brasil, o programa Cidades Sustentáveis, lançado no ano passado pela Rede Nossa São Paulo e pela Rede Social Brasileira por Cidades Justas e Sustentáveis, reúne exemplos de práticas sustentáveis no mundo todo. Ali descobrimos, por exemplo, por que Vitoria-Gasteiz, no norte da Espanha, foi eleita a capital verde europeia 2012. Depois de implementar um eficiente plano de sustentabilidade, a cidade de 220 mil habitantes hoje oferece para 99% da população acesso a serviços básicos e a áreas verdes a 300 metros de suas casas.
Para pleitear avanços como esse com os próximos prefeitos e vereadores brasileiros, a plataforma Cidades Sustentáveis está convocando os candidatos às eleições municipais de 2012 a assinar uma carta-compromisso com o desenvolvimento sustentável das cidades brasileiras. Além de incorporar a sustentabilidade às políticas públicas da cidade e promover a participação da sociedade civil, a carta-compromisso exige uma prestação de contas medida por indicadores de qualidade de vida.
Segundo Haselmayer, interesses políticos e empresariais costumam impedir a execução de projetos que já mostraram ser bem-sucedidos em outros locais. “E assim perdemos um elemento muito importante da tecnologia, que é criar transparência”, afirma.
CIDADES VISÍVEIS
Saber mais sobre o lugar onde se vive é o primeiro passo para começar a participar do processo em busca de melhor qualidade de vida. “Quando estão bem-informadas, as pessoas passam a entender os problemas e a pressionar de maneira mais inteligente pelas transformações necessárias. Só assim a política muda de qualidade”, aponta Ladislau Dowbor, especialista em economia política e professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Uma iniciativa que já mostra resultados é o banco de dados sobre prefeituras e subprefeituras da Rede Nossa São Paulo, que Dowbor ajudou a criar. “Em muitos lugares do Brasil já estão sendo inseridos também estudos locais nas escolas. Em Pintadas, na Bahia, onde se ensinam tecnologias do solo no Semiárido, as crianças passam a conhecer sua própria cidade, potenciais e profissões que poderão exercer aproveitando as especificidades locais. Isso é fundamental para a apropriação do território urbano”, explica o especialista.
Mas o professor alerta que o elemento central para discutir qualidade de vida no Brasil continua sendo a desigualdade: “Temos infraestrutura sofisticada na parte rica de São Paulo, e, na parte pobre, problemas elementares de saneamento. Na rica, pessoas vivem fechadas no ar condicionado em apartamentos de R$ 14 milhões, com vista para o esgoto aberto que é o Tietê.
SAINDO PELA TANGENTE
Diante de um cenário com tantas contradições e que se transforma ainda a passos lentos, há quem veja como opção pessoal deixar a cidade grande, em busca de mais saúde e sociabilidade com menos gastos. De São Roque, na chácara onde escolheu viver há dois anos, Helena Takahashi conta que seu rompimento com São Paulo aconteceu há sete anos, quando ela sentiu que não tinha mais tempo para “viver”. “Queria ter no meu dia a dia simples vivências, como a de tomar um café na casa de uma amiga, mas, mesmo tendo a possibilidade de usar a minha moto para driblar o trânsito caótico, não encontrava disposição”, conta.
Depois de uma temporada na Bahia e outra na Índia, a ex-analista de business intelligence voltou disposta a buscar mais qualidade de vida e montou um retiro de yoga na chácara, que está a 40 minutos da capital. Apesar de sentir falta de conviver mais com a família e os amigos, ela diz que a pequena distância que a separa do ruído urbano tem valido a pena. “O que ganhamos aqui não é muito, mas você vai percebendo que aquilo de que realmente precisa é bem barato. Tem terra para plantar alface, mas, se precisar comprar, custa 25 centavos, para o espanto dos meus familiares”, diz.
Sair da cidade para praticar uma vida menos consumista (e impactante), ou ficar e contribuir para o processo de mudanças é escolha de cada um. Estar consciente sobre seu papel nesse processo de busca por cidades mais humanas é um dever coletivo.