Uma complexa e delicada obra propõe fortalecer a governança ambiental. Enquanto isso, vozes indignadas buscam maior permeabilidade para a sociedade nos processos decisórios
Se a sustentabilidade fosse uma construção, seria uma obra de Gaudí. Multiforme, colorida, intrincada e, até o momento, inacabada. Gerenciar uma construção como essa é um trabalho comparável às obras do arquiteto catalão, com inúmeras variáveis em delicado equilíbrio. Talvez por isso haja tantas propostas de governança em debate na Rio+20. Reunir 193 países, dezenas de instituições e centenas de acordos multilaterais em uma obra que permaneça de pé e abrigue a humanidade de forma sustentável não é tarefa simples.
O Rascunho Um, ou Draft One, da declaração da Conferência mostra a complexidade da tarefa. Ao longo de 31 de suas quase 300 páginas, apresenta duas propostas para fortalecer aquele que deveria ser visto como o que dá base para os demais – o ambiental: meio sem o qual a sociedade não vive e nem a economia se desenvolve (veja gráfico ao abaixo). Para a governança do desenvolvimento sustentável, as nações reconhecem que é crucial reforçar a estrutura institucional de forma a cobrir lacunas na agenda e apoiar os esforços para a erradicação da pobreza.
Essa estrutura também deve monitorar a implementação da Agenda 21, promover o engajamento de todos os países, estimular a cooperação entre agências, programas e fundos, bem como respeitar declarações anteriores e resultados de conferências e cúpulas da ONU, sem esquecer-se de envolver os Major Groups [1] no processo. O problema é o como fazer. A partir daí, tudo está entre colchetes [2].
[1] Segmentos que representam a sociedade nas atividades da ONU, definidos pela Agenda 21: Agricultores, Autoridades Locais, Comunidade Científica e Tecnológica, Crianças e Jovens, Mulheres, Negócios e Indústria, ONGs, Povos Nativos, e Trabalhadores e Sindicatos
[2] Sinais gráficos que destacam trechos sem consenso nos documentos diplomáticos
Nas conversações sobre o fortalecimento do pilar ambiental nas Nações Unidas está em jogo o papel do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma). O Pnuma, criado há 40 anos durante a Conferência de Estocolmo, tem poderes e orçamento limitados. Com isso, pouca capacidade de agregar e potencializar o cumprimento de mais de 500 acordos ambientais multilaterais cujos secretariados estão espalhados pelo mundo.
Em outras palavras, a vertente ambiental está muito fragilizada perto da econômica e da social, que contam com instituições mais fortes, como a Organização Mundial da Saúde (OMS) e a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO).
Duas vertentes reúnem as propostas de reforma da governança ambiental: fortalecer o Pnuma ou criar uma agência especializada na ONU. O ex-secretário do Meio Ambiente do Estado de São Paulo Fabio Feldmann diz que a Rio+20 não pode terminar sem tratar desse tema.
Ele reconhece que uma agência teria mais prestígio político, mas essa opção pode consumir anos de negociação para ser viabilizada. Um Pnuma com mais autonomia e melhor orçamento já seria um bom avanço. O orçamento anual do programa é de R$ 163 milhões, menos de um quinto do raquítico orçamento do Ministério do Meio Ambiente brasileiro em 2011 (R$ 859 milhões).
O problema do orçamento é um erro de foco, na opinião de Pedro Roberto Jacobi, coordenador do Programa de Ciências Ambientais da Universidade de São Paulo (Procam-USP). “Fortalecer economicamente é importante, mas esta não é a questão central. Central é levar o conhecimento do Pnuma para uma agência, uma instância que possa configurar-se como poder regulador”, afirma Jacobi, descrente, contudo, de que a Rio+20 chegue a esse resultado. Para ele, a Conferência precisa finalizar, no mínimo, com um Pnuma turbinado, com poder político para pressionar os países a cumprirem os acordos existentes.
João Paulo Capobianco, membro do conselho diretor do Instituto Democracia e Sustentabilidade (IDS), vai mais longe e diz que o desafio não é definir a configuração mais adequada e, sim, promover a integração real entre os diferentes instrumentos existentes em uma instituição normativa e capaz de promover uma articulação entre as convenções. “Seja qual for o modelo, minha convicção é de que esta é a agenda mais relevante, mas não está sendo destacada.”
Nas mãos do povo
Em um cenário cada vez mais claro de falta de lideranças entre os chefes de Estado, resta à sociedade civil organizada a tarefa de impulsionar a agenda do desenvolvimento sustentável, na opinião de Capobianco. Para isso, deve ter participação garantida no desenho de governança que sair da Rio+20. “O mundo é muito complexo pra ficar na mão só dos governantes”, afirma.
Ensaios de participação social vêm sendo feitos desde a criação da Agenda 21, cuja implementação nos níveis nacional e local deve ser resultado de uma ampla discussão multissetorial. Mas, embora todos concordem que a sociedade deve ser ouvida como parte da rota para o desenvolvimento sustentável, os mecanismos de governança propostos nos documentos oficiais não apresentam ferramentas para garantir essa participação e muito menos dar permeabilidade às vozes indignadas que clamam por mudanças nas praças mundo afora.
Dar conta da multiplicidade de atores sociais é complicado – mas possível –, observa Adriana Ramos, secretária-executiva adjunta do Instituto Socioambiental (ISA). Um meio é estabelecer interlocução com fóruns e redes da sociedade e receber submissões de documentos nos mesmos termos que os recebe dos países. Outro é estimular a construção de posições nacionais que não sejam “posições de governo”, mas discutidas e negociadas com a sociedade civil.
Fabio Feldmann também segue essa linha, sublinhando que os ritos de negociação diplomática são ineficazes no mundo atual. A Conferência poderia ser mais flexível e promover um pacto mínimo a partir de uma aliança política entre Estados, setor empresarial, sociedade e academia. E reforça: “Não dá para abrir mão das Nações Unidas, ela é indispensável. Mas não se pode também imaginar que seja a única instância capaz de promover mudanças”.
O nome é o de menos
Uma das fontes de confusão quando se fala das propostas é o nome. É comum ouvir especialistas defendendo a criação de uma agência que levaria o nome de Onuma – Organização das Nações Unidas para o Meio Ambiente. Em geral, o que começa com “Organização Mundial” é uma agência independente e o que leva “Organização das Nações Unidas” é submetido à Assembleia-Geral. Mas não é regra. A Organização das Nações Unidas para o Desenvolvimento Industrial era apenas um “centro” dentro da ONU até o final dos anos 1960, quando foi promovida a uma organização mais autônoma, mas ainda submetida à Assembleia-Geral da ONU. Só no final dos anos 1980 ela se tornou uma agência independente, conservando, no entanto, o mesmo nome.