Reformar o sistema monetário – e retirar dos bancos privados comerciais a capacidade de criar dinheiro – teria efeitos benéficos não só para a economia e a sociedade, mas para o meio ambiente
Cinco anos após o início da crise financeira, a pergunta que não cala é como conter seu impacto sobre a economia real. A julgar pela mídia, há duas alternativas: austeridade e cortes em orçamentos públicos ou gastos dos governos para gerar crescimento. Um grupo crescente acredita que nenhuma delas trará alívio e prescreve um remédio para lidar não só com a crise econômico-financeira e seus impactos sociais, mas com a questão ambiental: mudar radicalmente a forma como o dinheiro é criado e aplicado.
Não se trata de regulamentação para evitar os exageros que levaram à bolha hipotecária e seu subsequente estouro, mas de um redesenho do sistema. Por que isso é necessário? A resposta pede outra pergunta: de onde vem o dinheiro?
No imaginário coletivo, dinheiro é criado pelo governo e funciona como meio de troca, unidade contábil e estoque de valor. Nesse cenário, a oferta de dinheiro é um serviço público e não gera lucro. Mas, assim como outros serviços públicos – água, eletricidade, transporte –, a criação de dinheiro foi privatizada.
Estima-se que hoje 3% do dinheiro seja impresso ou cunhado nas casas das moedas. O resto é criado por bancos comerciais privados quando emitem empréstimos. O documentário 97% Owned, recém-lançado no Reino Unido pela campanha Positive Money, relata o processo e defende uma profunda reforma monetária.
Os bancos criam dinheiro graças ao sistema de reservas fracionadas. Quando depositamos, digamos, $ 100 na conta, o banco mantém apenas uma fração desse valor – por exemplo, 10% – e pode emprestar o restante. Alguém recebe o empréstimo de $ 90 e deposita o dinheiro, o que permite que o banco, de novo, retenha 10% e empreste o restante. Ao fim da cadeia, o banco terá criado cerca de $ 1.000 em dinheiro novo – que existe apenas digitalmente –, sobre o qual recebe juros.
No Brasil, o depósito compulsório – a fração que os bancos devem manter em reserva – varia de 20% a 43%, dependendo da conta. O percentual é alto se comparado aos EUA – de zero a 10% – e ao Reino Unido, onde o depósito é voluntário.
Dinheiro criado por esse sistema nada mais é do que dívida. Para avaliar a “saúde” da economia, especialistas observam o PIB ou, como explica o professor da Universidade de Southampton Richard Werner, a quantidade de transações em que o dinheiro troca de mãos. Para que o PIB cresça, é preciso que haja mais transações e, para isso, é necessário criar mais dinheiro – por consequência, dívida.
“Hoje há mais dívida no mundo do que dinheiro”, diz o ativista britânico Jem Bendell. Mas falta dinheiro para pagar juros compostos sobre a dívida. O resultado é a contínua emissão de mais dívida para dar conta do serviço da dívida passada. Bendell afirma que, das consequências dessa situação, duas são particularmente perversas.
Uma é que “a desigualdade se torna uma certeza matemática” – poucos controlam a emissão de dinheiro e muitos pagam juros aos primeiros. A segunda é que temos de consumir mais produtos e serviços – ou seja, recursos naturais –, de forma a gerar mais transações.
Só 8% do dinheiro criado pelos bancos é destinado a atividades que geram emprego e renda, diz Simon Dixon, fundador do Bank to the Future, rede social que permite que empreendedores e investidores façam transações sem intermediação. O resto é investido onde o lucro é maior – há até pouco tempo, o setor imobiliário. Tal injeção de dinheiro gera crescimento econômico e infla uma bolha destinada a explodir.
Quando vem o estouro, resulta o ciclo inverso, com os bancos relutando em emprestar, a economia sem a injeção de dívida e de crescimento que a movimentava e, consequentemente, uma onda de falência e desemprego. “O desemprego é função do sistema monetário”, diz Dixon.
O resumo dessa ópera é que, com 7 bilhões de pessoas no planeta e problemas ambientais agudos, optamos coletivamente por deixar a criação e a alocação de quase a totalidade do dinheiro nas mãos de quem só quer maximizar lucros. É o que Bernard Lietaer, especialista em moedas complementares, chama de “monocultura do dinheiro”. Ele defende a diversificação e lembra que há cerca de 5 mil inovações monetárias em curso no mundo.
Mudar a forma de criar e alocar o dinheiro é possível – afinal, o sistema monetário é invenção humana. O economista ecológico Herman Daly defende que os bancos não possam emprestar nenhuma fração dos depósitos. A campanha positive money vai na mesma linha. E Bendell e Lietaer lembram que há sistemas monetários alternativos – inclusive a polêmica Bitcoin – para servir de base para a reforma.
Tal reforma vai contra os interesses mais poderosos do mundo. Muitos diriam que ela só poderia ocorrer em um mundo movido a conhecimento, em que as pessoas estão diretamente conectadas e a informação flui livremente. Por sorte, vivemos justamente nesse mundo.
*Jornalista e fundadora de Página22[:en]Reformar o sistema monetário – e retirar dos bancos privados comerciais a capacidade de criar dinheiro – teria efeitos benéficos não só para a economia e a sociedade, mas para o meio ambiente
Cinco anos após o início da crise financeira, a pergunta que não cala é como conter seu impacto sobre a economia real. A julgar pela mídia, há duas alternativas: austeridade e cortes em orçamentos públicos ou gastos dos governos para gerar crescimento. Um grupo crescente acredita que nenhuma delas trará alívio e prescreve um remédio para lidar não só com a crise econômico-financeira e seus impactos sociais, mas com a questão ambiental: mudar radicalmente a forma como o dinheiro é criado e aplicado.
Não se trata de regulamentação para evitar os exageros que levaram à bolha hipotecária e seu subsequente estouro, mas de um redesenho do sistema. Por que isso é necessário? A resposta pede outra pergunta: de onde vem o dinheiro?
No imaginário coletivo, dinheiro é criado pelo governo e funciona como meio de troca, unidade contábil e estoque de valor. Nesse cenário, a oferta de dinheiro é um serviço público e não gera lucro. Mas, assim como outros serviços públicos – água, eletricidade, transporte –, a criação de dinheiro foi privatizada.
Estima-se que hoje 3% do dinheiro seja impresso ou cunhado nas casas das moedas. O resto é criado por bancos comerciais privados quando emitem empréstimos. O documentário 97% Owned, recém-lançado no Reino Unido pela campanha Positive Money, relata o processo e defende uma profunda reforma monetária.
Os bancos criam dinheiro graças ao sistema de reservas fracionadas. Quando depositamos, digamos, $ 100 na conta, o banco mantém apenas uma fração desse valor – por exemplo, 10% – e pode emprestar o restante. Alguém recebe o empréstimo de $ 90 e deposita o dinheiro, o que permite que o banco, de novo, retenha 10% e empreste o restante. Ao fim da cadeia, o banco terá criado cerca de $ 1.000 em dinheiro novo – que existe apenas digitalmente –, sobre o qual recebe juros.
No Brasil, o depósito compulsório – a fração que os bancos devem manter em reserva – varia de 20% a 43%, dependendo da conta. O percentual é alto se comparado aos EUA – de zero a 10% – e ao Reino Unido, onde o depósito é voluntário.
Dinheiro criado por esse sistema nada mais é do que dívida. Para avaliar a “saúde” da economia, especialistas observam o PIB ou, como explica o professor da Universidade de Southampton Richard Werner, a quantidade de transações em que o dinheiro troca de mãos. Para que o PIB cresça, é preciso que haja mais transações e, para isso, é necessário criar mais dinheiro – por consequência, dívida.
“Hoje há mais dívida no mundo do que dinheiro”, diz o ativista britânico Jem Bendell. Mas falta dinheiro para pagar juros compostos sobre a dívida. O resultado é a contínua emissão de mais dívida para dar conta do serviço da dívida passada. Bendell afirma que, das consequências dessa situação, duas são particularmente perversas.
Uma é que “a desigualdade se torna uma certeza matemática” – poucos controlam a emissão de dinheiro e muitos pagam juros aos primeiros. A segunda é que temos de consumir mais produtos e serviços – ou seja, recursos naturais –, de forma a gerar mais transações.
Só 8% do dinheiro criado pelos bancos é destinado a atividades que geram emprego e renda, diz Simon Dixon, fundador do Bank to the Future, rede social que permite que empreendedores e investidores façam transações sem intermediação. O resto é investido onde o lucro é maior – há até pouco tempo, o setor imobiliário. Tal injeção de dinheiro gera crescimento econômico e infla uma bolha destinada a explodir.
Quando vem o estouro, resulta o ciclo inverso, com os bancos relutando em emprestar, a economia sem a injeção de dívida e de crescimento que a movimentava e, consequentemente, uma onda de falência e desemprego. “O desemprego é função do sistema monetário”, diz Dixon.
O resumo dessa ópera é que, com 7 bilhões de pessoas no planeta e problemas ambientais agudos, optamos coletivamente por deixar a criação e a alocação de quase a totalidade do dinheiro nas mãos de quem só quer maximizar lucros. É o que Bernard Lietaer, especialista em moedas complementares, chama de “monocultura do dinheiro”. Ele defende a diversificação e lembra que há cerca de 5 mil inovações monetárias em curso no mundo.
Mudar a forma de criar e alocar o dinheiro é possível – afinal, o sistema monetário é invenção humana. O economista ecológico Herman Daly defende que os bancos não possam emprestar nenhuma fração dos depósitos. A campanha positive money vai na mesma linha. E Bendell e Lietaer lembram que há sistemas monetários alternativos – inclusive a polêmica Bitcoin – para servir de base para a reforma.
Tal reforma vai contra os interesses mais poderosos do mundo. Muitos diriam que ela só poderia ocorrer em um mundo movido a conhecimento, em que as pessoas estão diretamente conectadas e a informação flui livremente. Por sorte, vivemos justamente nesse mundo.
*Jornalista e fundadora de Página22