Do Riocentro às ruas, a sociedade civil esteve em todos os espaços físicos e virtuais da Rio+20, no primeiro evento desse porte desde o advento da web e das redes sociais. ocupou brechas e espalhou sua voz. Mas também se desarticulou e não soube cantar a mesma canção
No Brasil de 1992, de democracia recém-consumada pelas urnas e pela nova Constituição, não se sabia ao certo o que era ser “sociedade civil”. Naquele ano, em particular, a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável, também conhecida como Rio 92, foi uma motivação para que brasileiros e brasileiras se encontrassem na beira da Praia do Flamengo e se redescobrissem como cidadãos, tanto de sua própria terra como do mundo. O Fórum Global, que reuniu 17 mil pessoas paralelamente ao evento das Nações Unidas, abriu o espaço para a troca de ideias e a formação de várias organizações não governamentais.
Vinte anos depois, como se comportou esse grupo? À Rio+20 chegou uma nova sociedade civil. Diferente como o mundo, o Brasil e os problemas que enfrentamos. “Hoje a sociedade civil tem voz, mas tem também responsabilidades e é cobrada”, avalia o ambientalista, consultor e ex-secretário do Meio Ambiente do Estado de São Paulo Fabio Feldmann.
No Rio de Janeiro do século XXI, a pluralidade de bandeiras circulava livremente, como deve ser em uma democracia. No mesmo Aterro do Flamengo de 1992, só a Cúpula dos Povos recebeu 30 mil pessoas por dia. Havia espaço para todos, desde os que colhiam assinaturas para exigir do governo a inclusão da homeopatia nos seguros de saúde até os clássicos ambientalistas.
Essa multiplicidade teve seu ápice na Marcha Global da Cúpula dos Povos. Os organizadores falaram em 80 mil participantes, mas a Polícia Militar insistiu em enxutos 20 mil. Independentemente da quantidade, ali se viu de tudo. Enquanto, em um caminhão de som, agitadores do PSTU gritavam “fora ONGs imperialistas”, a 100 metros dali ativistas do Greenpeace cantavam e dançavam a marchinha do Desmatamento Zero. Mais atrás, feministas cantavam e tocavam tambores floridos. A poucas passadas, já era possível ouvir outro coro. Vinha de um grupo de bolivianos que discursavam sobre a questão migratória.
Para Mario Mantovani, diretor da SOS Mata Atlântica, esse caldeirão misto é o que dá tempero às grandes conferências e encontros, como o Fórum Social Mundial e a Rio+20. “Ver os outros movimentos ativos, as pessoas que erguem o braço e gritam ‘vamos lá’ é o que te faz pensar ‘quero fazer parte disso’. Aqui (no Riocentro) você entra e logo brocha”, diz, enquanto almoça no pavilhão de alimentação – de preços exorbitantes.
Pulverização e desencontro
Fica a dúvida se podemos chamar a massa que foi à Marcha Global de crítica. Muitos eram os gritos, mas não havia um sentido comum unindo as vozes. Entre tantas camisas, cada grupo cantava uma canção particular. O movimento Floresta Faz a Diferença bem que tentou: distribuiu camisetas e até criou um sambinha ao estilo “caia na Sapucaí”, mas que ficou restrito a um círculo.
“Quando estive no Fórum Global, em 1992, fiquei apaixonada pelo que vi”, conta Suzana Padua, presidente do Instituto de Pesquisas Ecológicas (IPÊ). “Havia ali uma vibração diferente. As pessoas se olhavam com esperança e viam o futuro, como se fosse possível salvar o mundo”, conta. Já o que viu na Cúpula e na Marcha na Rio+20 foi um clima de combate e indignação. “Ninguém acredita mais nos governos, mas não sabemos como mudar a situação”, diz.
Em 1992, a mobilização no Fórum Global foi forte porque estava lá toda a sociedade civil: acadêmicos, empresários, ongueiros, estudantes, artistas e quem mais não tivesse um crachá para entrar no evento oficial da Rio 92. E, como só as delegações de governo o tinham, o Aterro do Flamengo acolheu as pessoas que se reuniram para ter voz. Era natural esperar que de lá o som saísse em alto e bom tom. Na Praia do Flamengo de 2012 parecia haver um encontro arranjado, no qual os convidados não se empolgavam muito.
Outra marca da Rio+20 foi a quantidade de eventos pela cidade. A oferta era tanta que parecia não haver um ponto comum de encontro. Empresários foram ao Hotel Windsor, acadêmicos e cientistas, à Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), e a maioria das ONGs ficou no Aterro do Flamengo. O Forte de Copacabana, o Píer Mauá e o Museu de Arte Moderna (MAM) também foram locais importantes, cada um, claro, no seu quadrado.
“A Rio+20 foi dispersa. Agora, temos de entender o que aconteceu em cada um desses espaços e tentar articular os resultados”, diz Aron Belinky, coordenador de processos internacionais do Instituto Vitae Civilis. Já Suzana Padua, do IPÊ, acredita que a pulverização teve um ponto positivo: espalhou o debate do desenvolvimento sustentável por toda a cidade.
Sem cor, sem som
As portas do Riocentro desta vez foram abertas à sociedade civil que conseguiu se credenciar. Nos primeiros dias da Conferência, os pavilhões do local eram habitados por manifestantes pacíficos. À medida que o documento final passou a ser definido, vozes indignadas foram surgindo, multiplicando os cartazes e os protestos pelos corredores. “Disseram que a Cúpula não estava repercutindo nas discussões do documento oficial, aí o movimento das ONGs se deu conta de que era hora de fazer barulho no Riocentro”, conta Mantovani.
Poucas manifestações, porém, foram espontâneas em território oficial da ONU. Para protestar era preciso uma autorização, solicitada 24 horas antes. Um grupo de jovens aceitou a burocracia, mas só até certo ponto. No dia 21, eles se reuniram e ergueram o cartaz “O Futuro Que Compramos”. “O documento final parecia atender aos interesses de grandes corporações e não das pessoas”, explica Juliana Russar, coordenadora da ONG 350.org. O grupo cresceu até 200 pessoas, que decidiram abandonar o barco da Rio+20 de vez. Já que não tinham mais nada a perder, marcharam cantando e quebraram o protocolo. Passaram pelos seguranças e entregaram seus crachás. (Assista ao vídeo)
“Manifestação autorizada”, para Juliana, é um contrassenso. “É importante para a ONU e para os governos ter a sociedade civil presente na Conferência. Só que, quando queremos cumprir nosso papel, eles nos reprimem”, protesta.
Conectados
Um aspecto invariável presente em todo esse cenário sociopolítico foi o uso das tecnologias de comunicação. Se, há 20 anos, mal sabiam a que vinham, agora, as pessoas sabem que carregam em seus bolsos poderosas ferramentas de informação e mobilização. E contra isso a burocracia da ONU nada pode.
Se o documento final não satisfez a população, nada melhor do que uma petição que pressione os governos. A rede Avaaz lançou uma campanha contra os subsídios aos combustíveis fósseis e conseguiu reunir mais de 500 mil assinaturas pedindo à presidente Dilma que reabra as discussões. A ONG 350.org fez um documento parecido e teve mais de 1 milhão de adesões. Também fizeram um “tuitaço”, no dia 17 de junho, que contabilizou 100 mil pessoas reproduzindo nas redes sociais a frase #EndFossilFuelSubsidies, (fim dos subsídios aos combustíveis fósseis).
Ao lembrar de 1992, Feldmann mostra como seria difícil competir com a agilidade tecnológica de hoje: “Vim para a Rio 92 com meu primeiro celular: pesava 6 quilos e custava um Fusca”. Mantovani vai mais longe. “Em 1973, quando trabalhei com as questões da Conferência de Estocolmo, usávamos um mimeógrafo. Você nem deve saber o que é”, brinca com a repórter. A máquina de copiar criava folhas roxas com cheiro forte de álcool, que eram distribuídas uma a uma pelo correio. “Agora você mostra tudo na hora e não há limites. Sem dúvida, foi a Conferência mais conectada que a ONU já viu.”
Exemplo disso foi o registro de confrontos ocorridos pós-Marcha Global. Pouca gente viu que, depois da dispersão da massa, na frente da Biblioteca Nacional, um grupo de pelo menos cem pessoas permaneceu por lá, se manifestando, até que a Polícia Militar os tirou de lá à base do gás de pimenta. Tudo foi registrado com câmeras de celulares e no dia seguinte as cenas já haviam ganhado a rede.
“Hoje, qualquer um é fotógrafo, cineasta, editor de imagens, disseminador de informação. A internet e as tecnologias democratizaram a divulgação de qualquer informação”, diz Cássio Martinho, coordenador da Escola de Ativismo. O perigo? Não sabermos o que fazer e filtrar tudo o que chega até nós. “Há algumas décadas, corríamos o risco de sofrer de inanição de informação. Agora, o risco é a indigestão”, conclui Mantovani.
[:en]Do Riocentro às ruas, a sociedade civil esteve em todos os espaços físicos e virtuais da Rio+20, no primeiro evento desse porte desde o advento da web e das redes sociais. ocupou brechas e espalhou sua voz. Mas também se desarticulou e não soube cantar a mesma canção
No Brasil de 1992, de democracia recém-consumada pelas urnas e pela nova Constituição, não se sabia ao certo o que era ser “sociedade civil”. Naquele ano, em particular, a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável, também conhecida como Rio 92, foi uma motivação para que brasileiros e brasileiras se encontrassem na beira da Praia do Flamengo e se redescobrissem como cidadãos, tanto de sua própria terra como do mundo. O Fórum Global, que reuniu 17 mil pessoas paralelamente ao evento das Nações Unidas, abriu o espaço para a troca de ideias e a formação de várias organizações não governamentais.
Vinte anos depois, como se comportou esse grupo? À Rio+20 chegou uma nova sociedade civil. Diferente como o mundo, o Brasil e os problemas que enfrentamos. “Hoje a sociedade civil tem voz, mas tem também responsabilidades e é cobrada”, avalia o ambientalista, consultor e ex-secretário do Meio Ambiente do Estado de São Paulo Fabio Feldmann.
No Rio de Janeiro do século XXI, a pluralidade de bandeiras circulava livremente, como deve ser em uma democracia. No mesmo Aterro do Flamengo de 1992, só a Cúpula dos Povos recebeu 30 mil pessoas por dia. Havia espaço para todos, desde os que colhiam assinaturas para exigir do governo a inclusão da homeopatia nos seguros de saúde até os clássicos ambientalistas.
Essa multiplicidade teve seu ápice na Marcha Global da Cúpula dos Povos. Os organizadores falaram em 80 mil participantes, mas a Polícia Militar insistiu em enxutos 20 mil. Independentemente da quantidade, ali se viu de tudo. Enquanto, em um caminhão de som, agitadores do PSTU gritavam “fora ONGs imperialistas”, a 100 metros dali ativistas do Greenpeace cantavam e dançavam a marchinha do Desmatamento Zero. Mais atrás, feministas cantavam e tocavam tambores floridos. A poucas passadas, já era possível ouvir outro coro. Vinha de um grupo de bolivianos que discursavam sobre a questão migratória.
Para Mario Mantovani, diretor da SOS Mata Atlântica, esse caldeirão misto é o que dá tempero às grandes conferências e encontros, como o Fórum Social Mundial e a Rio+20. “Ver os outros movimentos ativos, as pessoas que erguem o braço e gritam ‘vamos lá’ é o que te faz pensar ‘quero fazer parte disso’. Aqui (no Riocentro) você entra e logo brocha”, diz, enquanto almoça no pavilhão de alimentação – de preços exorbitantes.
Pulverização e desencontro
Fica a dúvida se podemos chamar a massa que foi à Marcha Global de crítica. Muitos eram os gritos, mas não havia um sentido comum unindo as vozes. Entre tantas camisas, cada grupo cantava uma canção particular. O movimento Floresta Faz a Diferença bem que tentou: distribuiu camisetas e até criou um sambinha ao estilo “caia na Sapucaí”, mas que ficou restrito a um círculo.
“Quando estive no Fórum Global, em 1992, fiquei apaixonada pelo que vi”, conta Suzana Padua, presidente do Instituto de Pesquisas Ecológicas (IPÊ). “Havia ali uma vibração diferente. As pessoas se olhavam com esperança e viam o futuro, como se fosse possível salvar o mundo”, conta. Já o que viu na Cúpula e na Marcha na Rio+20 foi um clima de combate e indignação. “Ninguém acredita mais nos governos, mas não sabemos como mudar a situação”, diz.
Em 1992, a mobilização no Fórum Global foi forte porque estava lá toda a sociedade civil: acadêmicos, empresários, ongueiros, estudantes, artistas e quem mais não tivesse um crachá para entrar no evento oficial da Rio 92. E, como só as delegações de governo o tinham, o Aterro do Flamengo acolheu as pessoas que se reuniram para ter voz. Era natural esperar que de lá o som saísse em alto e bom tom. Na Praia do Flamengo de 2012 parecia haver um encontro arranjado, no qual os convidados não se empolgavam muito.
Outra marca da Rio+20 foi a quantidade de eventos pela cidade. A oferta era tanta que parecia não haver um ponto comum de encontro. Empresários foram ao Hotel Windsor, acadêmicos e cientistas, à Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), e a maioria das ONGs ficou no Aterro do Flamengo. O Forte de Copacabana, o Píer Mauá e o Museu de Arte Moderna (MAM) também foram locais importantes, cada um, claro, no seu quadrado.
“A Rio+20 foi dispersa. Agora, temos de entender o que aconteceu em cada um desses espaços e tentar articular os resultados”, diz Aron Belinky, coordenador de processos internacionais do Instituto Vitae Civilis. Já Suzana Padua, do IPÊ, acredita que a pulverização teve um ponto positivo: espalhou o debate do desenvolvimento sustentável por toda a cidade.
Sem cor, sem som
As portas do Riocentro desta vez foram abertas à sociedade civil que conseguiu se credenciar. Nos primeiros dias da Conferência, os pavilhões do local eram habitados por manifestantes pacíficos. À medida que o documento final passou a ser definido, vozes indignadas foram surgindo, multiplicando os cartazes e os protestos pelos corredores. “Disseram que a Cúpula não estava repercutindo nas discussões do documento oficial, aí o movimento das ONGs se deu conta de que era hora de fazer barulho no Riocentro”, conta Mantovani.
Poucas manifestações, porém, foram espontâneas em território oficial da ONU. Para protestar era preciso uma autorização, solicitada 24 horas antes. Um grupo de jovens aceitou a burocracia, mas só até certo ponto. No dia 21, eles se reuniram e ergueram o cartaz “O Futuro Que Compramos”. “O documento final parecia atender aos interesses de grandes corporações e não das pessoas”, explica Juliana Russar, coordenadora da ONG 350.org. O grupo cresceu até 200 pessoas, que decidiram abandonar o barco da Rio+20 de vez. Já que não tinham mais nada a perder, marcharam cantando e quebraram o protocolo. Passaram pelos seguranças e entregaram seus crachás. (Assista ao vídeo)
“Manifestação autorizada”, para Juliana, é um contrassenso. “É importante para a ONU e para os governos ter a sociedade civil presente na Conferência. Só que, quando queremos cumprir nosso papel, eles nos reprimem”, protesta.
Conectados
Um aspecto invariável presente em todo esse cenário sociopolítico foi o uso das tecnologias de comunicação. Se, há 20 anos, mal sabiam a que vinham, agora, as pessoas sabem que carregam em seus bolsos poderosas ferramentas de informação e mobilização. E contra isso a burocracia da ONU nada pode.
Se o documento final não satisfez a população, nada melhor do que uma petição que pressione os governos. A rede Avaaz lançou uma campanha contra os subsídios aos combustíveis fósseis e conseguiu reunir mais de 500 mil assinaturas pedindo à presidente Dilma que reabra as discussões. A ONG 350.org fez um documento parecido e teve mais de 1 milhão de adesões. Também fizeram um “tuitaço”, no dia 17 de junho, que contabilizou 100 mil pessoas reproduzindo nas redes sociais a frase #EndFossilFuelSubsidies, (fim dos subsídios aos combustíveis fósseis).
Ao lembrar de 1992, Feldmann mostra como seria difícil competir com a agilidade tecnológica de hoje: “Vim para a Rio 92 com meu primeiro celular: pesava 6 quilos e custava um Fusca”. Mantovani vai mais longe. “Em 1973, quando trabalhei com as questões da Conferência de Estocolmo, usávamos um mimeógrafo. Você nem deve saber o que é”, brinca com a repórter. A máquina de copiar criava folhas roxas com cheiro forte de álcool, que eram distribuídas uma a uma pelo correio. “Agora você mostra tudo na hora e não há limites. Sem dúvida, foi a Conferência mais conectada que a ONU já viu.”
Exemplo disso foi o registro de confrontos ocorridos pós-Marcha Global. Pouca gente viu que, depois da dispersão da massa, na frente da Biblioteca Nacional, um grupo de pelo menos cem pessoas permaneceu por lá, se manifestando, até que a Polícia Militar os tirou de lá à base do gás de pimenta. Tudo foi registrado com câmeras de celulares e no dia seguinte as cenas já haviam ganhado a rede.
“Hoje, qualquer um é fotógrafo, cineasta, editor de imagens, disseminador de informação. A internet e as tecnologias democratizaram a divulgação de qualquer informação”, diz Cássio Martinho, coordenador da Escola de Ativismo. O perigo? Não sabermos o que fazer e filtrar tudo o que chega até nós. “Há algumas décadas, corríamos o risco de sofrer de inanição de informação. Agora, o risco é a indigestão”, conclui Mantovani.