A instigante imagem da palhaça de língua de fora acabou estampada na capa da Página 22, edição 65. Mas quem era aquela figura irreverente? Página22 foi atrás de pistas e descobriu a ativista que andava pela Marcha Ré – manifestação contra a aprovação do novo Código Florestal – organizada durante a Rio+20.
Era Tica Minami, “jornalista de formação e ativista de coração”, como ela se descreve. A relação com o movimento socioambiental é de longa data. Tica trabalhou por dez anos no Greenpeace, dos quais oito passou em Manaus. Em 2010 voltou a São Paulo, mas continuou trabalhando com questões da Amazônia, como o Movimento Xingu Vivo. Foi ela, por exemplo, que entrou em contato com atores globais para o Movimento Gota D´água e os convenceu a participar da ação contra a construção de Belo Monte.
Para Tica, a Marcha Ré foi um dos pontos altos da Conferência porque uniu muitos grupos e fez as pessoas pensarem “fora da caixinha”. Ela acredita no poder de ação dos jovens de hoje e na criatividade, como a foto releva. “A arte, o lúdico, a criatividade e o humor são essenciais para estabelecer conexões”, diz. Leia a seguir a entrevista que Tica concedeu a Página22.
O QR Code não tem um apelo visual rápido porque as pessoas precisam tirar uma foto no celular para ver a mensagem. Por que, então, usá-lo numa manifestação?
O grupo da Escola de Ativismo, com quem eu estava, discutiu sobre isso, sobre a barreira tecnológica e sobre ser uma ferramenta elitista porque ainda é muito nova. No segundo setor já é comum ver QR Codes, mas não é algo tão propagado entre as pessoas e entre o terceiro setor. Então entendemos que como ferramenta de campanha chamaria a atenção.
Todo avanço tecnológico é excludente no início. É só com o acesso e com a divulgação que uma ferramenta se torna acessível a todos. Também fizemos essa provocação, de usar algo para deixá-lo mais acessível. E pensamos em outros usos. Imagine participar de uma reunião com governos ou empresas em que você possa fazer uma mensagem codificada e tirar fotos sem o alvo saber o que você quer dizer! É uma forma de usar as ferramentas de comunicação incisivamente e aumentar a pressão política.
O que você quis dizer com a frase do QR Code: “Eu, Tica, estou aqui porque sou uma rebelde que ama a vida e a felicidade mais que a ‘revolução’. #fujadocirco”?
A ideia era explicar porque eu estava na Marcha Global e na Rio+20. É uma provocação. A revolução não pode ser mais importante do que a relação entre as pessoas. Relações mais humanas e pessoas mais felizes já fazem o mundo melhor.
As visões de desenvolvimento, felicidade e qualidade de vida não podem passar só pela lógica economicista como acontece hoje. É uma mensagem sutil, mas é para confrontar o paradigma atual de desenvolvimento e qualidade de vida. É para pensar que uma sociedade mais livre tem outros valores que não só o do dinheiro. No final, por mais livre que a gente ache que é por termos “opções de escolha”, a gente tem que trabalhar muito para pagar a vida quer ter e acaba transformando isso numa prisão.
Às vezes paro em São Paulo, olho e penso “vocês estão todos de carro. Isso não é desenvolvimento para mim”. Eu não consigo entender um país que reduz o IPI do carro para aquecer a economia enquanto registra altos índices de lentidão no trânsito e reporta isso em matérias separadas, como se uma coisa não tivesse nada a ver com a outra.
Essa questão do IPI foi muito falada e criticada em vários eventos da Rio+20. Foi o grande mau exemplo do Brasil.
A discussão da economia verde também foi uma grande polêmica. Enquanto a economia for feita sob a ótica economicista – em que o lucro vem primeiro – não vai mudar nada. A gente vai só pintá-la de verde. E pode ser amarela, rosa ou preta. Não importa a cor, a economia tem que ser realmente nova e ter outros centros de sustentação.
Não é só colocar a natureza dentro da economia. É ao contrário, colocar o fator econômico dentro da lógica da economia ecológica, onde tudo é feito de recursos. Não dá mais pra manter o atual nível de produção e consumo. É impossível termos uma sociedade mais igualitária nesse modelo. Sempre vai haver muita gente com pouco e pouquíssima gente com muito. E esse é exatamente o modelo que eu não quero.
E o que é o Circo do qual temos que fugir?
O Circo é esse sistema. Esse que pinta com gloss, que passa um verniz de liberdade e de igualdade, mas só escraviza e cria mais diferenças sociais. Não acredito que haverá paz assim. Enquanto essas diferenças acontecerem, vão acontecer injustiças. A resistência tem que acontecer mesmo.
Para você, qual o sentido da frase do cartaz “Quando a multidão liderar, os líderes seguirão”?
É uma frase do Gandhi e a ideia era usá-la como mote para mostrar que cada pessoa tem essa centelha e que a liderança é o povo, não o governo. O governo tem que liderar para o povo.
E quem seriam essas multidões que deveriam liderar?
É difícil não ser vago quando se fala em “multidão”. Quando eu digo “o povo”, são pessoas que talvez nem estejam inseridas no ativismo socioambiental, mas que sentem na pele que do jeito que está não dá.
Hoje, tenho uma grande esperança nos jovens, nos artistas e no próprio movimento socioambiental. Vi uma galera jovem lá na Rio+20 engajada e preocupada. E em São Paulo, vejo muitos artistas antenados – desde os de novela, que todo mundo conhece, até os que ficam em seus nichos, como os grafiteiros. Mas ainda é um grande desafio porque a impressão que eu tenho é que o “lado de lá”, além de ter mais dinheiro e poder político, parece estar mais organizado.
Fica sempre uma impressão de que essa “multidão” é um pouco elitista. O movimento socioambiental, por exemplo, fica entre si num grupo fechado e não no “povo”. Como sair disso e como a multidão deixa de ser uma elite?
Essa é uma grande pergunta e um desafio mesmo. Na Escola de Ativismo temos a expressão “como sair da Kombi?”. É como se o pessoal entrasse na Kombi para ir a um lugar, fizesse um monte de coisas legais lá e voltasse comentando na Kombi. Tudo dentro do mesmo grupo fechado.
Como expandir isso? A resposta passa pela linguagem. Por exemplo, quando a discussão do Código Florestal entra nos detalhes técnicos do texto e da tramitação, acaba o interesse de quem não segue o assunto. Tem que haver a informação técnica para quem entende, mas o grande público precisa entender. A ideia é: fale com o outro como se tivesse falando com sua avó. Se sua avó entender, a maioria das pessoas também vai.
Informação só por si só, não mobiliza ninguém. Ela tem que ser um gatilho para despertar emoção, identificação e vontade de envolvimento. A arte, o lúdico, a criatividade e o humor são essenciais para estabelecer conexões, contatos e para que as pessoas se interessem por saber e conhecer mais.
Daí até se vestir de palhaço e ir com uma mensagem bem humorada numa manifestação, não é?
Exatamente. Sair da caixinha é a grande provocação que a gente faz. Marchar, enviar carta para o governo é legal, petição online é legal. Mas falta algo a mais. O que agente pode fazer com pouco dinheiro, com poucas pessoas e que crie um visual legal, chame atenção? E se as organizações deixassem de lado o seu logo e se juntassem, a gente teria realmente uma multidão.