O ambientalista da ONG Amigos da Terra – Amazônia Brasileira, Roberto Smeraldi, libera seu lado gastrônomo e carnívoro em entrevista à Página22
Roberto Smeraldi é o diretor de uma das mais importantes ONGs do País, a Amigos da Terra – Amazônia Brasileira. Uma de suas frentes de ação é a luta pelo fim do desmatamento ilegal da Floresta Amazônica – causado, entre outros motivos, pela expansão da fronteira agrícola e da pecuária.
Mas ele que também é gastrônomo, não negará um bife no ponto. Para contradizer o estereótipo que se tem de ambientalistas, ele não é vegetariano.
Segundo Smeraldi, a carne em si não é o problema, mas sim o consumo de um produto sem procedência e qualidade. Além disso, há uma forte ideia de que poucas carnes são boas, como o filé-mignon. Como um bom chef de cozinha, ele alerta: é preciso valorizar os outros cortes. A seguir, leia a íntegra da entrevista que ele concedeu a Página22 com seu lado gastrônomo e consumidor.
O senhor está à frente de uma das mais importantes ONGs do país e atua também no meio gastronômico. Como foi que surgiu sua ligação com a gastronomia?
Sempre cozinhei e me interessei por gastronomia. Meu trabalho com sustentabilidade cruza com a alimentação em todas as suas dimensões – produção, certificação, espaço usado na agricultura, etc. O consumo se tornou um assunto crucial, assim como outros aspectos mais e mais graves, como a obesidade infantil. Esses dois exemplos eram assuntos emergentes há alguns anos e hoje, infelizmente, são destaque no cenário internacional e no Brasil. Tudo isso se alinhou ao meu trabalho.
O senhor cozinha carne? É vegetariano? O estereótipo de ambientalista é o da pessoa que não consome carne…
(risos) Não sou, mas também não sou um super carnívoro. Se como duas vezes por semana já está bom, pois carne não é alimento para todos os dias. Acredito em uma alimentação variada, na qual a proteína não vem sempre de origem animal.
Uma das frentes de atuação da Amigos da Terra é o combate ao desmatamento ilegal da Amazônia, cuja maior causa é o uso da terra para a pecuária. Nunca questionaram que o senhor come carne?
Minha recomendação não é “não coma carne”, mas sim “preocupe-se em saber que carne você consome”.
No começo da década de 1990, a Amigos da Terra fazia os primeiros relatórios sobre a madeira e logo as pessoas concluíram “então, não vamos mais usar a madeira”. Eu dizia: “Não é isso. Temos de saber que madeira usar, como usar e de onde ela vem”. Agora, as pessoas entendem que a madeira é até solução para a floresta, como no caso do manejo florestal. Da mesma forma, não podemos dizer que comer a carne é um problema. O problema é comer a carne errada. Consumir uma picanha sem saber de onde ela veio não é só um problema de desmatamento ou envolvimento com trabalho escravo. É um risco para a saúde do consumidor.
Há problemas seríssimos por conta de uma cadeia obscura, sem garantia de origem e controle da rastreabilidade. E há precariedade no setor: abate clandestino e inspeções municipais que são como se não existissem.
Grande parte da carne que se come no Brasil – principalmente as mais baratas – não tem condições sanitárias. É inacreditável! Ela provém de animais doentes com risco de transmitir doenças para os humanos, como teníase, cisticercose, botulismo. As pessoas pegam isso tudo e nem sabem de onde veio.
Esses aspectos de segurança e certificação não dependem só do consumidor. São órgãos superiores de controle que cuidam disso. O que nós, consumidores, podemos fazer?
Essa é uma questão como “o ovo e a galinha”. Será que o governo, a Anvisa ou o mercado se mexem quando decidem ou quando o consumidor se faz ouvir? Outro exemplo foi o que aconteceu com o café. Era um produto problemático com fraude (havia feijão misturado nos grãos), envolvimento com trabalho escravo, desmatamento e erosão do solo. E olha, hoje, como o café brasileiro está com reconhecimento e qualidade!
Isso mudou no começo dos anos 1990. Havia alguns cafés caros, reimportados – o grão saía daqui verde, era torrado na Europa e voltava com preços exorbitantes. Agora, qualquer mercado tem na prateleira 30 tipos com origem e certificação. Será que foi o consumidor? Talvez sim.
Há quem credite isso ao fato de que mais brasileiros passaram a viajar mais ao exterior e ter contato com o café de lá. Ao mesmo tempo, os produtores brasileiros viram os colombianos ganhando prêmios e pensaram “será que eles têm um café melhor que o nosso?” E não tinham. Vários setores começaram a se articular e o café ganhou qualidade sem subir o preço.
Então, a saída para a carne de qualidade é uma articulação entre os vários setores?
Sim, precisamos de uma mudança que será a articulação da cadeia dos produtores, dos frigoríficos, do varejo e do consumidor. Entrará aí a certificação e o corte de qualidade. E não precisa aumentar o desmatamento. Hoje podemos produzir o dobro no espaço que temos e ainda liberar áreas para outras culturas e manejo florestal.
No Congresso Mesa e Tendências de 2012 [evento sobre gastronomia organizado pelo Senac], fiz uma palestra junto com o chef Alex Atala e o pecuarista Ricardo Sechis para mostrar como a articulação de pessoas de diferentes pontos da cadeia de valor é importante. Para haver uma mobilização sobre as formas de consumo na sociedade civil, é preciso dialogar com esses atores.
E quanto ao hábito de comer carne todos os dias, tão comum ao brasileiro?
Aqui se come 40 quilos de carne bovina por ano. É mais que os americanos e já estamos indo para padrões argentinos e uruguaios – que praticamente comem carne o dia todo! (risos) Os europeus comem 22 quilos. Nosso objetivo de longo prazo tem que ser apostar na racionalização do consumo e não no aumento.
E há outro problema: desperdício. Acontecia também com a madeira quando a tecnologia da serraria era antiga. Só se usava uma parte e o resto era descartado. Hoje, vivemos a “síndrome do filé-mignon” – que é vendido para as classe C e D como um símbolo de status.
As pessoas querem o filé-mignon porque é uma carne considerada de qualidade.
O sonho de muita gente é ter um boi inteiro de file mignon! (risos) Eu não quero. Nos 50 maiores restaurantes do mundo, não há pratos com esse corte. No máximo, essa carne vai ser a opção do prato infantil, junto a batatas fritas. A carne que o grande chef quer é a da bochecha, do rabo – que têm sabor especial e textura diferenciada.
Filé-mignon é aquela coisinha sem gosto, simples, mole (risos). Para quem não gosta de carne. Naquele dia do Congresso do Mesa e Tendências, oferecemos um pedaço de tendão para 500 pessoas comerem. Todo mundo aprovou. Se você cozinha bem, fica gostoso. É uma questão de conhecimento e valorização do animal.
O que o senhor acha de ser vegetariano?
Tenho todo o respeito, mas é uma questão pessoal. Não é uma opção para a sociedade. É impossível uma sociedade vegetariana e nem deveríamos desejá-la. A carne animal sempre foi importante para a civilização humana. O problema é quando nos tornamos totalmente dependente dela. É problemático para a saúde e para o ambiente .
O consumidor brasileiro, então, não relaciona a sua comida com a sustentabilidade?
O Brasil é o país dos extremos. Ao mesmo tempo em que há pessoas conscientizadas, não se vê isso nas classes sociais que se aproximaram agora do consumo. E os programas educacionais das escolas estão longe dessas pessoas. A dona de casa, que faz as compras, não teve acesso ao conhecimento como seu filho estudante. Mas essa criança ainda não toma decisão em casa. Estamos em um momento de transição. Dentro de 10 anos, gerações com mais escolarização terão mais poder de compra.
Temos, hoje, uma injeção imediata de gente que se torna consumidor sem preocupação e consciência do que significa consumir. Gente que, aliás, não sabe nem ler e escrever, quanto mais ler e entender rotulagem.
A educação é a base de tudo, inclusive para colocar a sustentabilidade na mesa da família brasileira.
Sim, e parte da educação está na prática, também. O ato de cozinhar é revolucionário. Você vê a relação entre o que compra, o que come e sua saúde. Mas hoje temos um grande problema que é a perda do hábito de cozinhar. As pessoas não têm tempo, então não compram o feijão para o filho, compram uma comida congelada em uma caixa. As pessoas estão perdendo a noção do que estão comendo. É preciso voltar à cozinha.
Falando em retorno, você assinou o Manifesto Cozinhista, junto a vários grandes chefs do Brasil, que fala justamente da volta às tradições e da valorização da culinária brasileira. O que motivou esse documento?
No Brasil, a regulação na indústria de alimentos e da agricultura é um negócio padronizado que não se preocupa com a diversidade da nossa produção e do nosso potencial. Dois exemplos: mel de abelha africana e europeia é regulado, mas o da abelha nativa não e queijo de leite cru da Itália é vendido a cada esquina, mas o de Minas Gerais não pode porque na Itália há controle sanitário e no Brasil, não. A resposta a uma fragilidade de controle sanitário é a proibição!
O Manifesto pede “que os fiscais da Anvisa e dos Serviços de Inspeção Federal, Estadual e Municipal sejam treinados e orientados para compreender, na sua prática diária, as particularidades dos produtos e produtores artesanais de alimentos”. Enquanto o queijo de Minas não pode ser comercializado, a carne com bactérias e doenças entra no mercado porque ninguém controla. As vistorias olham apenas as instalações do local de abate e do frigorífico. Só que meses depois da inspeção passar, o local fica degradante e ninguém volta lá por meses.
E qual é o próximo passo?
O Manifesto foi levado às autoridades do Ministério da Agricultura e da Anvisa. O grupo que assinou deve se organizar e ir a Brasília. Só que isso é uma história para o ano que vem.