Assim como complexos sistemas naturais abrigam diversas formas de vida, nosso corpo carrega um vasto contingente de habitantes. São microrganismos que, embora possam causar doenças, também têm o potencial de nos proteger delas
A noção do que é ser humano começou a ser radicalmente alterada em junho com um anúncio que passou quase despercebido: os primeiros resultados do Projeto do Microbioma Humano (PMH). Usando a técnica de sequenciamento genético, o projeto investigou nos últimos cinco anos os contornos do bioma que carregamos dentro de nós.
Graças ao PMH e a outras iniciativas, nasce o reconhecimento de que cada um abriga dentro de si um vasto e diverso contingente de microrganismos. Ele muda ao longo do tempo e depende de diferentes fatores. Quando adultos, nosso microbioma é consequência das ações que tomamos durante a vida, em geral guiados pela medicina tradicional, cujo objetivo é nos livrar dos efeitos malignos dos microrganismos. E que, como intervenções no ambiente externo a nós, além de produzir os resultados esperados, tem consequências insuspeitadas.
No caso da saúde humana, a disseminação dos antibióticos e outras drogas que afetam o microbioma interno estendeu a vida da maioria, mas pode também ser uma das causas da maior incidência de obesidade, diabetes, arteriosclerose, esclerose múltipla, asma, doenças do coração, fígado e intestinos. A investigação do microbioma humano talvez venha a ser a pedra fundadora de uma nova medicina, que, em vez proteger o corpo de ataques externos, enxerga-o como um ecossistema altamente mutável em que a saúde pode ser cultivada.
CONOSCO DESDE O PALEOLÍTICO
Nas primeiras décadas do século XX, descobrimos como combater infecções causadas por bactérias: a bem-vinda penicilina estendeu a expectativa de vida do homem ocidental em algumas décadas. A disseminação dos antibióticos, entretanto, teve o efeito colateral de gerar uma fobia coletiva a germes. Sem falar em uma indústria antibactericida.
O uso de antibióticos alastrou-se para além da medicina e hoje a maioria dos animais produzidos para consumo humano recebe altas doses para acelerar a engorda. Por alguma razão, escapou-nos a ideia de que o efeito das drogas em frangos e bezerros pode também se manifestar em nós, humanos. Será mera coincidência que a humanidade enfrenta uma epidemia de obesidade?
Enquanto a causa da nossa engorda coletiva ainda não pode ser precisada, há efeitos documentados do abuso dos antibióticos. Desde que seu uso se tornou comum, declinou de forma drástica a quantidade de crianças infectadas por Helicobacter pylori. Historicamente 70% a 90% das crianças nos EUA carregavam a bactéria – hoje são menos de 10%.
H. pylori foi apontada em 1982 como causadora de gastrites, úlceras e câncer no estômago. Há poucos anos, entretanto, pesquisadores mostraram que há uma associação inversa entre a erradicação de H. pylori do microbioma humano e o aumento da incidência de asma, rinite alérgica, eczema e doenças no esôfago.
“É possível que para a maioria dos indivíduos H. pylori seja benéfica na infância e nociva mais tarde na vida”, escreveram os pesquisadores, lembrando que as interações da bactéria com nosso corpo são complexas, específicas a cada indivíduo e não totalmente compreendidas pela ciência.
Assim como a H. pylori, que habita estômagos humanos desde tempos paleolíticos, é possível que outras bactérias promovam doenças em alguns casos e, em outros, nos protejam delas. Médicos e pesquisadores começam a concluir que tentar dizimá-las com antibióticos cada vez mais potentes – que fazem surgir “superbactérias” resistentes aos medicamentos – talvez não seja a melhor abordagem para a saúde humana.
Até o momento, entretanto, o que se desenha é um acúmulo de fatores que pode, a despeito de todo o avanço científico recente, aumentar a vulnerabilidade das próximas gerações.
O primeiro é o aumento do número de bebês que deixam de adquirir parte do microbioma ao nascer, pois, em vez de passar pelo canal vaginal da mãe – um dos locais que mais concentram bactérias no organismo humano –, são retirados do útero cirurgicamente, por meio das cesarianas. Na sequência, vêm rodadas de antibióticos na infância e uma vida higienizada. Embora vivamos mais, cresce a incidência de doenças que subtraem nossa qualidade de vida.
O quanto elas estão associadas à mudança de configuração do microbioma e como praticar uma medicina que considere as consequências da ação humana para o equilíbrio interno são tarefas que devem manter os cientistas ocupados por um bom tempo.
Mas os benefícios de olhar para dentro talvez transcendam o corpo humano. Dizem os psicólogos que, para sensibilizar as pessoas a causas ambientais, é preciso fazê-las sentir o problema no estômago. É no estômago que se origina a maior parte dos desequilíbrios no microbioma. Quiçá a noção de que nossas ações, mesmo que bem intencionadas, podem ter consequências nefastas internamente ajude também na tarefa de proteger, externamente, a biosfera que nos abriga.
*Flavia Pardini é jornalista e fundadora de Página22