Uma das regiões mais biodiversas do mundo é das que mais sofre insegurança alimentar e nutricional no País, ao lado do vizinho Nordeste, mostra evento. O debate põe “à mesa” algumas soluções locais, tradicionais e ancestrais para ajudar a reverter esse quadro
Por Magali Cabral
As raízes da insegurança alimentar e nutricional não estão na falta de alimentos, nem na capacidade de produzi-los. São consequências de decisões políticas – já diziam no século XX o médico Josué de Castro (1908-1973) e o sociólogo Herbert José de Sousa, o Betinho (1935-1997). “Segurança alimentar tem sido de fato um tema persistente no Brasil, com resolução bem desafiadora”, reforça a gestora de Conhecimento da rede Uma Concertação pela Amazônia, Georgia Jordão, ao dar início ao terceiro webinário de 2024 da série Notas Amazônicas: Comida, Cultura e Segurança Alimentar nas Amazônias, realizado em 6 de junho.
Após ter saído do Mapa da Fome da Organização das Nações Unidas em 2014, o País voltou a figurar no indicador na fase pós-pandemia de Covid-19. “Em 2023 houve uma redução significativa dos domicílios com insegurança alimentar no Brasil. Porém, dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua do IBGE revelam que essa condição ainda está presente e é mais frequente em estados das regiões Norte e Nordeste do Brasil”, complementa Jordão.
A proposta do encontro, promovido pela Concertação e pela Página22, com o apoio do Instituto Escolhas, foi abordar os sistemas alimentares nos territórios amazônicos, com atenção à produção, distribuição e consumo de alimentos, explorando as interações entre comida, saúde e cultura. “Nossa ideia é debater estratégias para tornar a produção de alimentos locais e regionais mais sustentável, saudável, justa, diversa, acessível e adaptada à crise climática”, explica a gerente de Portfólio do Instituto Escolhas, Jaqueline da Luz Ferreira.
Para dar sustentação a essa proposta, Ferreira apresenta um panorama de dados coletados em 2023. Enquanto o Brasil como um todo registra em média 27,6% de domicílios em situação de insegurança alimentar (moradores que vivenciam algum nível de constrangimentos no acesso à alimentos adequados ao desenvolvimento humano), os estados amazônicos extrapolam bastante esse índice: o Pará aparece com 47,3% e o Maranhão com 43,6% de lares que experimentam algum grau de insegurança alimentar.
Levantamento recente do governo federal, apresentado pela nutricionista e servidora pública federal na área de saúde Maria de Fátima Carvalho – que no evento representou a Secretaria Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (Sesan/MDS) – confirma os altos índices de insegurança alimentar das regiões Norte e Nordeste, respectivamente 39,7% e 38,7%, em média, em relação às demais macrorregiões do País. A servidora explica que esses números se igualam a resultados que haviam sido observados em 2013. “Ou seja, em seis anos, retrocedemos quase dez”, afirma.
Segundo ela, nesse universo, o perfil das pessoas em situação de insegurança alimentar tem um rosto feminino – 59% dos domicílios visitados tinham mulheres como chefes de família. E também tem cor e etnia: “A insegurança alimentar e nutricional grave atinge com mais ênfase os domicílios de famílias pardas e pretas”, informa Fátima Carvalho.
Os dados levantados pelo Instituto Escolhas sobre o consumo regular de alimentos saudáveis, como frutas e hortaliças, pelas populações amazônidas também são preocupantes. Em Belém, por exemplo, apenas 18% dos moradores adultos dizem comer alimentos saudáveis regularmente. Já o consumo de comida industrializada cresce na região: em Macapá, 30% dos adultos ouvidos pela pesquisa disseram ter se alimentado com cinco ou mais alimentos ultraprocessados no dia anterior à arguição, contra a média de 18% registrada nas capitais brasileiras e Distrito Federal no mesmo levantamento.
Outros números, igualmente contundentes, podem ser verificados nos estudos publicados pelo Instituto Escolhas “Produção de alimentos nas cidades e promoção da saúde” – feito em parceria com a Cátedra Josué de Castro de Sistemas Alimentares da Universidade de São Paulo (USP), e “Os desafios e o potencial da agricultura urbana e periurbana em Belém”. Ou ainda na íntegra do evento que permanece online no YouTube da Página22, e que conta com tradução em libras.
“Sempre dizemos que a agricultura familiar é o caminho para combater a fome. Mas quando olhamos para nós mesmos, amazônidas do Pará, detentores de uma diversidade enorme de peixes e frutas, com tanta abundância de proteínas, calorias e vitaminas, me pergunto como é possível não avançarmos nessa pauta?”. O questionamento é da presidente da Federação dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares do Estado do Pará (Fetagri-PA), Ângela de Jesus. Ela também atua no Movimento de Mulheres do Nordeste Paraense, mas deixa gravado no webinário: “antes de tudo, sou uma agricultora familiar”.
Sobre sua inquietude em relação à persistência da situação de insegurança alimentar em uma região tão biodiversa, ela mesma tem a resposta. Diz que é difícil avançar quando não se tem logística ou assistência técnica suficientes, para citar apenas duas de tantas outras políticas públicas que chegam ao território de forma precária ou insuficiente. O Plano Estadual de Agricultura Familiar (Peaf) revela que só 5% dos agricultores e agricultoras recebem assistência técnica plena no Pará, razão pela qual hortaliças e tubérculos ainda precisam ser “importados” de outras macrorregiões do País para abastecer Belém.
Já a soja veio de longe e segue ocupando grandes extensões de terras paraenses, com assistência técnica e alta produtividade, embora não seja comida. “É uma commodity, e aumenta o PIB”, ironiza a agricultora, fazendo lembrar a economista e escritora luso-brasileira Maria da Conceição Tavares (1930-2024) ao comentar o baixo crescimento registrado em 2014: “Ninguém come PIB, come alimentos!”
Alimentos tradicionais versus processados
Corroborando os dados do Instituto Escolhas, Ângela de Jesus lembra que alimentos tradicionais, como a farinha de mandioca artesanal e seus derivados, iguarias onipresentes por séculos nas mesas amazônicas, estão aos poucos sendo substituídas por produtos industrializados. Segundo ela, enxerga-se nitidamente a transição alimentar ocorrendo entre quilombolas, ribeirinhos, indígenas, nos assentamentos rurais, e entre os próprios agricultores familiares. “Nessa transição, as pessoas estão assimilando a cultura dos processados”.
A Pesquisa do Instituto Escolhas em parceria com a USP diz que a má alimentação, que inclui os alimentos processados, contribui para o aumento dos índices de excesso de peso e obesidade, além de ser fator de risco para o desenvolvimento de doenças crônicas não transmissíveis – como todos os tipos de câncer, diabetes, doenças cardiovasculares e respiratórias – a principal causa de óbitos no Brasil em 2019.
De acordo com o sociólogo Clodoaldo Pontes, presidente do Conselho Estadual de Segurança Alimentar e Nutricional Sustentável do Amazonas (Consea-AM), a ausência de locais adequados para a armazenagem de alimentos é uma justificativa usada pelos governos estaduais e municipais para o fornecimento de ultraprocessados, inclusive em escolas públicas.
O Consea-AM, ele conta, tem trabalhado no intuito de que o Amazonas invista em energias alternativas que permitam o armazenamento de alimentos frescos e saudáveis. Isso ajudaria o estado a cumprir sua própria lei (nº 6.470) de outubro de 2023, que restringe a oferta de embutidos, enlatados e bebidas artificiais na composição do cardápio da alimentação escolar da rede pública de ensino do estado.
Vencendo barreiras
Em meio a esse trabalho em prol de um sistema alimentar mais saudável, também se colhem resultados. Clodoaldo Pontes comemora a conquista da Comissão de Alimentos Regionais dos Povos da Amazônia (Catrapoa), que possibilitou que comunidades indígenas, quilombolas e extrativistas vendessem suas produções agrícolas diretamente para as escolas de seus filhos, sem a obrigatoriedade de passar pelo processo de vistoria sanitária.
Atualmente, de acordo com Pontes, a Catrapoa trabalha na facilitação do acesso dessas mesmas comunidades aos editais de compra de alimentos pelo poder público. “Há uma iniciativa de formação dos agricultores familiares no sentido de instruí-los sobre os procedimentos necessários para participar de chamadas públicas. Além disso, os editais são encaminhados antecipadamente às comunidades, já que a divulgação pela internet nem sempre é acessível”.
Esse esforço de profissionalizar comunidades produtoras de alimentos regionais pode se desdobrar em impactos positivos também na vida de empreendedores como a chefe de cozinha Débora Shornik, à frente do restaurante Caxiri, em Manaus. Para enaltecer e resgatar a beleza e a substancialidade da comida natural amazônica, como se propõe a fazer, ela precisa dos alimentos certos. Mas isso nem sempre é simples quando se está em Manaus. Um restaurante grande e bem conceituado como o Caxiri precisa seguir normas e padrões que pequenos agricultores familiares da região têm dificuldade de atender.
“É necessário muito esforço para permanecer em contato com os pequenos agricultores ou para fazer o translado dos alimentos, uma logística difícil que encarece muito o alimento”, lamenta Shornik em sua fala no webinário. “E, quando o produto chega à cidade, o restaurante não pode comprá-lo porque falta uma certificação ou uma nota fiscal. Perdemos a oportunidade de ter na panela alimentos ancestrais importantes e saborosos que trariam mais diversidade e nos afastariam da monodieta”, complementa.
O trabalho da chefe de cozinha vai além do exercício de sua atividade principal, vai além do prato. Como ativista, ela busca melhorar a qualidade do sistema alimentar em sua região, combatendo o desperdício, que diz ser altíssimo em feiras e mercados locais. As cozinhas solidárias manauaras, como a Casa do Rio e a Boca da Mata, nas quais atua, são instrumentos interessantes, tanto para enfrentar situações de crises e de eventos climáticos, mas também podem ser solução para simultaneamente reduzir o ciclo de desperdício e aumentar a segurança alimentar entre grupos sociais vulneráveis.
Valorização do cardápio local
Entre as ações do governo federal que incidem na transformação do sistema alimentar brasileiro, ganhou destaque no evento a publicação dos itens da nova cesta básica, instituída pelo Decreto nº 11.936 de março de 2024, que virá com uma composição mais saudável e regionalizada. O decreto tramita atualmente no Congresso Nacional, no âmbito da Reforma Tributária.
“A nova cesta leva em conta a cultura e as tradições locais, valoriza a produção de alimentos orgânicos e agroecológicos da agricultura familiar e da sociobiodiversidade e inclui uma variedade de alimentos in natura, ou minimamente processados”, detalha Maria de Fátima Carvalho.
Vários alimentos tradicionais amazônicos como o açaí, o tucupi e a castanha-do-pará se expandiram para além das fronteiras regionais e nacionais. Poderia essa valorização dos produtos nativos de alguma forma resultar em uma alimentação mais saudável dentro da Amazônia? Para Ângela de Jesus, a valorização de alguns produtos da região não está sendo um fator ruim para os amazônidas. “Por exemplo: antes de o consumo do açaí estourar, os açaizeiros eram derrubados para a extração do palmito. Houve uma valorização do fruto”, assinala.
O que se discute hoje, segundo explica, é a necessidade de um marco regulatório, ou um planejamento para o abastecimento da população local, de modo que as exportações desses alimentos não gerem escassez e nem alta de preços no mercado interno. Outra questão também que se impõe é a tendência de expansão de monoculturas, em especial do açaí, pondo em risco a tão desejada diversidade alimentar. “É urgente já pensarmos em soluções, como o consórcio da palmeira com outras culturas”, alerta a agricultora. “Em suma, toda essa valorização dos nossos alimentos não é ruim, desde que venha acompanhada de alguns cuidados”, completa.
Outro desses cuidados diz respeito ao uso de agrotóxicos na medida em que o consumo de alguns alimentos cresce muito rapidamente. “Infelizmente, não conseguimos ainda alcançar os corações e mentes das populações para a questão da comida saudável. Precisamos que as pessoas incorporem a noção de que o agrotóxico faz mal, bem como os corantes na farinha e outros aditivos”, adverte a agricultora.
Ameaças à integridade do sistema alimentar e nutricional amazônico surgem a todo momento e em todas as partes, mas no evento fica claro que há uma força contrária persistente, puxada pela sociedade civil e por governos subnacionais, capaz de reposicionar aquilo que tenta sair do lugar e de melhorar o que não está tão bom.
“A região amazônica tem água, clima favorável, trabalhadores dispostos a produzir e uma diversidade de alimentos regionais como em nenhuma outra parte. Só precisamos de algumas ferramentas para dar os passos que faltam e acabar com a insegurança alimentar”, diz Ângela de Jesus. Entre esses passos, existe um que é fundamental para uma agricultora familiar: “seguir incorporando sistemas agroflorestais para que as comunidades produzam, vendam e comam alimentos saudáveis e diversos ao longo de todo o ano”.