Em meio à cultura da hiperconexão, alguns grupos no Brasil e no mundo colocam em pauta: como gerir de forma coletiva o desenvolvimento e o uso equilibrado das tecnologias?
“Crash! Crash! Bang! Bang! Esses são os sons da liberdade!”, bradavam os pouco mais de 60 operários que invadiram e destruíram o maquinário da tecelagem de William Cartwright na calada da noite. Tratava-se dos ludditas, homens rebelados contra instrumentos que, mesmo otimizando a produção industrial, não os libertavam de condições de trabalho degradantes. Era o ano de 1812, na cidade de York, noroeste da Inglaterra.
Reprimidos com mão de ferro por leis que passaram a decretar pena de morte para quem destruísse máquinas, os ludditas expuseram uma fratura da história moderna que parece ainda não ter sido curada. Afinal, mais de 200 anos depois, a maquinaria tecnológica que nos cerca liberta ou escraviza?
O Brasil fechou 2012 tendo chegado à marca de 261,8 milhões de linhas de celulares, segundo a Anatel. Os números mostram algo que já é possível observar nas plataformas do metrô, nos trens, nos ônibus e até pelas calçadas das grandes cidades, onde multidões caminham conectadas. Munidos de smartphones, tablets e videogames portáteis, os brasileiros foram o motor para a chegada da rede social Facebook à marca de 1 bilhão de usuários e posicionaram o País no terceiro lugar do pódio das nações com mais usuários nessa rede.
Mas enquanto uns contam ao Facebook o que estão fazendo e comendo, ou jantam em família sem descolar o olho das últimas postagens no Twitter, outros começam a formar um coro de descontentes. Contestando a necessidade de estar permanentemente ligados (à internet, às redes de telefonia móvel, à televisão, ao rádio), afloram movimentos em favor de um estilo de vida com menos informações em tempo real e menos aparelhos de tecnologia digital. Em entrevista a Página22, o especialista em cultura digital Ronaldo Lemos afirma que chegaremos a um momento em que ficar desplugado é que será um luxo.
Em 2012, uma reportagem da revista americana Newsweek explorou os impactos da internet sobre a saúde mental, sustentando que eles podem levar de comportamentos depressivos a transtornos psíquicos mais severos. Em universidades de diversos países, pesquisas em Neurociência, Psiquiatria e Cognição estão debruçadas sobre casos que vão da dependência e vício em internet a alterações na percepção da realidade, passando por problemas de interação social. Ainda que haja muitas abordagens e controvérsias sobre o tema, o fato é que se tornou imperioso pensar sobre os efeitos, negativos e positivos, do uso de tecnologias digitais sobre nossa saúde individual e coletiva.
A página inicial do Sabbath Manifesto faz um convite ao navegante: desplugue-se por um dia. Desenvolvido pelo Reboot (em português, reiniciar), – grupo de artistas voltado para a criação de formas modernas de conexão com as tradições judaicas –, o manifesto remete à prática de resguardar o sábado.
Com base nos princípios do Movimento Slow [1], o manifesto sugere que os hiperconectados, judeus ou não, adaptem 10 princípios ao seu estilo de vida em pelo menos um dia da semana. São eles: evitar contato com a tecnologia; manter o contato com entes queridos; cuidar da saúde; sair; evitar áreas de comércio; acender velas; beber vinho; comer pão (talvez feito em casa); encontrar o silêncio; e contribuir com a comunidade.
[1] O movimento prega que as pessoas desacelerem suas vidas em todos os aspectos, da alimentação aos negócios. Mais em “Dieta da Casa”
Segundo o site, o participante pode encontrar uma forma própria de realizar os princípios e, caso precise de ajuda ou não tenha ideia do que fazer em seu tempo livre, pode se inscrever na UndoList – que sugere atividades para quem optou por ficar 24 horas longe da tecnologia.
Além disso, há mais de três anos, o Sabbath Manifesto realiza nos Estados Unidos o National Day of Unplugging, ou Dia Nacional da Desconexão, que, em 2013, acontece entre os crepúsculos dos dias 1 e 2 de março. Em 2012, a proposta de um dia desplugado foi aceita por celebridades como o ator Ashton Kutcher e o comediante Jimmy Fallon. O grupo pede que os participantes compartilhem as experiências de um dia desconectado em seu site e ainda promove a venda de objetos que ajudam a ficar longe de eletrônicos e afins, como um saco de dormir para guardar smartphones.
Mas, se os apelos a um estilo de vida menos conectado parecem fazer sentido para a população que vive nos grandes centros – ou nos países mais desenvolvidos –, isso talvez seja apenas a ponta de um problema ainda maior na gestão do acesso a tecnologias digitais. A grande contradição é que, em um país como o Brasil, parcelas da população ainda estão alijadas do acesso à informação e à comunicação – e reivindicam o direito de estarem conectadas, com qualidade, mesmo que não seja o tempo todo.
Entre os grupos que lutam por esse direito estão alguns dos quase 240 povos indígenas que vivem no Brasil, do Noroeste Amazônico, passando pelo Brasil Central, até o litoral nordestino. A demanda, compartilhada por comunidades quilombolas e outras populações tradicionais, é atendida por políticas públicas dos ministérios das Comunicações e da Cultura, além de ONGs e projetos de organizações indígenas. Mas tais iniciativas ainda esbarram em muitos obstáculos, sobretudo na dificuldade de captar recursos e manter apoios institucionais regulares e por longos períodos.
Em terras indígenas e em outras áreas do Brasil rural, conectividade é mais uma necessidade do que um simples desejo. No Nordeste, a rede Índios Online – que depende da intermitente e lenta conexão oferecida pelo Gesac, programa de inclusão digital do governo federal – reúne textos, cartas e pequenos vídeos de comunidades de toda a região, especialmente relatos das lutas desses povos pela retomada de seus territórios.
Em Rondônia, o povo Suruí Paiter monitora invasões madeireiras à Terra Indígena Sete de Setembro com ajuda do Google. Em São Gabriel da Cachoeira (AM), a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn) promove oficinas para auxiliar na formação de cyberativistas indígenas, ainda que na região seja muito difícil transportar e manter equipamentos e conexão.
Em Mato Grosso do Sul, entre os Guarani Kaiowá, o acesso à internet por membros do Conselho da Aty Guasu – a grande assembleia desse povo – lhes permitiu divulgar, no Brasil e no exterior, notas públicas sobre a situação de conflito fundiário e violência vivida por várias de suas comunidades, alimentando uma comoção pública sem precedentes e pressionando a Fundação Nacional do Índio (Funai) a acelerar o processo de demarcação da área de Pyelito Kue/Mbarakay, no sul do estado.
A apropriação da internet e de tecnologias de comunicação por indígenas não ocorre de forma passiva. Preocupados em se formar para o uso crítico das tecnologias e em torná-las úteis para as comunidades, na garantia do direito à terra, a educação e saúde diferenciadas e para dar visibilidade à cultura e aos conhecimentos tradicionais, os Guarani Kaiowá e Terena da Associação Cultural de Realizadores Indígenas (Ascuri), com o apoio do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), realizaram em 2012 a quarta edição do Fórum de Discussão sobre Inclusão Digital nas Aldeias (Fida), em Dourados (MS).
O líder Anastácio Peralta sintetiza, lembrando que é preciso capacitar as ferramentas para atender às especificidades indígenas: “Não basta só aparelhagem. A gente tem que conhecer, dominar. O computador é de todo mundo, mas nós temos de guaranizá-lo”.
O cenário de exclusão digital que se observa no Brasil é o principal objeto de análise do livro 2.0 Caminhos para a universalização da internet banda larga, organizado pelo coletivo Intervozes a partir de um edital do Comitê Gestor da Internet no Brasil e lançado em dezembro do ano passado. Mediante a licença Creative Commons [2], o livro está disponível no formato interativo – possibilitando comentários e compartilhamento de todos os textos – e pode ser impresso. Também há uma versão para leitura em dispositivos digitais (o ePub).
[2] autoriza a reprodução e o compartilhamento do conteúdo, sem pagamento de direitos autorais, desde que citada a fonte. Página22 é uma usuária desta licença
Sivaldo Pereira, um dos coordenadores do estudo, avalia que o Brasil está muito aquém de garantir o acesso à internet de qualidade como um direito do cidadão. “Inclusão digital não se resolve oferecendo uma conexão de baixa qualidade e ensinando alguém a usar um computador de forma limitada, gerando uma dependência de softwares ou aplicativos que são propriedades de algumas empresas privadas”, avalia.
Para Pereira, as desigualdades de acesso no Brasil são ocasionadas por uma infraestrutura que carece de investimentos; pela concentração de mercado na mão de poucas empresas; e por um sistema regulatório frágil, em que o Estado ainda não desempenha seu papel como centro de equilíbrio e de autoridade para o setor.
Apesar de o País ter criado o Programa Nacional de Banda Larga (PBNL) e reativado a Telebrás em 2010, explica Pereira, o esforço não foi suficiente para superar as barreiras que nos separam de países como Japão, Coreia do Sul e Austrália. Na opinião de Pereira, a desigualdade de acesso reforça outras desigualdades sociais e impede que os cidadãos exerçam direitos assegurados legalmente, como o acesso à informação e a liberdade de expressão.
“Deve ser garantido o direito do cidadão de participar da construção simbólica da realidade, algo que não pode ficar restrito a empresas de televisão ou ligadas ao setor da tecnologia da informação”, diz Pereira. Ele explica que a universalização da banda larga deve possibilitar que todos os cidadãos, independentemente de sua situação social, econômica, cultural ou regional, tenham acesso à internet, de forma estável e permanente, para se informarem, comunicarem, e produzirem cultura e sociabilidade.
O pesquisador atribui ao excesso de concentração de mercado no setor da internet as distorções geradas no modelo da vida cotidiana e o agravamento da posição de dependência do cidadão das tecnologias digitais. Segundo ele, há uma série de organizações que veem nesses meios uma nova fronteira de comunicação na qual se pode aumentar a circulação de conhecimento e defendem princípios que possibilitem que a internet cumpra este fim. Já para outros, a exacerbação da comunicação on-line teria um efeito colateral danoso, enquadrando os indivíduos dentro de sistemas de programação e algoritmos da indústria da informática.
“Acredito que o problema não está na tecnologia em si, e sim na forma como a moldamos, que princípios preservamos e como nos relacionamos com esses sistemas. É preciso achar um equilíbrio nesse processo.”
Distantes dos ideais que moveram os ludditas contra as máquinas no século XIX, alguns coletivos brasileiros estão propondo formas de politizar as relações que estabelecemos com as tecnologias e a internet – mais preocupados em desvendar as potências libertárias dessas tecnologias do que em destruí-las. Com 23 anos e se apresentando como um usuário comum de tecnologias digitais, ele é um anônimo. Tem motivos: “Prefiro não revelar meu nome por entender a autoria como tendo uma função fortemente policial”, explica o jovem participante de um coletivo político. Para ele, passar um dia desplugado, como propõe o Sabbath Manifesto, não é relevante: “A mim parece um discurso muito comum hoje em dia, de consumir menos para continuar consumindo”, explica.
A crítica do militante anônimo se sustenta pelo fato de que a internet passou, para muitas pessoas, a se resumir ao Facebook. Na opinião dele, a internet potencializa a comunicação, a difusão de saberes e a participação ativa de qualquer pessoa, mas por outro lado permite também controlar vidas. “Se você quiser ir para além do consumo passivo e da exibição de sua vida particular, uma hora ou outra você terá de pensar na segurança e no anonimato do que está fazendo”, observa ele, que, para garantir esses preceitos, promove serviços não corporativos.
Ele sugere o uso de servidores de e-mails seguros, como o Riseup, que é mantido, de forma livre, graças a uma rede de colaboração internacional; de buscadores que não gravam informações, como o StartPage; e de camufladores de IP (o endereço de entrada na internet), como o VPN e o TOR, que impedem que as movimentações na internet sejam registradas.
Iniciativas como esta não são novas: em 1990, quando a internet ainda engatinhava, a Electronic Frontier Foundation foi pioneira na discussão e defesa dos direitos à liberdade de expressão, privacidade e inovação na rede. Hoje a organização está discutindo as emendas que devem atenuar a lei de fraudes e abusos em computadores – base para o processo contra o programador e ativista Aaron Swartz [2].
[2] Jovem que cometeu suicídio no início deste ano, em decorrência de pressões por ter baixado mais de 4 milhões de trabalhos acadêmicos do banco de dados JSTOR.
TECNOPOLÍTICA
Em junho do ano passado, paralelamente às atividades da Rio+20, realizou-se o Fórum Mundial de Mídia Livre, cujo mote foi “Quem sabe assim saímos de vez do Facebook”, como uma forma traduzir as posições dos grupos que veem importância nas tecnologias digitais, mas preferem agir com toda a cautela quando assunto é o compartilhamento de informações em ambientes privados da rede. O evento foi antecedido pelo I Simpósio Internacional em Tecnopolítica na Universidade de São Paulo, em que especialistas e grupos de pesquisa se reuniram para discutir os aspectos políticos envolvidos no desenvolvimento e uso de tecnologias.
Um dos articuladores do simpósio foi o Saravá, grupo de estudos formado por cerca de dez pessoas, que, além de prover serviços livres para ativistas, tem investido em consolidar uma produção teórica sobre tecnopolítica. O Saravá se organiza para hospedar outros pequenos projetos e, em seu site, oferece, por exemplo, o serviço “Escritório Sem Login”, por meio do qual o usuário pode acessar salas de bate-papo criptografado, um anotador que permite a produção coletiva de textos e um agendador de compromissos, por exemplo. Na atual pauta do grupo, encontra-se, também, a participação na definição de um padrão livre de rádio digital para o Brasil.
Juba, um dos fundadores do Saravá, é formado em Ciências da Computação e participa da Rádio Muda, uma emissora livre que transmite pela web e, na região de Campinas, pelo 88,5 FM. Ele acredita que as tecnologias digitais apresentam os mesmos desafios que outras já apresentavam: no centro do debate, a possibilidade de apropriação pelas pessoas, não pelo capitalismo.
“Na raiz, o problema é o mesmo, mas a tecnologia digital trouxe algo novo. Um grande tear não era tão fácil de construir e acessar quanto um transistor. Então, as tecnologias podem ser apropriadas de forma mais simples, mas não necessariamente mais fácil. A tendência é de que as tecnologias sejam incorporadas rapidamente pelas empresas e não sobre nada para o resto.”
Para encarar esse desafio, Juba e seus companheiros apresentam alternativas modestas, mas radicais, de apropriação efetiva dessas tecnologias. Entre elas estão um esquema de construção e administração de servidores, um software para auxílio do ensino de línguas, uma distribuição de GNU/Linux para computadores tidos como obsoletos – uma opção para inclusão digital. Alimentando sistemas de fluxo coletivo de informação, que chama de “vizinhança de ideias”, o Saravá quer deixar na rede os rastros de suas próprias formas de produzir conhecimento sobre as tecnologias digitais.
Leia mais:
“Excessos são resultado das relações e não da tecnologia em si”, afirma pesquisador
[:en]Em meio à cultura da hiperconexão, alguns grupos no Brasil e no mundo colocam em pauta: como gerir de forma coletiva o desenvolvimento e o uso equilibrado das tecnologias?
“Crash! Crash! Bang! Bang! Esses são os sons da liberdade!”, bradavam os pouco mais de 60 operários que invadiram e destruíram o maquinário da tecelagem de William Cartwright na calada da noite. Tratava-se dos ludditas, homens rebelados contra instrumentos que, mesmo otimizando a produção industrial, não os libertavam de condições de trabalho degradantes. Era o ano de 1812, na cidade de York, noroeste da Inglaterra.
Reprimidos com mão de ferro por leis que passaram a decretar pena de morte para quem destruísse máquinas, os ludditas expuseram uma fratura da história moderna que parece ainda não ter sido curada. Afinal, mais de 200 anos depois, a maquinaria tecnológica que nos cerca liberta ou escraviza?
O Brasil fechou 2012 tendo chegado à marca de 261,8 milhões de linhas de celulares, segundo a Anatel. Os números mostram algo que já é possível observar nas plataformas do metrô, nos trens, nos ônibus e até pelas calçadas das grandes cidades, onde multidões caminham conectadas. Munidos de smartphones, tablets e videogames portáteis, os brasileiros foram o motor para a chegada da rede social Facebook à marca de 1 bilhão de usuários e posicionaram o País no terceiro lugar do pódio das nações com mais usuários nessa rede.
Mas enquanto uns contam ao Facebook o que estão fazendo e comendo, ou jantam em família sem descolar o olho das últimas postagens no Twitter, outros começam a formar um coro de descontentes. Contestando a necessidade de estar permanentemente ligados (à internet, às redes de telefonia móvel, à televisão, ao rádio), afloram movimentos em favor de um estilo de vida com menos informações em tempo real e menos aparelhos de tecnologia digital. Em entrevista a Página22, o especialista em cultura digital Ronaldo Lemos afirma que chegaremos a um momento em que ficar desplugado é que será um luxo.
Em 2012, uma reportagem da revista americana Newsweek explorou os impactos da internet sobre a saúde mental, sustentando que eles podem levar de comportamentos depressivos a transtornos psíquicos mais severos. Em universidades de diversos países, pesquisas em Neurociência, Psiquiatria e Cognição estão debruçadas sobre casos que vão da dependência e vício em internet a alterações na percepção da realidade, passando por problemas de interação social. Ainda que haja muitas abordagens e controvérsias sobre o tema, o fato é que se tornou imperioso pensar sobre os efeitos, negativos e positivos, do uso de tecnologias digitais sobre nossa saúde individual e coletiva.
A página inicial do Sabbath Manifesto faz um convite ao navegante: desplugue-se por um dia. Desenvolvido pelo Reboot (em português, reiniciar), – grupo de artistas voltado para a criação de formas modernas de conexão com as tradições judaicas –, o manifesto remete à prática de resguardar o sábado.
Com base nos princípios do Movimento Slow [1], o manifesto sugere que os hiperconectados, judeus ou não, adaptem 10 princípios ao seu estilo de vida em pelo menos um dia da semana. São eles: evitar contato com a tecnologia; manter o contato com entes queridos; cuidar da saúde; sair; evitar áreas de comércio; acender velas; beber vinho; comer pão (talvez feito em casa); encontrar o silêncio; e contribuir com a comunidade.
[1] O movimento prega que as pessoas desacelerem suas vidas em todos os aspectos, da alimentação aos negócios. Mais em “Dieta da Casa”
Segundo o site, o participante pode encontrar uma forma própria de realizar os princípios e, caso precise de ajuda ou não tenha ideia do que fazer em seu tempo livre, pode se inscrever na UndoList – que sugere atividades para quem optou por ficar 24 horas longe da tecnologia.
Além disso, há mais de três anos, o Sabbath Manifesto realiza nos Estados Unidos o National Day of Unplugging, ou Dia Nacional da Desconexão, que, em 2013, acontece entre os crepúsculos dos dias 1 e 2 de março. Em 2012, a proposta de um dia desplugado foi aceita por celebridades como o ator Ashton Kutcher e o comediante Jimmy Fallon. O grupo pede que os participantes compartilhem as experiências de um dia desconectado em seu site e ainda promove a venda de objetos que ajudam a ficar longe de eletrônicos e afins, como um saco de dormir para guardar smartphones.
Mas, se os apelos a um estilo de vida menos conectado parecem fazer sentido para a população que vive nos grandes centros – ou nos países mais desenvolvidos –, isso talvez seja apenas a ponta de um problema ainda maior na gestão do acesso a tecnologias digitais. A grande contradição é que, em um país como o Brasil, parcelas da população ainda estão alijadas do acesso à informação e à comunicação – e reivindicam o direito de estarem conectadas, com qualidade, mesmo que não seja o tempo todo.
Entre os grupos que lutam por esse direito estão alguns dos quase 240 povos indígenas que vivem no Brasil, do Noroeste Amazônico, passando pelo Brasil Central, até o litoral nordestino. A demanda, compartilhada por comunidades quilombolas e outras populações tradicionais, é atendida por políticas públicas dos ministérios das Comunicações e da Cultura, além de ONGs e projetos de organizações indígenas. Mas tais iniciativas ainda esbarram em muitos obstáculos, sobretudo na dificuldade de captar recursos e manter apoios institucionais regulares e por longos períodos.
Em terras indígenas e em outras áreas do Brasil rural, conectividade é mais uma necessidade do que um simples desejo. No Nordeste, a rede Índios Online – que depende da intermitente e lenta conexão oferecida pelo Gesac, programa de inclusão digital do governo federal – reúne textos, cartas e pequenos vídeos de comunidades de toda a região, especialmente relatos das lutas desses povos pela retomada de seus territórios.
Em Rondônia, o povo Suruí Paiter monitora invasões madeireiras à Terra Indígena Sete de Setembro com ajuda do Google. Em São Gabriel da Cachoeira (AM), a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn) promove oficinas para auxiliar na formação de cyberativistas indígenas, ainda que na região seja muito difícil transportar e manter equipamentos e conexão.
Em Mato Grosso do Sul, entre os Guarani Kaiowá, o acesso à internet por membros do Conselho da Aty Guasu – a grande assembleia desse povo – lhes permitiu divulgar, no Brasil e no exterior, notas públicas sobre a situação de conflito fundiário e violência vivida por várias de suas comunidades, alimentando uma comoção pública sem precedentes e pressionando a Fundação Nacional do Índio (Funai) a acelerar o processo de demarcação da área de Pyelito Kue/Mbarakay, no sul do estado.
A apropriação da internet e de tecnologias de comunicação por indígenas não ocorre de forma passiva. Preocupados em se formar para o uso crítico das tecnologias e em torná-las úteis para as comunidades, na garantia do direito à terra, a educação e saúde diferenciadas e para dar visibilidade à cultura e aos conhecimentos tradicionais, os Guarani Kaiowá e Terena da Associação Cultural de Realizadores Indígenas (Ascuri), com o apoio do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), realizaram em 2012 a quarta edição do Fórum de Discussão sobre Inclusão Digital nas Aldeias (Fida), em Dourados (MS).
O líder Anastácio Peralta sintetiza, lembrando que é preciso capacitar as ferramentas para atender às especificidades indígenas: “Não basta só aparelhagem. A gente tem que conhecer, dominar. O computador é de todo mundo, mas nós temos de guaranizá-lo”.
O cenário de exclusão digital que se observa no Brasil é o principal objeto de análise do livro 2.0 Caminhos para a universalização da internet banda larga, organizado pelo coletivo Intervozes a partir de um edital do Comitê Gestor da Internet no Brasil e lançado em dezembro do ano passado. Mediante a licença Creative Commons [2], o livro está disponível no formato interativo – possibilitando comentários e compartilhamento de todos os textos – e pode ser impresso. Também há uma versão para leitura em dispositivos digitais (o ePub).
[2] autoriza a reprodução e o compartilhamento do conteúdo, sem pagamento de direitos autorais, desde que citada a fonte. Página22 é uma usuária desta licença
Sivaldo Pereira, um dos coordenadores do estudo, avalia que o Brasil está muito aquém de garantir o acesso à internet de qualidade como um direito do cidadão. “Inclusão digital não se resolve oferecendo uma conexão de baixa qualidade e ensinando alguém a usar um computador de forma limitada, gerando uma dependência de softwares ou aplicativos que são propriedades de algumas empresas privadas”, avalia.
Para Pereira, as desigualdades de acesso no Brasil são ocasionadas por uma infraestrutura que carece de investimentos; pela concentração de mercado na mão de poucas empresas; e por um sistema regulatório frágil, em que o Estado ainda não desempenha seu papel como centro de equilíbrio e de autoridade para o setor.
Apesar de o País ter criado o Programa Nacional de Banda Larga (PBNL) e reativado a Telebrás em 2010, explica Pereira, o esforço não foi suficiente para superar as barreiras que nos separam de países como Japão, Coreia do Sul e Austrália. Na opinião de Pereira, a desigualdade de acesso reforça outras desigualdades sociais e impede que os cidadãos exerçam direitos assegurados legalmente, como o acesso à informação e a liberdade de expressão.
“Deve ser garantido o direito do cidadão de participar da construção simbólica da realidade, algo que não pode ficar restrito a empresas de televisão ou ligadas ao setor da tecnologia da informação”, diz Pereira. Ele explica que a universalização da banda larga deve possibilitar que todos os cidadãos, independentemente de sua situação social, econômica, cultural ou regional, tenham acesso à internet, de forma estável e permanente, para se informarem, comunicarem, e produzirem cultura e sociabilidade.
O pesquisador atribui ao excesso de concentração de mercado no setor da internet as distorções geradas no modelo da vida cotidiana e o agravamento da posição de dependência do cidadão das tecnologias digitais. Segundo ele, há uma série de organizações que veem nesses meios uma nova fronteira de comunicação na qual se pode aumentar a circulação de conhecimento e defendem princípios que possibilitem que a internet cumpra este fim. Já para outros, a exacerbação da comunicação on-line teria um efeito colateral danoso, enquadrando os indivíduos dentro de sistemas de programação e algoritmos da indústria da informática.
“Acredito que o problema não está na tecnologia em si, e sim na forma como a moldamos, que princípios preservamos e como nos relacionamos com esses sistemas. É preciso achar um equilíbrio nesse processo.”
Distantes dos ideais que moveram os ludditas contra as máquinas no século XIX, alguns coletivos brasileiros estão propondo formas de politizar as relações que estabelecemos com as tecnologias e a internet – mais preocupados em desvendar as potências libertárias dessas tecnologias do que em destruí-las. Com 23 anos e se apresentando como um usuário comum de tecnologias digitais, ele é um anônimo. Tem motivos: “Prefiro não revelar meu nome por entender a autoria como tendo uma função fortemente policial”, explica o jovem participante de um coletivo político. Para ele, passar um dia desplugado, como propõe o Sabbath Manifesto, não é relevante: “A mim parece um discurso muito comum hoje em dia, de consumir menos para continuar consumindo”, explica.
A crítica do militante anônimo se sustenta pelo fato de que a internet passou, para muitas pessoas, a se resumir ao Facebook. Na opinião dele, a internet potencializa a comunicação, a difusão de saberes e a participação ativa de qualquer pessoa, mas por outro lado permite também controlar vidas. “Se você quiser ir para além do consumo passivo e da exibição de sua vida particular, uma hora ou outra você terá de pensar na segurança e no anonimato do que está fazendo”, observa ele, que, para garantir esses preceitos, promove serviços não corporativos.
Ele sugere o uso de servidores de e-mails seguros, como o Riseup, que é mantido, de forma livre, graças a uma rede de colaboração internacional; de buscadores que não gravam informações, como o StartPage; e de camufladores de IP (o endereço de entrada na internet), como o VPN e o TOR, que impedem que as movimentações na internet sejam registradas.
Iniciativas como esta não são novas: em 1990, quando a internet ainda engatinhava, a Electronic Frontier Foundation foi pioneira na discussão e defesa dos direitos à liberdade de expressão, privacidade e inovação na rede. Hoje a organização está discutindo as emendas que devem atenuar a lei de fraudes e abusos em computadores – base para o processo contra o programador e ativista Aaron Swartz [2].
[2] Jovem que cometeu suicídio no início deste ano, em decorrência de pressões por ter baixado mais de 4 milhões de trabalhos acadêmicos do banco de dados JSTOR.
TECNOPOLÍTICA
Em junho do ano passado, paralelamente às atividades da Rio+20, realizou-se o Fórum Mundial de Mídia Livre, cujo mote foi “Quem sabe assim saímos de vez do Facebook”, como uma forma traduzir as posições dos grupos que veem importância nas tecnologias digitais, mas preferem agir com toda a cautela quando assunto é o compartilhamento de informações em ambientes privados da rede. O evento foi antecedido pelo I Simpósio Internacional em Tecnopolítica na Universidade de São Paulo, em que especialistas e grupos de pesquisa se reuniram para discutir os aspectos políticos envolvidos no desenvolvimento e uso de tecnologias.
Um dos articuladores do simpósio foi o Saravá, grupo de estudos formado por cerca de dez pessoas, que, além de prover serviços livres para ativistas, tem investido em consolidar uma produção teórica sobre tecnopolítica. O Saravá se organiza para hospedar outros pequenos projetos e, em seu site, oferece, por exemplo, o serviço “Escritório Sem Login”, por meio do qual o usuário pode acessar salas de bate-papo criptografado, um anotador que permite a produção coletiva de textos e um agendador de compromissos, por exemplo. Na atual pauta do grupo, encontra-se, também, a participação na definição de um padrão livre de rádio digital para o Brasil.
Juba, um dos fundadores do Saravá, é formado em Ciências da Computação e participa da Rádio Muda, uma emissora livre que transmite pela web e, na região de Campinas, pelo 88,5 FM. Ele acredita que as tecnologias digitais apresentam os mesmos desafios que outras já apresentavam: no centro do debate, a possibilidade de apropriação pelas pessoas, não pelo capitalismo.
“Na raiz, o problema é o mesmo, mas a tecnologia digital trouxe algo novo. Um grande tear não era tão fácil de construir e acessar quanto um transistor. Então, as tecnologias podem ser apropriadas de forma mais simples, mas não necessariamente mais fácil. A tendência é de que as tecnologias sejam incorporadas rapidamente pelas empresas e não sobre nada para o resto.”
Para encarar esse desafio, Juba e seus companheiros apresentam alternativas modestas, mas radicais, de apropriação efetiva dessas tecnologias. Entre elas estão um esquema de construção e administração de servidores, um software para auxílio do ensino de línguas, uma distribuição de GNU/Linux para computadores tidos como obsoletos – uma opção para inclusão digital. Alimentando sistemas de fluxo coletivo de informação, que chama de “vizinhança de ideias”, o Saravá quer deixar na rede os rastros de suas próprias formas de produzir conhecimento sobre as tecnologias digitais.
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