No dia 15 de maio de 2011, os “Indignados” ocuparam as principais ruas de Madri para reivindicar uma democracia mais participativa e direta e protestar contra as políticas de austeridade impostas à Espanha. A eclosão do movimento – popularizado como 15M – fez surgir um acampamento em plena praça Puerta del Sol, a acampada, com o objetivo de reunir cidadãos nas ruas para discutir o momento crítico pelo qual passava a Espanha. Dois anos depois, seus reflexos ainda são muito visíveis na sociedade espanhola e no modo de fazer política no dia-a-dia.
Fernando García é uma das múltiplas faces que estiveram nas ruas construindo o 15M. Em entrevista à PÁGINA22, o ativista apontou alguns aspectos que aproximam e distanciam as manifestações na Espanha e no Brasil.
O contexto do movimento mostra que, apesar das diferenças estruturais, há muitos pontos comuns entre o 15-M e as manifestações no Brasil. Segundo García, também houve uma mistura de motivações, entre o descontentamento com a representatividade política e insatisfações de origem socioeconômica. “A realidade é que as pessoas saíram às ruas quando passaram a ser afetadas pela falta de trabalho. E tende a piorar, com as ameaças de privatização dos serviços sociais pelo atual governo e corte de gastos.”
Outra semelhança é a debilidade política de amplos setores da sociedade. O sistema político espanhol, tal qual o brasileiro, é complexo e cheio de minúcias. “Toda a complexidade do sistema político é para distanciar o cidadão das questões políticas.” Distanciamento que, em sua opinião, é refletido em falta de consciência política.
Por outro lado, uma diferença marcante é a atenção dada pelos políticos espanhóis à repercussão política das manifestações, menor que a dos brasileiros. “Eles preferem ignorar os protestos, porque não perdem tantos eleitores com isso. É mais rentável continuarem contando suas histórias e se voltarem aos cidadãos que não são ativos politicamente”, afirma García. Além disso, a própria imprensa contribui para corroborar a ideia de que apenas uma parte da população está insatisfeita. No Brasil, por outro lado, a mobilização das ruas gerou grande repercussão política e estimulou os chefes de governo e parlamentares a instituírem uma “agenda positiva”, na busca pela aprovação de suas bases eleitorais [3].
[3] Talvez por essa diferença gritante, o sociólogo espanhol Manuel Castells afirmou em entrevista que a presidenta Dilma Rousseff foi a primeira líder mundial a ouvir as ruas
García faz um balanço da atuação do 15M, que motivou a formação de outros movimentos de ação direta dentro e fora da Espanha (veja aqui fotos de García no acampamento da Puerta del Sol, no coração de Madri):
O que as pessoas questionaram no modelo de democracia da Espanha durante as acampadas?
A principal queixa era de que o sistema estava podre e não era mais capaz de representar as pessoas. O que tínhamos não era uma democracia. Buscamos uma democracia mais interativa, em que o cidadão tenha mais acesso aos políticos. Agora temos muito mais tecnologia, então é possível o cidadão assumir um papel mais importante. Na Espanha, vivemos uma separação completa de classes, em que o político faz o que quer e o cidadão assiste a tudo pela televisão. Queremos ter o direito de opinar sobre todas as questões que nos dizem respeito.
Foi possível chegar a consensos em torno de propostas que viabilizem o que vocês chamam de democracia real em meio a debates em grupos tão grandes como os existentes nas acampadas?
Muitas vezes chegamos a demandas concretas, também porque o 15M queria levar a mudança ao Parlamento para cumprir o objetivo de dar voz ao povo, principalmente no processo de tomada de decisão. Uma das primeiras propostas eram as listas abertas para eleição de parlamentares para que pudéssemos votar não em um partido político, mas em um candidato e, assim, estar mais próximo dele. Além disso, propomos a queda da Fórmula D’Hondt [2], que estabelece a divisão de cadeiras no Parlamento. Seria uma reforma no sistema proporcional, já que as regras atuais favorecem partidos grandes. E também a convocação de mais referendos, para ampliar a participação popular. Para o 15M sempre esteve claro que, para que as coisas mudem é necessário trazer ideias de mudança. Então sempre buscamos propostas para tornar o sistema mais coerente e inclusivo.
[2] No Brasil, a Fórmula D’Hondt também é usada para a distribuição de cadeiras do Congresso Nacional. Já a ordem dos candidatos eleitos dentro do partido é determinada pela votação, o que configura o formato de lista aberta. Conheça mais aqui
Passados mais de dois anos do surgimento do 15M, você identifica avanços no sistema da democracia representativa rumo à democracia real?
O espírito do movimento se mostra na mudança da cultura política. A grande conquista foi lembrar as pessoas da importância de se conscientizar sobre as questões que dizem respeito a sua cidade, bairro ou país. Vi mudanças impressionantes, como no meu bairro, onde hoje vizinhos conversam nas ruas, para chegar a soluções.
Depois das acampadas, instalaram-se assembleias nos bairros de Madri para discutir problemas locais. Em seguida, elas cresceram, organizadas e articuladas pela internet.
Antes do acampamento, as pessoas tinham uma imagem muito negativa das assembleias e okupas (ocupações de prédios vazios que podem ser usados como centros sociais auto-geridos, veja mais em vídeo), que eram vistas como “coisas de callejeros desocupados” (callejero é aquele que trabalha e/ou vive na rua, a exemplo dos artistas de rua). Ao mesmo tempo, muitas pessoas tinham vontade de participar mais ativamente da política, mas não faziam isso porque não “botavam fé”.
Quando o 15M apareceu na televisão, funcionou como um clique que as deixou mais dispostas a ir às ruas protestar e discutir questões coletivas. Assim como muitos não mudaram a mentalidade, tantos outros abriram os olhos e começaram a se informar e agir.
Como a organização do movimento em rede pode contribuir para a criação da democracia real?
Desde o princípio, as redes sociais nos ajudaram a comunicar e convocar as manifestações. Posteriormente, os fóruns e redes sociais colaboraram para ampliar a discussão dessas ideias e, por fim, na organização e articulação dos cidadãos. O próprio 15M criou a ferramenta online “Propongo”, que é uma espécie de assembleia virtual, na qual cada pessoa pode fazer suas propostas e votar. Se as tecnologias estão ao alcance de todos, por que não são usadas para aproximar as pessoas das instituições políticas? O povo deve se conscientizar de que uma das exigências dos políticos deve ser escutar. O problema é não punir aqueles que não dialogam. Existem canais digitais de comunicação, como Twitter, Facebook, e-mail, que servem bem a esse diálogo. É um erro grave um político ser inacessível. É a perda do conceito original do político, que tem a função de representar o cidadão.
O 15M pensa em fundar seu próprio partido?
O movimento sempre se posicionou contrário a entrar no sistema político atual. Jogar com as regras vigentes seria fracassar desde o princípio. Temos que mostrar em que acreditamos, desde sempre – um sistema de assembleias, horizontal, no qual qualquer um que tenha uma boa ideia possa apresentá-la. Entretanto, muitos acham que só é possível mudar o sistema por dentro. Esse debate já dura muito tempo, mas acho que no momento essa ideia não avança. Se não concordamos com a estrutura, não temos que entrar, preferimos lutar por um sistema político mais democrático. Queremos mostrar que não é preciso ser político para fazer política. Sou cidadão e isso basta. As decisões políticas me afetam, e por isso quero ser capaz de dar voz, expressar-me sem ter que fazer carreira política. Foi exatamente isso o que nos fez sair às ruas.
Colaborou: Júlia Lima
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