Minha origem é uma terra distante. Tão distante que não está no Google, de modo que não estando no Google possivelmente deixa de estar em parte alguma
“Arriba, muchacho”, cheguei ao Brasil falando assim, por achar que a principal cidade do país fosse Buenos Aires. Ledo engano. Sempre fui melhor de anatomia do que de geografia, entende-se lá por quê. Qual a capital do pâncreas? Aposto que você não sabe onde fica o pulmão do sul, nem o pulmão do norte. Mas pode confirmar aí que sou bom de História. Sei de cabeça o ano quando a vesícula biliar conquistou a independência. Que na época do Antigo Regime o cinto não apertava e as moças ainda eram todas esbeltas com seus manequins 38 – très chic.
Corpo humano é fofoca, gente. Ouvi dizer que Eva não veio da costela de Adão. Ela teria vindo mesmo é da costela de Fernanda Beatriz, que nem por um nome bíblico era chamada. Pois veja: se as mulheres começaram a votar por aqui em pleno século XX, imagine naquele começo de mundo o tamanho da revolução que era ter um nome fora do padrão do Paraíso.
Vou falar outra. Peço apenas que não conte ao sangue, uma vez que ele espalha a notícia em um piscar de olhos. O sovaco esquerdo anda saindo com a narina direita, acredite. No começo, ela nem ligava para ele. Por mais que os dois conversassem todas as tardes no Facebook, a narina insistia em esnobá-lo na rua, passando invariavelmente com o nariz empinado. Até que um dia, coisa do destino, veio uma forte gripe e ela ficou obstruída.
Foi quando os dois se aproximaram. O sovaco passou uma semana preparando-lhe chá de hortelã com gengibre e canja bem quentinha para espantar o vírus. Não se pode dizer que a narina sentiu amor ao primeiro cheiro. O fato, no entanto, é que naquele período de cuidados com a enferma a paixão surgiu no ar. E o próprio sovaco deu o braço a torcer, passando a se perfumar diariamente para conquistar a amada cada vez mais, depois que ela convalesceu.
Tanto falatório de minha parte e você deve estar se perguntando como vim parar no Brasil. Vim de avião. Fiquei surpreso na aterrissagem quando a aeromoça informou sobre os passageiros que teriam prioridade no desembarque. Na hora em que a funcionária da companhia aérea anunciou “melhor idade”, logo imaginei as crianças com seus sonhos, brinquedos e alegrias tendo a preferência para deixar a aeronave.
Minha origem é uma terra distante. Tão distante que não está no Google, de modo que não estando no Google possivelmente deixa de estar em parte alguma. Fora isso, eu mesmo me achava tão no mundo da Lua ou de qualquer planeta desses que os amigos, querendo me encontrar, já não ligavam para a minha casa. Ligavam direto para a Nasa.
Na minha terra quando bate assim o horário do almoço as pessoas gostam de jantar. E quando bate o horário do jantar as pessoas gostam de almoçar. Acho que é o estômago feito do avesso, só pode ser. Os homens podem escolher engravidar no lugar das mulheres e vi muito casamento acabar porque a mãe se arrependeu de ter deixado a tarefa com o pai. No momento da amamentação, o bebê é bem servido. Dá para escolher entre oferecer leite tradicional, café com açúcar, café com adoçante, leite com chocolate ou cappuccino.
O povo fala pelos cotovelos e sorri de orelha a joelho. Chora pelo umbigo e passa esmalte nas unhas do pé do ouvido. Tem o costume de cultivar um pomar de maçãs do rosto no quintal e, para cuidar da pele, joga umas cebolas fritas com alecrim nas batatas das pernas.
O maior problema é que o coração das pessoas fica do lado direito. Dessa forma, elas não conseguem amar umas às outras. Os relacionamentos surgem por interesse ou convenção. Diante do imbróglio desse negócio, há alguns anos, resolvi estudar o assunto. Com o tempo, criei uma técnica de transplante do órgão para o devido lugar, capaz de fazer o amor brotar sem freios.
O número de interessados em aproveitar o novo método foi grande, o que me permitiu realizar milhares de transplantes. O problema que era um, porém, virou outro. Ao amar quem a gente ama de verdade, surgiu a necessidade de as pessoas serem correspondidas – o que nem sempre ocorreu.
Então, embora eu tenha sido convidado para ser padrinho de diversos casamentos felizes, acabei perseguido em praça
pública por incontáveis amantes solitários e insatisfeitos. Com seus buquês de rosas murchas, alianças devolvidas, cartas ridículas e amores platônicos, correram atrás de mim pedindo o dinheiro de volta.
O Brasil virou meu refúgio seguro. Hoje o reconheço como a minha nova pátria, guardando-o do lado direito do peito. E espero contribuir.
*Eduardo Shor é jornalista e autor do livro Amor do Mundo
Leia mais:
“Enquanto o saneamento básico é um direito negado a metade da população brasileira, inovações mostram as vantagens econômicas, sociais e ambientais de aproveitar efluentes tratados para gerar energia”, por José Eli da Veiga em “De limão a limonada”
[:en]Minha origem é uma terra distante. Tão distante que não está no Google, de modo que não estando no Google possivelmente deixa de estar em parte alguma
“Arriba, muchacho”, cheguei ao Brasil falando assim, por achar que a principal cidade do país fosse Buenos Aires. Ledo engano. Sempre fui melhor de anatomia do que de geografia, entende-se lá por quê. Qual a capital do pâncreas? Aposto que você não sabe onde fica o pulmão do sul, nem o pulmão do norte. Mas pode confirmar aí que sou bom de História. Sei de cabeça o ano quando a vesícula biliar conquistou a independência. Que na época do Antigo Regime o cinto não apertava e as moças ainda eram todas esbeltas com seus manequins 38 – très chic.
Corpo humano é fofoca, gente. Ouvi dizer que Eva não veio da costela de Adão. Ela teria vindo mesmo é da costela de Fernanda Beatriz, que nem por um nome bíblico era chamada. Pois veja: se as mulheres começaram a votar por aqui em pleno século XX, imagine naquele começo de mundo o tamanho da revolução que era ter um nome fora do padrão do Paraíso.
Vou falar outra. Peço apenas que não conte ao sangue, uma vez que ele espalha a notícia em um piscar de olhos. O sovaco esquerdo anda saindo com a narina direita, acredite. No começo, ela nem ligava para ele. Por mais que os dois conversassem todas as tardes no Facebook, a narina insistia em esnobá-lo na rua, passando invariavelmente com o nariz empinado. Até que um dia, coisa do destino, veio uma forte gripe e ela ficou obstruída.
Foi quando os dois se aproximaram. O sovaco passou uma semana preparando-lhe chá de hortelã com gengibre e canja bem quentinha para espantar o vírus. Não se pode dizer que a narina sentiu amor ao primeiro cheiro. O fato, no entanto, é que naquele período de cuidados com a enferma a paixão surgiu no ar. E o próprio sovaco deu o braço a torcer, passando a se perfumar diariamente para conquistar a amada cada vez mais, depois que ela convalesceu.
Tanto falatório de minha parte e você deve estar se perguntando como vim parar no Brasil. Vim de avião. Fiquei surpreso na aterrissagem quando a aeromoça informou sobre os passageiros que teriam prioridade no desembarque. Na hora em que a funcionária da companhia aérea anunciou “melhor idade”, logo imaginei as crianças com seus sonhos, brinquedos e alegrias tendo a preferência para deixar a aeronave.
Minha origem é uma terra distante. Tão distante que não está no Google, de modo que não estando no Google possivelmente deixa de estar em parte alguma. Fora isso, eu mesmo me achava tão no mundo da Lua ou de qualquer planeta desses que os amigos, querendo me encontrar, já não ligavam para a minha casa. Ligavam direto para a Nasa.
Na minha terra quando bate assim o horário do almoço as pessoas gostam de jantar. E quando bate o horário do jantar as pessoas gostam de almoçar. Acho que é o estômago feito do avesso, só pode ser. Os homens podem escolher engravidar no lugar das mulheres e vi muito casamento acabar porque a mãe se arrependeu de ter deixado a tarefa com o pai. No momento da amamentação, o bebê é bem servido. Dá para escolher entre oferecer leite tradicional, café com açúcar, café com adoçante, leite com chocolate ou cappuccino.
O povo fala pelos cotovelos e sorri de orelha a joelho. Chora pelo umbigo e passa esmalte nas unhas do pé do ouvido. Tem o costume de cultivar um pomar de maçãs do rosto no quintal e, para cuidar da pele, joga umas cebolas fritas com alecrim nas batatas das pernas.
O maior problema é que o coração das pessoas fica do lado direito. Dessa forma, elas não conseguem amar umas às outras. Os relacionamentos surgem por interesse ou convenção. Diante do imbróglio desse negócio, há alguns anos, resolvi estudar o assunto. Com o tempo, criei uma técnica de transplante do órgão para o devido lugar, capaz de fazer o amor brotar sem freios.
O número de interessados em aproveitar o novo método foi grande, o que me permitiu realizar milhares de transplantes. O problema que era um, porém, virou outro. Ao amar quem a gente ama de verdade, surgiu a necessidade de as pessoas serem correspondidas – o que nem sempre ocorreu.
Então, embora eu tenha sido convidado para ser padrinho de diversos casamentos felizes, acabei perseguido em praça
pública por incontáveis amantes solitários e insatisfeitos. Com seus buquês de rosas murchas, alianças devolvidas, cartas ridículas e amores platônicos, correram atrás de mim pedindo o dinheiro de volta.
O Brasil virou meu refúgio seguro. Hoje o reconheço como a minha nova pátria, guardando-o do lado direito do peito. E espero contribuir.
*Eduardo Shor é jornalista e autor do livro Amor do Mundo
Leia mais:
“Enquanto o saneamento básico é um direito negado a metade da população brasileira, inovações mostram as vantagens econômicas, sociais e ambientais de aproveitar efluentes tratados para gerar energia”, por José Eli da Veiga em “De limão a limonada”