Nas trocas culturais, o centro deve mais à periferia do que a periferia ao centro. Esse fenômeno, histórico, hoje é amplificado pela internet e as redes sociais, ao multiplicarem entre as massas um conteúdo que as elites pouco enxergavam
Em Rio Zona Norte, filme de 1957, Nelson Pereira dos Santos ilustra as agruras do artista suburbano. Espírito da Luz, personagem de Grande Otelo, é um sambista que sonha em ter seus sambas cantados por Ângela Maria na Rádio Nacional. Seu contato com o mundo do rádio é um agente interpretado por Jece Valadão, cujo único interesse é espoliar o artista, intermediando a venda dos sambas por valores módicos. O filme expõe o modo como o centro, ou a elite, apropria-se da criação das camadas favorecidas e das periferias, deixando-as à míngua: sambistas vendiam seus sambas, eram obrigados a retirar seus nomes da lista de compositores e recebiam quantias ínfimas por suas criações.
“O centro deve muito mais à periferia do que a periferia ao centro”, diz Renato Meirelles, diretor do Instituto Data Popular, que pesquisa tendências de mercado nas classes C, D e E . “Isso vale para a música, a dança, a culinária e quase todas as manifestações culturais.” Ainda assim, a própria noção de “cultura periférica” é sintomática de uma importante desconexão social. “O conceito de cultura se refere a algo que estabelece comunicações”, diz o produtor cultural Fabio Henriques Giorgio. “Quando se junta ‘periférica’ a isso, a expressão fica estranha. Parece que tem alguma coisa que não está comunicando e por isso é periférico.” Giorgio é autor de Na Boca do Bode, sobre o contexto cultural do início da parceria entre os músicos Arrigo Barnabé e Itamar Assumpção.
A criatividade dos subúrbios e periferias é um fenômeno amplamente conhecido e ilustrado em canções de Noel Rosa, Paulinho da Viola e João Nogueira. Em todas essas ilustrações, figura a condição marginalizada dos artistas. Por outro lado, a indústria cultural incorporava as iniciativas artísticas, nem sempre remunerando ou reconhecendo devidamente seus criadores. Hoje, por um lado, as condições de produção e divulgação para os artistas que produzem no subúrbio são muito mais amplas, mas os problemas que eles podem enfrentar parecem com os de seus predecessores.
“Mas a minha aspiração / Era ter um violão / Para me tornar sambista / Ele então me aconselhou / Sambista não tem valor / Nesta terra de doutor / E seu doutor / O meu pai tinha razão / Vejo um samba ser vendido / E o sambista esquecido / O seu verdadeiro autor / Eu estou necessitado / Mas meu samba encabulado / Eu não vendo não senhor” (14 anos, de Paulinho da Viola, 1968)
Para Meirelles, a percepção de que as periferias estão se tornando cada vez mais criativas em termos artísticos é fruto da internet, que, em suas palavras, “está mudando o jogo”. Aquilo que antes se mantinha escondido em bairros isolados passa a chamar atenção do país inteiro e, ainda mais importante, de outros distritos de periferia. Por isso, vídeos no YouTube de hip-hop, rap, samba e funk chegam a ter 3 milhões de visualizações. Como resultado, os artistas suburbanos brasileiros começam a se tornar referência uns para os outros, diz Meirelles, e criam redes de cooperação e trocas. Um caso bem-sucedido é o do coletivo carioca Enraizados[1], sediado em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, que atua desde 1999 a partir de articulações via internet.
[1]Tocado pelo rapper Dudu de Morro Agudo, o Movimento Enraizados investe em formação, produção e divulgação de artistas da Baixada Fluminense. Um grupo formado por artistas do movimento realizou uma turnê pela França em 2013
Longe dos holofotes das redes de televisão e das gravadoras de música, os saraus literários da periferia constituem um fenômeno em expansão. A poeta Elizandra Souza, que edita na ONG Ação Educativa a Agenda Cultural da Periferia, em São Paulo, observa que, de dez anos para cá, o número de encontros de poetas nos bairros afastados da cidade tem crescido rapidamente. Os maiores chegam a ter entre 50 e 70 poetas que se apresentam a cada noite, exigindo um grande esforço de controle pelos organizadores, sobretudo naqueles bairros em que, para evitar incomodar os vizinhos, é preciso desligar os microfones às 23 horas.
Os mais antigos são o sarau da Cooperifa, ativo desde 2001 no Bar do Zé Batidão, no Jardim São Luís (mais em “Boca a Boca“), e o Sarau do Binho, do Campo Limpo, que chegou a ficar sem atividades em 2012, quando o bar em que se realizava foi fechado pela prefeitura de São Paulo[3]. Depois disso, os saraus se multiplicaram, a maior parte em bares.
[2]Mais detalhes das três iniciativas nos sites agendadaperiferia.org.br, cooperifa.blogspot.com.br e saraudobinho.blogspot.com
Elizandra evoca o conceito de Economia da Cultura [3] para explicar como entende o fenômeno dos saraus literários paulistanos. “Nós já estamos fazendo economia da cultura há muito tempo”, afirma. “Economia é transformar as coisas e os territórios. Um sarau literário transforma um bar em lugar de incentivo à leitura e à arte”, conclui. A poeta desenvolve o argumento, lembrando que um dos grandes problemas das periferias das grandes cidades brasileiras é o alcoolismo.
[3]Integra a Economia Nova, pois seu modo de produção e de circulação de bens e serviços é altamente impactado pelas novas tecnologias, baseia-se em criação e não se amolda aos paradigmas da economia industrial clássica – conforme definição usada pelo MinC
Para ela, o sarau literário é uma forma de combater indiretamente o consumo indiscriminado de álcool, ao fornecer uma alternativa cultural que faz falta nas periferias. O resultado é uma interação cada vez mais estreita entre comunidades e autores. “Começou devagar, mas agora os poetas estão lançando seus livros, ainda que em tiragem baixa. Nos saraus, toda semana tem algum lançamento”, diz Elizandra, que publicou Águas da Cabaça em 2012.
O teatro é uma das formas mais politizadas da cultura na periferia, com grupos que ocupam espaços ociosos e fazem investigações estéticas sobre as condições de vida nas franjas das metrópoles. Na capital paulista, o grupo Pombas Urbanas estabeleceu em 2004 o Centro Cultural Arte em Construção em um galpão localizado em Cidade Tiradentes (Zona Leste). A partir daí, busca recursos públicos para reformar a área de 1.600 metros quadrados. No Jardim São Luís (Zona Sul), a companhia Capulanas investiga a arte de origem africana, como indica o nome, que designa um sarongue moçambicano. O Espaço Clariô, em Taboão da Serra, município da Grande São Paulo, recebe a Mostra de Teatro do Gueto com o objetivo de estabelecer um circuito teatral fora do eixo hegemônico, ou seja, dos conhecidos teatros do centro paulistano.
Manifestações culturais em bairros da periferia dificilmente encontram lugar nas editorias de cultura e guias de fim de semana dos principais jornais do Brasil. Ainda na década de 1980, o antropólogo Hermano Vianna escreveu em sua dissertação de mestrado (O Baile Funk Carioca: Festas e Estilos de Vida Metropolitanos) que as dezenas de bailes funk que ocorriam semanalmente nos subúrbios do Rio de Janeiro reuniam, cada um, milhares de pessoas, embora não merecessem uma linha sequer da imprensa da cidade.
Os bailes descritos por Hermano Vianna remetem à crescente importância do mercado, inclusive para a cultura, nas periferias e subúrbios, que concentram a maior parte da chamada “classe C”, também conhecida como “nova classe média”. Segundo pesquisa do Instituto Data Popular, ela representa 54% da população brasileira, movimentando R$ 1,17 trilhão por ano e 58% do crédito no País.
Um baile com 800 participantes, segundo o antropólogo, era considerado um fracasso. Essa invisibilidade de saraus, bailes e espetáculos teatrais, explica Elizandra, inspirou a criação da Agenda Cultural da Periferia, disponível na internet e na versão impressa – a circulação alcança 10 mil exemplares mensais, distribuídos nos saraus, bibliotecas, escolas e unidades do Sesc.
O teor político das artes na periferia é algo que não pode ser ignorado, mesmo quando o compositor, escritor, grafiteiro, ator, dramaturgo ou cineasta não desenvolve temas especificamente políticos. “Não é preciso falar da periferia para ser político, basta que o artista explicite a maneira como a periferia pensa. Isso já é profundamente político”, diz Meirelles. Elizandra, que se apresenta em saraus como o da Cooperifa, conta que, ao tomar o microfone para se apresentar em público, prefere declamar composições suas que tenham teor explicitamente político, embora também escreva poemas de amor.
“Eu só quero é ser feliz / Andar tranquilamente na favela onde eu nasci. / E poder me orgulhar / E ter a consciência que o pobre tem seu lugar. / Diversão hoje em dia, / não podemos nem pensar, / pois até lá nos bailes / eles vêm nos humilhar. / Ficar lá na praça, / que era tudo tão normal, / Agora virou moda a violência no local. / Pessoas inocentes que não têm nada a ver / Estão perdendo hoje o seu direito de viver’’ (Eu só quero é ser feliz, de Cidinho e Doca, 1995)
“Diante do público dos saraus, que tem tantas pessoas do bairro, acho mais proveitoso dizer as poesias de luta”, afirma. Elizandra também pertence ao Mjiba, um grupo ativista de mulheres negras. O alcance que a cultura das periferias pode ter como forma de manifestação política, pelo simples fato de existir, é visível na política que cerca o funk carioca. A instalação de Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) no Rio de Janeiro veio acompanhada da Resolução 013[4], publicada em 2007, pela qual o governo estadual autorizava a polícia fluminense a proibir a realização desses bailes, considerados eventos de exaltação ao tráfico de drogas. Por extrapolar as funções da polícia, a resolução gerou polêmica e foi revogada em agosto de 2013.
[4] Cabia ao comandante de cada UPP decidir pela autorização de qualquer evento em comunidades pacificadas. Os bailes funk eram o alvo principal, por serem considerados eventos de incitação ao crime e exaltação ao tráfico de drogas. Após abusos, incluindo a proibição de festas de crianças, uma mobilização popular obteve a revogação da resolução
FUNK OSTENTAÇÃO
Meirelles chama atenção para a dialética presente mesmo no subgênero do funk conhecido como “funk ostentação”, que lhe confere indiretamente um teor político. “O jovem da periferia quer usar as mesmas marcas que o playboy usa, mas continua achando o playboy um babaca”, diz. “Além disso, o sentido das marcas como afirmação é muito mais forte na periferia: o distintivo das marcas famosas, que é pequeno nas roupas do rico, nas do pobre é enorme.” Meirelles conclui: “O sentido do termo antropofagia é ainda mais forte na periferia”, porque não é a devoração apenas do que é estrangeiro, mas também do que vem das elites. Recentemente, o Instituto Data Popular divulgou uma pesquisa que revelava grande rejeição das principais marcas pela juventude periférica que consome seus produtos.
“Madame diz que o samba tem cachaça / Mistura de raça, mistura de cor / Madame diz que o samba é democrata / É música barata / Sem nenhum valor / Vamos acabar com o samba / Madame não gosta que ninguém sambe / Vive dizendo que o samba é vexame / Pra que discutir com madame?” (Pra que discutir com madame, de Haroldo Barbosa e Janet de Almeida, 1956)
Para além dos cascudos que a polícia da Primeira República aplicava em quem andasse na rua carregando um violão ou um pandeiro, ou da apropriação nacionalista que o regime Vargas fez das formas musicais nacionais, um marco da aproximação entre a “alta sociedade” e os compositores dos subúrbios, favelas e periferias foi a criação do Centro Popular de Cultura (CPC) pela União Nacional dos Estudantes (UNE) em 1961. Comandado por Oduvaldo Vianna Filho (dramaturgo), Leon Hirszman (cineasta) e Carlos Estevam Martins (sociólogo), o CPC buscou criar uma arte capaz de politizar as artes populares. No anteprojeto de manifesto assinado por Martins, lê-se que “em nosso país e em nossa época, fora da arte política não há arte popular”.
No período da ditadura militar pré-AI-5, editado em dezembro de 1968, o Show Opinião, no Teatro de Arena do Rio de Janeiro, foi outro marco do encontro entre a cultura popular e a juventude de classe média politizada. No palco, Nara Leão (depois substituída por Maria Bethânia) representava essa juventude; Zé Kéti cantava em nome do “morro”, ou seja, das favelas; e João do Vale era o representante dos retirantes do Nordeste. O diretor era Augusto Boal. Em memória dos 50 anos do golpe de 1964, o Instituto Moreira Salles realizou em fevereiro uma remontagem do espetáculo no Rio, com a cantora Joyce e o grupo Casuarina.
DE FORA PRA DENTRO
O movimento inverso, de iniciativas culturais que partiam de periferias rumo ao centro, começou a tomar corpo sobretudo no fim da década de 1970 e início da década de 1980 com a distensão política e a redemocratização, a partir da volta das eleições diretas para governador em 1982 e do sufrágio de Tancredo Neves pelo Colégio Eleitoral em janeiro de 1985. Fabio Giorgio cita a importância do Movimento Popular de Artes (MPA)[5], criado em 1978 no bairro paulistano de São Miguel Paulista, por artistas como Edvaldo Santana, Raberuan e Sacha Arcanjo. Além de envolver poesia e música, o MPA reivindica a implantação de equipamentos culturais no bairro, um problema que continua a inibir o consumo e a produção de cultura nas periferias.
[5]O MPA foi inspirado no trabalho dos antropólogos Antonio Arantes e Tadeu Giglio sobre a recuperação de sítios históricos na Zona Leste paulistana. A Capela Histórica de São Miguel foi o embrião do movimento, que em 1985 gravou uma coletânea de artistas com o apoio da Secretaria Municipal da Cultura, então comandada pelo ator e diretor Gianfrancesco Guarnieri
Nos anos 1990, temos o advento do hip-hop, que gerou artistas como os do grupo Racionais MC’s, de São Paulo. Para Elizandra, o hip-hop é o pai dos saraus literários, porque os rappers passaram a se aproximar da poesia e, mais adiante, da prosa. Escritores como Paulo Lins, do Rio, e Ferréz, de São Paulo, adquiriram fama internacional. Mas a literatura periférica possui longa tradição na história brasileira.
Uma das pioneiras em São Paulo, ressalta Elizandra, é Carolina Maria de Jesus, que vivia na favela do Canindé, na zona central, e publicou Quarto de Despejo em 1960. O livro vendeu 30 mil exemplares na primeira edição e foi traduzido em 29 idiomas, numa época em que não se podia contar com o impulso da internet.
Leia entrevista com o produtor Daniel Ganjaman, o homem por trás do sucesso de Criolo e Emicida[:en]Nas trocas culturais, o centro deve mais à periferia do que a periferia ao centro. Esse fenômeno, histórico, hoje é amplificado pela internet e as redes sociais, ao multiplicarem entre as massas um conteúdo que as elites pouco enxergavam
Em Rio Zona Norte, filme de 1957, Nelson Pereira dos Santos ilustra as agruras do artista suburbano. Espírito da Luz, personagem de Grande Otelo, é um sambista que sonha em ter seus sambas cantados por Ângela Maria na Rádio Nacional. Seu contato com o mundo do rádio é um agente interpretado por Jece Valadão, cujo único interesse é espoliar o artista, intermediando a venda dos sambas por valores módicos. O filme expõe o modo como o centro, ou a elite, apropria-se da criação das camadas favorecidas e das periferias, deixando-as à míngua: sambistas vendiam seus sambas, eram obrigados a retirar seus nomes da lista de compositores e recebiam quantias ínfimas por suas criações.
“O centro deve muito mais à periferia do que a periferia ao centro”, diz Renato Meirelles, diretor do Instituto Data Popular, que pesquisa tendências de mercado nas classes C, D e E . “Isso vale para a música, a dança, a culinária e quase todas as manifestações culturais.” Ainda assim, a própria noção de “cultura periférica” é sintomática de uma importante desconexão social. “O conceito de cultura se refere a algo que estabelece comunicações”, diz o produtor cultural Fabio Henriques Giorgio. “Quando se junta ‘periférica’ a isso, a expressão fica estranha. Parece que tem alguma coisa que não está comunicando e por isso é periférico.” Giorgio é autor de Na Boca do Bode, sobre o contexto cultural do início da parceria entre os músicos Arrigo Barnabé e Itamar Assumpção.
A criatividade dos subúrbios e periferias é um fenômeno amplamente conhecido e ilustrado em canções de Noel Rosa, Paulinho da Viola e João Nogueira. Em todas essas ilustrações, figura a condição marginalizada dos artistas. Por outro lado, a indústria cultural incorporava as iniciativas artísticas, nem sempre remunerando ou reconhecendo devidamente seus criadores. Hoje, por um lado, as condições de produção e divulgação para os artistas que produzem no subúrbio são muito mais amplas, mas os problemas que eles podem enfrentar parecem com os de seus predecessores.
“Mas a minha aspiração / Era ter um violão / Para me tornar sambista / Ele então me aconselhou / Sambista não tem valor / Nesta terra de doutor / E seu doutor / O meu pai tinha razão / Vejo um samba ser vendido / E o sambista esquecido / O seu verdadeiro autor / Eu estou necessitado / Mas meu samba encabulado / Eu não vendo não senhor” (14 anos, de Paulinho da Viola, 1968)
Para Meirelles, a percepção de que as periferias estão se tornando cada vez mais criativas em termos artísticos é fruto da internet, que, em suas palavras, “está mudando o jogo”. Aquilo que antes se mantinha escondido em bairros isolados passa a chamar atenção do país inteiro e, ainda mais importante, de outros distritos de periferia. Por isso, vídeos no YouTube de hip-hop, rap, samba e funk chegam a ter 3 milhões de visualizações. Como resultado, os artistas suburbanos brasileiros começam a se tornar referência uns para os outros, diz Meirelles, e criam redes de cooperação e trocas. Um caso bem-sucedido é o do coletivo carioca Enraizados[1], sediado em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, que atua desde 1999 a partir de articulações via internet.
[1]Tocado pelo rapper Dudu de Morro Agudo, o Movimento Enraizados investe em formação, produção e divulgação de artistas da Baixada Fluminense. Um grupo formado por artistas do movimento realizou uma turnê pela França em 2013
Longe dos holofotes das redes de televisão e das gravadoras de música, os saraus literários da periferia constituem um fenômeno em expansão. A poeta Elizandra Souza, que edita na ONG Ação Educativa a Agenda Cultural da Periferia, em São Paulo, observa que, de dez anos para cá, o número de encontros de poetas nos bairros afastados da cidade tem crescido rapidamente. Os maiores chegam a ter entre 50 e 70 poetas que se apresentam a cada noite, exigindo um grande esforço de controle pelos organizadores, sobretudo naqueles bairros em que, para evitar incomodar os vizinhos, é preciso desligar os microfones às 23 horas.
Os mais antigos são o sarau da Cooperifa, ativo desde 2001 no Bar do Zé Batidão, no Jardim São Luís (mais em “Boca a Boca“), e o Sarau do Binho, do Campo Limpo, que chegou a ficar sem atividades em 2012, quando o bar em que se realizava foi fechado pela prefeitura de São Paulo[3]. Depois disso, os saraus se multiplicaram, a maior parte em bares.
[2]Mais detalhes das três iniciativas nos sites agendadaperiferia.org.br, cooperifa.blogspot.com.br e saraudobinho.blogspot.com
Elizandra evoca o conceito de Economia da Cultura [3] para explicar como entende o fenômeno dos saraus literários paulistanos. “Nós já estamos fazendo economia da cultura há muito tempo”, afirma. “Economia é transformar as coisas e os territórios. Um sarau literário transforma um bar em lugar de incentivo à leitura e à arte”, conclui. A poeta desenvolve o argumento, lembrando que um dos grandes problemas das periferias das grandes cidades brasileiras é o alcoolismo.
[3]Integra a Economia Nova, pois seu modo de produção e de circulação de bens e serviços é altamente impactado pelas novas tecnologias, baseia-se em criação e não se amolda aos paradigmas da economia industrial clássica – conforme definição usada pelo MinC
Para ela, o sarau literário é uma forma de combater indiretamente o consumo indiscriminado de álcool, ao fornecer uma alternativa cultural que faz falta nas periferias. O resultado é uma interação cada vez mais estreita entre comunidades e autores. “Começou devagar, mas agora os poetas estão lançando seus livros, ainda que em tiragem baixa. Nos saraus, toda semana tem algum lançamento”, diz Elizandra, que publicou Águas da Cabaça em 2012.
O teatro é uma das formas mais politizadas da cultura na periferia, com grupos que ocupam espaços ociosos e fazem investigações estéticas sobre as condições de vida nas franjas das metrópoles. Na capital paulista, o grupo Pombas Urbanas estabeleceu em 2004 o Centro Cultural Arte em Construção em um galpão localizado em Cidade Tiradentes (Zona Leste). A partir daí, busca recursos públicos para reformar a área de 1.600 metros quadrados. No Jardim São Luís (Zona Sul), a companhia Capulanas investiga a arte de origem africana, como indica o nome, que designa um sarongue moçambicano. O Espaço Clariô, em Taboão da Serra, município da Grande São Paulo, recebe a Mostra de Teatro do Gueto com o objetivo de estabelecer um circuito teatral fora do eixo hegemônico, ou seja, dos conhecidos teatros do centro paulistano.
Manifestações culturais em bairros da periferia dificilmente encontram lugar nas editorias de cultura e guias de fim de semana dos principais jornais do Brasil. Ainda na década de 1980, o antropólogo Hermano Vianna escreveu em sua dissertação de mestrado (O Baile Funk Carioca: Festas e Estilos de Vida Metropolitanos) que as dezenas de bailes funk que ocorriam semanalmente nos subúrbios do Rio de Janeiro reuniam, cada um, milhares de pessoas, embora não merecessem uma linha sequer da imprensa da cidade.
Os bailes descritos por Hermano Vianna remetem à crescente importância do mercado, inclusive para a cultura, nas periferias e subúrbios, que concentram a maior parte da chamada “classe C”, também conhecida como “nova classe média”. Segundo pesquisa do Instituto Data Popular, ela representa 54% da população brasileira, movimentando R$ 1,17 trilhão por ano e 58% do crédito no País.
Um baile com 800 participantes, segundo o antropólogo, era considerado um fracasso. Essa invisibilidade de saraus, bailes e espetáculos teatrais, explica Elizandra, inspirou a criação da Agenda Cultural da Periferia, disponível na internet e na versão impressa – a circulação alcança 10 mil exemplares mensais, distribuídos nos saraus, bibliotecas, escolas e unidades do Sesc.
O teor político das artes na periferia é algo que não pode ser ignorado, mesmo quando o compositor, escritor, grafiteiro, ator, dramaturgo ou cineasta não desenvolve temas especificamente políticos. “Não é preciso falar da periferia para ser político, basta que o artista explicite a maneira como a periferia pensa. Isso já é profundamente político”, diz Meirelles. Elizandra, que se apresenta em saraus como o da Cooperifa, conta que, ao tomar o microfone para se apresentar em público, prefere declamar composições suas que tenham teor explicitamente político, embora também escreva poemas de amor.
“Eu só quero é ser feliz / Andar tranquilamente na favela onde eu nasci. / E poder me orgulhar / E ter a consciência que o pobre tem seu lugar. / Diversão hoje em dia, / não podemos nem pensar, / pois até lá nos bailes / eles vêm nos humilhar. / Ficar lá na praça, / que era tudo tão normal, / Agora virou moda a violência no local. / Pessoas inocentes que não têm nada a ver / Estão perdendo hoje o seu direito de viver’’ (Eu só quero é ser feliz, de Cidinho e Doca, 1995)
“Diante do público dos saraus, que tem tantas pessoas do bairro, acho mais proveitoso dizer as poesias de luta”, afirma. Elizandra também pertence ao Mjiba, um grupo ativista de mulheres negras. O alcance que a cultura das periferias pode ter como forma de manifestação política, pelo simples fato de existir, é visível na política que cerca o funk carioca. A instalação de Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) no Rio de Janeiro veio acompanhada da Resolução 013[4], publicada em 2007, pela qual o governo estadual autorizava a polícia fluminense a proibir a realização desses bailes, considerados eventos de exaltação ao tráfico de drogas. Por extrapolar as funções da polícia, a resolução gerou polêmica e foi revogada em agosto de 2013.
[4] Cabia ao comandante de cada UPP decidir pela autorização de qualquer evento em comunidades pacificadas. Os bailes funk eram o alvo principal, por serem considerados eventos de incitação ao crime e exaltação ao tráfico de drogas. Após abusos, incluindo a proibição de festas de crianças, uma mobilização popular obteve a revogação da resolução
FUNK OSTENTAÇÃO
Meirelles chama atenção para a dialética presente mesmo no subgênero do funk conhecido como “funk ostentação”, que lhe confere indiretamente um teor político. “O jovem da periferia quer usar as mesmas marcas que o playboy usa, mas continua achando o playboy um babaca”, diz. “Além disso, o sentido das marcas como afirmação é muito mais forte na periferia: o distintivo das marcas famosas, que é pequeno nas roupas do rico, nas do pobre é enorme.” Meirelles conclui: “O sentido do termo antropofagia é ainda mais forte na periferia”, porque não é a devoração apenas do que é estrangeiro, mas também do que vem das elites. Recentemente, o Instituto Data Popular divulgou uma pesquisa que revelava grande rejeição das principais marcas pela juventude periférica que consome seus produtos.
“Madame diz que o samba tem cachaça / Mistura de raça, mistura de cor / Madame diz que o samba é democrata / É música barata / Sem nenhum valor / Vamos acabar com o samba / Madame não gosta que ninguém sambe / Vive dizendo que o samba é vexame / Pra que discutir com madame?” (Pra que discutir com madame, de Haroldo Barbosa e Janet de Almeida, 1956)
Para além dos cascudos que a polícia da Primeira República aplicava em quem andasse na rua carregando um violão ou um pandeiro, ou da apropriação nacionalista que o regime Vargas fez das formas musicais nacionais, um marco da aproximação entre a “alta sociedade” e os compositores dos subúrbios, favelas e periferias foi a criação do Centro Popular de Cultura (CPC) pela União Nacional dos Estudantes (UNE) em 1961. Comandado por Oduvaldo Vianna Filho (dramaturgo), Leon Hirszman (cineasta) e Carlos Estevam Martins (sociólogo), o CPC buscou criar uma arte capaz de politizar as artes populares. No anteprojeto de manifesto assinado por Martins, lê-se que “em nosso país e em nossa época, fora da arte política não há arte popular”.
No período da ditadura militar pré-AI-5, editado em dezembro de 1968, o Show Opinião, no Teatro de Arena do Rio de Janeiro, foi outro marco do encontro entre a cultura popular e a juventude de classe média politizada. No palco, Nara Leão (depois substituída por Maria Bethânia) representava essa juventude; Zé Kéti cantava em nome do “morro”, ou seja, das favelas; e João do Vale era o representante dos retirantes do Nordeste. O diretor era Augusto Boal. Em memória dos 50 anos do golpe de 1964, o Instituto Moreira Salles realizou em fevereiro uma remontagem do espetáculo no Rio, com a cantora Joyce e o grupo Casuarina.
DE FORA PRA DENTRO
O movimento inverso, de iniciativas culturais que partiam de periferias rumo ao centro, começou a tomar corpo sobretudo no fim da década de 1970 e início da década de 1980 com a distensão política e a redemocratização, a partir da volta das eleições diretas para governador em 1982 e do sufrágio de Tancredo Neves pelo Colégio Eleitoral em janeiro de 1985. Fabio Giorgio cita a importância do Movimento Popular de Artes (MPA)[5], criado em 1978 no bairro paulistano de São Miguel Paulista, por artistas como Edvaldo Santana, Raberuan e Sacha Arcanjo. Além de envolver poesia e música, o MPA reivindica a implantação de equipamentos culturais no bairro, um problema que continua a inibir o consumo e a produção de cultura nas periferias.
[5]O MPA foi inspirado no trabalho dos antropólogos Antonio Arantes e Tadeu Giglio sobre a recuperação de sítios históricos na Zona Leste paulistana. A Capela Histórica de São Miguel foi o embrião do movimento, que em 1985 gravou uma coletânea de artistas com o apoio da Secretaria Municipal da Cultura, então comandada pelo ator e diretor Gianfrancesco Guarnieri
Nos anos 1990, temos o advento do hip-hop, que gerou artistas como os do grupo Racionais MC’s, de São Paulo. Para Elizandra, o hip-hop é o pai dos saraus literários, porque os rappers passaram a se aproximar da poesia e, mais adiante, da prosa. Escritores como Paulo Lins, do Rio, e Ferréz, de São Paulo, adquiriram fama internacional. Mas a literatura periférica possui longa tradição na história brasileira.
Uma das pioneiras em São Paulo, ressalta Elizandra, é Carolina Maria de Jesus, que vivia na favela do Canindé, na zona central, e publicou Quarto de Despejo em 1960. O livro vendeu 30 mil exemplares na primeira edição e foi traduzido em 29 idiomas, numa época em que não se podia contar com o impulso da internet.
Leia entrevista com o produtor Daniel Ganjaman, o homem por trás do sucesso de Criolo e Emicida