Envolvimento e protagonismo do aluno, visão integradora e transdisciplinar, diversidade. Para exercer seu papel transformador, a educação precisa alcançar essas novas fronteiras
Celebrado por atravessar sobre uma corda espaços vãos, como aquele que havia entre as torres gêmeas do World Trade Center, em Nova York, o artista francês Philippe Petit veio ao Brasil não faz muito tempo. Em viagem à Amazônia, parado sobre uma ponte, retratava na folha de um caderno as palafitas descobertas com as águas baixas do Rio Negro, quando um jornalista do Estadão perguntou: “Por que desenha, se é mais fácil tirar fotos?” Ele respondeu: “Porque, se eu tirar fotos, não vejo. O trabalho com o desenho faz com que a paisagem se interiorize”. O jornalista concluiu que era uma maneira de trazer o mundo exterior para o mundo interior. [Acesse a reportagem]
O conhecimento e a sua transmissão, por meio do ensino convencional, normalmente se dão como na fotografia: o sujeito olha e estuda o objeto. É como se estivesse fora da paisagem clicada. Mas há novas propostas de educação em que o aluno, o observador, faz parte daquilo que observa. A realidade passa a incluir o sujeito. Isso muda radicalmente a perspectiva, e essa mudança é decisiva diante dos desafios do século XXI, quando a humanidade, vivendo a era dos limites, terá de aprender formas diferentes de organizar e gerir seus recursos físicos, humanos, naturais e econômicos.
A educação, como praticada hoje nas suas formas convencionais, não é suficiente para tratar da complexidade dos problemas, segundo estudiosos ouvidos nesta edição de Página22.
“São problemas que emergem e se exacerbam tanto dentro como fora do mundo acadêmico”, diz o professor de Filosofia da Universidade Federal de Minas Gerais Carlos Antônio Leite Brandão, na obra Transdisciplinaridade e os Desafios Contemporâneos, da qual é um dos autores. Tais como a transposição das águas de um rio ou sua utilização para satisfazer a crescente demanda de energia, a violência, a urbanização, a expansão das metrópoles, a codificação do genoma, a globalização cultural e econômica, a crise ambiental e a multiplicação e o confronto de informações, abordagem e tecnologias – exemplifica Brandão [Acesse a Carta da Transdisciplinaridade e leia mais em www.cetrans.com.br, onde estão reunidos e traduzidos documentos oficiais relativos ao tema. Entre eles, destaca-se material do matemático Ubiratan D’Ambrosio, primeiro estudioso do assunto no Brasil].
Questões que são sofisticadas demais para serem tratadas apenas sob uma visão linear. Elas pedem também o envolvimento do sujeito – dele consigo mesmo (conhecendo a si próprio), dele com outro sujeito (as pessoas com quem se relaciona) e dele com o ambiente que o cerca. Mais que isso, requer um protagonismo, na medida em que o aluno deixa de ser mero observador e torna-se capaz de interferir no processo, explica Maria de Mello, membro do Centro Internacional de Pesquisas e Estudos Transdisciplinares (Ciret, na sigla em francês) e do Centro de Educação Transdisciplinar (Cetrans).
Maria é também consultora e orientadora para a proposta transdisciplinar que permeia uma nova disciplina da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (Eaesp-FGV): a Formação Integrada para Sustentabilidade (FIS), que será oferecida em caráter opcional e ainda piloto a alunos do 5º ao 8º semestre da graduação (mais em reportagem à pág. 22).
Muito mais que pelo conteúdo, a inovação proposta por essa disciplina virá pelo método, sob uma visão integradora e transdisciplinar. Um dos pilares das transdisciplinaridade é a compreensão de diferentes níveis de realidade, como o físico, o racional ou mental, o emocional, o intuitivo e até o espiritual (leia quadros abaixo e à pág. 21) [Um outro pilar é a complexidade, assunto abordado em entrevista de Humberto Mariotti, diretor de pesquisa e publicações da São Paulo Business School]. Os alunos da FIS, por exemplo, vão a campo – provavelmente na Amazônia – lidar com um desafio prático, que é o de implantar um empreendimento no meio da floresta, em conformidade com o desenvolvimento sustentável, que precisa ser viável economicamente ao mesmo tempo que leva em conta aspectos humanos, sociais, culturais e de conservação ambiental.
Imagine a construção de uma hidrelétrica e uma das primeiras providências a ser tomadas é a remoção da população que vive na área do futuro reservatório. Pelo nível de realidade racional, escolhe-se outro local, constroem-se as casas e transferem-se as pessoas para lá. Mas há outros níveis que precisam ser levados em consideração. No nível emocional, aquelas pessoas têm vínculos afetivos entre si, dentro da teia social que lá desenvolveram. Têm vínculos com o lugar onde vivem. Têm história, hábitos, tradições, rituais. Povos indígenas, por exemplo, possuem vínculos espirituais com a terra, com o rio, com a floresta – bagagem que não se transporta. E não se pode assumir que um nível seja mais importante que outro e deva preponderar. O desafio é encontrar o equilíbrio, assim como Philippe Petit sobre a corda.
Como diz Brandão, uma das razões para a transdisciplinaridade é o reconhecimento de que as universidades precisam interagir e se contaminar com o que está fora delas, para se atualizar e tratar de maneira mais apropriada seus próprios objetos – ainda mais depois que perderam a hegemonia na produção do conhecimento, desenvolvido em grande parte fora de seus muros, como no caso das artes e das tecnologias.
A parte pelo todo
Extrapolando-se a proposta de uma disciplina como a FIS para as questões de desenvolvimento no Brasil e no mundo, a pergunta é: como a educação pode contribuir para a tão desejada transformação da sociedade? “Uma educação para a sustentabilidade é uma educação transformadora”, afirma Érica Gallucci Miranda de Toledo, pesquisadora do Centro de Estudos em Sustentabilidade da Eaesp-FGV (GVces).
Mas, com métodos convencionais para novíssimas demandas, estruturas hierarquizadas e elitistas, e visões lineares e hiperespecializadas para situações que requerem uma compreensão sistêmica do todo, a educação não será capaz de transformar, e sim de perpetuar as mazelas – no caso do Brasil, especialmente caracterizadas por um sistema econômico ainda baseado na dilapidação do recursos naturais e na exclusão social.
Somente uma força mobilizadora será capaz de romper essa inércia. Os alunos de hoje, do ensino infantil ao superior, representam as gerações que herdarão as benesses e as mazelas elevadas à quinta potência. É de seu interesse, portanto, que se envolvam no processo de transformação e sejam os protagonistas. A reportagem à página 30, por exemplo, descreve projetos educacionais inovadores que colocam as crianças como atores principais, para que possam desenvolver seu protagonismo.
Outra boa notícia é que as novas gerações têm se mostrado movidas a desafios, agindo por desejo próprio e sabendo ser críticas a regras indevidas impostas hierarquicamente. Com alta capacidade de relacionar e acelerados pelos estímulos que chegam de todo lado pelos canais de comunicação e pelas ferramentas da tecnologia, esses jovens buscam o aprendizado mais pela prática do que pelos livros-texto. (leia sobre a Geração Y à pág. 46)
Levar em conta esse comportamento, esse jeito de ser, tornase fundamental para um processo eficaz de educação. Não é à toa que o projeto da FIS propõe aos alunos justamente um desafio prático, que pretende fazer com que se sintam parte da realidade a ser estudada e que compreendam a complexidade das forças em jogo naquela determinada situação.
Pedro Roberto Jacobi, professor titular da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Ciência Ambiental (Procam), da USP, percebe um esgotamento nas formas tradicionais de ensino. Vê o desinteresse dos alunos pela leitura e a dificuldade de concentração em um determinado tema. Sente na pele que é preciso uma renovação no método para estimular os alunos, acomodados com a facilidade mecânica do copy and paste. “Não tem mais guru”, diz ele. Muita coisa, de certa maneira, já está disponível a quem tenha acesso ao conhecimento. “O que precisa agora é o conhecimento entrar nos corações e mentes dos alunos.” Tal qual a paisagem das palafitas interiorizada por meio do desenho.
Essa percepção de Jacobi em sala de aula é descrita, com outras palavras, por Brandão, da UFMG. Ele cita o físico norte-americano Thomas Kuhn, para quem foram a aproximação e a reorganização do conhecimento, e não o acúmulo dele, que levaram ao desenvolvimento da ciência, da cultura e da sociedade. Segundo Kuhn, essa aproximação e essa reorganização se devem menos às descobertas e invenções do que a um novo olhar depositado sobre as mesmas coisas e os mesmos conteúdos já existentes. Para Brandão, esse olhar que atravessa os conhecimentos, impulsionado por algo que está além e aquém das disciplinas, é um sintoma de transdisciplinaridade.
Um olhar diferente que, pela inovação que apresenta e o desafio que provoca, teria potencial de envolver e estimular os alunos.
Brick in the wall
Para começar, esse olhar disciplinar, voltado para a compreensão dos diversos níveis de realidade, se faz necessário para romper os muros que costumam separar as escolas do seu entorno, especialmente as particulares. “Será que as escolas estão em contato com a comunidade à sua volta? Se houvesse mais porosidade, a educação para a sustentabilidade aconteceria naturalmente, pois esta é, sobretudo, transversal”, diz Reinaldo Bulgarelli, especialista em temas da diversidade e professor da Eaesp na área de responsabilidade social corporativa. Ele compara muitas escolas particulares a shopping centers, que fazem o aluno esquecer o lado de fora e acabam por formar ambientes segregacionistas.
Ainda que políticas do governo busquem criar oportunidades de inclusão por meio do sistema de cotas e do Programa Universidade para Todos (ProUni), o ensino de qualidade no Brasil, como se sabe, é acessado principalmente pelas classes favorecidas, perpetuando a imobilidade social.
“Quem está discutindo sustentabilidade é uma elite, mas ser sustentável é ser inclusivo”, afirma. A seu ver, o desrespeito à diversidade ainda é tão grande na sociedade brasileira que chega a ser sentido em turmas mais homogêneas. Bulgarelli descreve as queixas das alunas em grupos de discussão dos quais participa. “Até as brancas e ricas sofrem discriminação. Elas dizem: ‘Eu estudo tanto quanto meu colega, mas no mercado de trabalho é ele que vai ser meu chefe. Se é assim, prefiro não lutar por um cargo de chefia, vou tentar equilibrar o trabalho com a satisfação na vida pessoal’.” Por isso, segundo Bulgarelli, tem uma turma imensa de mulheres montando o próprio negócio ou optando por uma vida fora do País.
Já nas escolas públicas o problema é a porosidade à violência. “Diria até que em alguns casos há conivência, pois não se interpõe um filtro, não se executa um projeto para trabalhar a questão”, diz. E descreve situações que parecem banais, mas podem marcar profundamente as crianças e causar ressentimento ou revolta. Em geral, os professores, que se colocam como detentores do conhecimento, são brancos, e os alunos, negros. Nas creches, as crianças brancas costumam ser são penteadas pelas professoras brancas, que não têm o know-how de pentear o cabelo das crianças negras. Estas acabam penteadas pela merendeira, pela copeira, que estão abaixo na hierarquia de poder nas escolas. Assim, diz Bulgarelli, o momento de ser arrumado, de ser cuidado, do prazer desse contato físico e emocional, vem com uma carga de segregação.
Será um tipo sutil de violência, ainda que não intencional? Que efeitos isso pode ter nos corações e mentes dessas crianças e como isso vai afetar a sua formação na escola e na sociedade?
“A ciência não deu conta do sofrimento do homem”, diz Maria de Mello, do Ciret. O ensino, enquanto mero transmissor do conhecimento científico, não dará conta das demandas e das carências da humanidade.
Da Vinci a Piaget
“A atitude transdisciplinar não é nova. Ela está, por exemplo, no Renascimento e no Romantismo, em Leonardo da Vinci ou Goethe”, diz Brandão, da UFMG. Já o termo “transdisciplinaridade” é recente e surge com Jean Piaget em um seminário realizado em 1970, em Nice, na França.
Brandão explica que, enquanto para Jean Piaget o objeto da transdisciplinaridade está na interação entre as ciências disciplinares formais, para os autores Eric Jantsch e Boaventura de Sousa Santos, “o foco está mais na interação destas ciências com o humano e o social, e na abertura do conhecimento disciplinar para os não disciplinares, muitos do quais abrigados no campo da arte e da cultura – e que a Academia só consegue absorver parcialmente e com muito desconforto, em uma relação problemática”, diz.
A transdisciplinaridade surge como resposta ao avanço e ao aprofundamento do conhecimento nos vários nichos em que foi fragmentado, sobretudo a partir do século XVIII. “A excessiva especialização do saber fez com que se perdesse o próprio objeto – caso da Medicina, em que os vários recortes do corpo fizeram perder de vista a noção do corpo como um organismo. É por essa via que a Medicina Oriental encontrou seu lugar no Ocidente”, diz Brandão.
Fernando Bignardi, coordenador do Centro de Estudos do Envelhecimento, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), mostra como a transdisciplinaridade pode se aplicar à Medicina. Ele explica que a principal causa de perdas funcionais na velhice, decorrentes das doenças crônicas, é o estilo de vida. Este, por sua vez, resulta de fatores multidimensionais, como escolhas alimentares, hábitos de sono, ritmo de vida, crenças, postura e atividade física. Por isso, em vez do que chama de modelo mecânico newtoniano (referente ao determinismo de Isaac Newton), Bignardi considera as múltiplas dimensões no ser humano: física, metabólica, vital, mental e supramental (fundamentada na mecânica quântica) – uma abordagem, segundo ele, com resultados muito satisfatórios nos pacientes.
Inter, multi, transdisciplinar. Qual a diferença?
Para explicar a diferença entre as visões disciplinar, multidisciplinar, interdisciplinar e transdisciplinar, o físico romeno Basarab Nicolescu, um dos principais estudiosos do tema, lança mão de um exemplo: a Igreja da Sagrada Família, construída por Antonio Gaudí em Barcelona. Enquanto objeto de estudo disciplinar, esse templo remete à Arquitetura, uma disciplina que tem sua própria metodologia. Mas ele também pode receber olhares cruzados partindo de diferentes disciplinas, como a História da Arte, a História das Religiões, a Física (sobre a resistência dos materiais), a Química, a Psicanálise (sobre a personalidade de Gaudí). Essa já é uma visão multidisciplinar.
Outra possibilidade é transferir métodos de uma disciplina para outra, ou seja: com a finalidade de terminar o templo que Gaudí deixou inacabado, podemos nos servir de seus projetos e desenhos para nos inspirar, ou utilizar a eletrônica e a realidade virtual, e transferir o método da Informática para a Arquitetura. Trata-se da visão interdisciplinar.
“Podemos, contudo, ter um olhar radicalmente diferente”, diz Nicolescu. “Como posso eu mesmo, pessoa privada, visitar esse templo? Em que esse objeto concerne a mim, à minha vida, à nossa vida de hoje, ao sentido deste mundo onde eu vivo?”, refere-se aqui Nicolescu à transdisciplinaridade, mencionando uma viagem de ida e volta entre o mundo interior e o objeto exterior. “Talvez eu me diga, é isso o que Gaudí queria exprimir (ao construir a igreja): oferecer a nós sua própria representação do mistério da realidade, irredutível a qualquer discurso.”
Nicolescu chama essas visões de quatro flechas do arco do conhecimento, em que nenhuma substitui a outra. “Não são olhares excludentes. A transdisciplinaridade não veio tomar tomar o lugar ocupado pelo competente exercício da disciplinaridade, da multi e da inter. Essas quatro flechas não apenas podem como devem continuar coexistindo”, diz Maria de Mello, do Ciret.[:en]Envolvimento e protagonismo do aluno, visão integradora e transdisciplinar, diversidade. Para exercer seu papel transformador, a educação precisa alcançar essas novas fronteiras
Celebrado por atravessar sobre uma corda espaços vãos, como aquele que havia entre as torres gêmeas do World Trade Center, em Nova York, o artista francês Philippe Petit veio ao Brasil não faz muito tempo. Em viagem à Amazônia, parado sobre uma ponte, retratava na folha de um caderno as palafitas descobertas com as águas baixas do Rio Negro, quando um jornalista do Estadão perguntou: “Por que desenha, se é mais fácil tirar fotos?” Ele respondeu: “Porque, se eu tirar fotos, não vejo. O trabalho com o desenho faz com que a paisagem se interiorize”. O jornalista concluiu que era uma maneira de trazer o mundo exterior para o mundo interior. [Acesse a reportagem]
O conhecimento e a sua transmissão, por meio do ensino convencional, normalmente se dão como na fotografia: o sujeito olha e estuda o objeto. É como se estivesse fora da paisagem clicada. Mas há novas propostas de educação em que o aluno, o observador, faz parte daquilo que observa. A realidade passa a incluir o sujeito. Isso muda radicalmente a perspectiva, e essa mudança é decisiva diante dos desafios do século XXI, quando a humanidade, vivendo a era dos limites, terá de aprender formas diferentes de organizar e gerir seus recursos físicos, humanos, naturais e econômicos.
A educação, como praticada hoje nas suas formas convencionais, não é suficiente para tratar da complexidade dos problemas, segundo estudiosos ouvidos nesta edição de Página22.
“São problemas que emergem e se exacerbam tanto dentro como fora do mundo acadêmico”, diz o professor de Filosofia da Universidade Federal de Minas Gerais Carlos Antônio Leite Brandão, na obra Transdisciplinaridade e os Desafios Contemporâneos, da qual é um dos autores. Tais como a transposição das águas de um rio ou sua utilização para satisfazer a crescente demanda de energia, a violência, a urbanização, a expansão das metrópoles, a codificação do genoma, a globalização cultural e econômica, a crise ambiental e a multiplicação e o confronto de informações, abordagem e tecnologias – exemplifica Brandão [Acesse a Carta da Transdisciplinaridade e leia mais em www.cetrans.com.br, onde estão reunidos e traduzidos documentos oficiais relativos ao tema. Entre eles, destaca-se material do matemático Ubiratan D’Ambrosio, primeiro estudioso do assunto no Brasil].
Questões que são sofisticadas demais para serem tratadas apenas sob uma visão linear. Elas pedem também o envolvimento do sujeito – dele consigo mesmo (conhecendo a si próprio), dele com outro sujeito (as pessoas com quem se relaciona) e dele com o ambiente que o cerca. Mais que isso, requer um protagonismo, na medida em que o aluno deixa de ser mero observador e torna-se capaz de interferir no processo, explica Maria de Mello, membro do Centro Internacional de Pesquisas e Estudos Transdisciplinares (Ciret, na sigla em francês) e do Centro de Educação Transdisciplinar (Cetrans).
Maria é também consultora e orientadora para a proposta transdisciplinar que permeia uma nova disciplina da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (Eaesp-FGV): a Formação Integrada para Sustentabilidade (FIS), que será oferecida em caráter opcional e ainda piloto a alunos do 5º ao 8º semestre da graduação (mais em reportagem à pág. 22).
Muito mais que pelo conteúdo, a inovação proposta por essa disciplina virá pelo método, sob uma visão integradora e transdisciplinar. Um dos pilares das transdisciplinaridade é a compreensão de diferentes níveis de realidade, como o físico, o racional ou mental, o emocional, o intuitivo e até o espiritual (leia quadros abaixo e à pág. 21) [Um outro pilar é a complexidade, assunto abordado em entrevista de Humberto Mariotti, diretor de pesquisa e publicações da São Paulo Business School]. Os alunos da FIS, por exemplo, vão a campo – provavelmente na Amazônia – lidar com um desafio prático, que é o de implantar um empreendimento no meio da floresta, em conformidade com o desenvolvimento sustentável, que precisa ser viável economicamente ao mesmo tempo que leva em conta aspectos humanos, sociais, culturais e de conservação ambiental.
Imagine a construção de uma hidrelétrica e uma das primeiras providências a ser tomadas é a remoção da população que vive na área do futuro reservatório. Pelo nível de realidade racional, escolhe-se outro local, constroem-se as casas e transferem-se as pessoas para lá. Mas há outros níveis que precisam ser levados em consideração. No nível emocional, aquelas pessoas têm vínculos afetivos entre si, dentro da teia social que lá desenvolveram. Têm vínculos com o lugar onde vivem. Têm história, hábitos, tradições, rituais. Povos indígenas, por exemplo, possuem vínculos espirituais com a terra, com o rio, com a floresta – bagagem que não se transporta. E não se pode assumir que um nível seja mais importante que outro e deva preponderar. O desafio é encontrar o equilíbrio, assim como Philippe Petit sobre a corda.
Como diz Brandão, uma das razões para a transdisciplinaridade é o reconhecimento de que as universidades precisam interagir e se contaminar com o que está fora delas, para se atualizar e tratar de maneira mais apropriada seus próprios objetos – ainda mais depois que perderam a hegemonia na produção do conhecimento, desenvolvido em grande parte fora de seus muros, como no caso das artes e das tecnologias.
A parte pelo todo
Extrapolando-se a proposta de uma disciplina como a FIS para as questões de desenvolvimento no Brasil e no mundo, a pergunta é: como a educação pode contribuir para a tão desejada transformação da sociedade? “Uma educação para a sustentabilidade é uma educação transformadora”, afirma Érica Gallucci Miranda de Toledo, pesquisadora do Centro de Estudos em Sustentabilidade da Eaesp-FGV (GVces).
Mas, com métodos convencionais para novíssimas demandas, estruturas hierarquizadas e elitistas, e visões lineares e hiperespecializadas para situações que requerem uma compreensão sistêmica do todo, a educação não será capaz de transformar, e sim de perpetuar as mazelas – no caso do Brasil, especialmente caracterizadas por um sistema econômico ainda baseado na dilapidação do recursos naturais e na exclusão social.
Somente uma força mobilizadora será capaz de romper essa inércia. Os alunos de hoje, do ensino infantil ao superior, representam as gerações que herdarão as benesses e as mazelas elevadas à quinta potência. É de seu interesse, portanto, que se envolvam no processo de transformação e sejam os protagonistas. A reportagem à página 30, por exemplo, descreve projetos educacionais inovadores que colocam as crianças como atores principais, para que possam desenvolver seu protagonismo.
Outra boa notícia é que as novas gerações têm se mostrado movidas a desafios, agindo por desejo próprio e sabendo ser críticas a regras indevidas impostas hierarquicamente. Com alta capacidade de relacionar e acelerados pelos estímulos que chegam de todo lado pelos canais de comunicação e pelas ferramentas da tecnologia, esses jovens buscam o aprendizado mais pela prática do que pelos livros-texto. (leia sobre a Geração Y à pág. 46)
Levar em conta esse comportamento, esse jeito de ser, tornase fundamental para um processo eficaz de educação. Não é à toa que o projeto da FIS propõe aos alunos justamente um desafio prático, que pretende fazer com que se sintam parte da realidade a ser estudada e que compreendam a complexidade das forças em jogo naquela determinada situação.
Pedro Roberto Jacobi, professor titular da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Ciência Ambiental (Procam), da USP, percebe um esgotamento nas formas tradicionais de ensino. Vê o desinteresse dos alunos pela leitura e a dificuldade de concentração em um determinado tema. Sente na pele que é preciso uma renovação no método para estimular os alunos, acomodados com a facilidade mecânica do copy and paste. “Não tem mais guru”, diz ele. Muita coisa, de certa maneira, já está disponível a quem tenha acesso ao conhecimento. “O que precisa agora é o conhecimento entrar nos corações e mentes dos alunos.” Tal qual a paisagem das palafitas interiorizada por meio do desenho.
Essa percepção de Jacobi em sala de aula é descrita, com outras palavras, por Brandão, da UFMG. Ele cita o físico norte-americano Thomas Kuhn, para quem foram a aproximação e a reorganização do conhecimento, e não o acúmulo dele, que levaram ao desenvolvimento da ciência, da cultura e da sociedade. Segundo Kuhn, essa aproximação e essa reorganização se devem menos às descobertas e invenções do que a um novo olhar depositado sobre as mesmas coisas e os mesmos conteúdos já existentes. Para Brandão, esse olhar que atravessa os conhecimentos, impulsionado por algo que está além e aquém das disciplinas, é um sintoma de transdisciplinaridade.
Um olhar diferente que, pela inovação que apresenta e o desafio que provoca, teria potencial de envolver e estimular os alunos.
Brick in the wall
Para começar, esse olhar disciplinar, voltado para a compreensão dos diversos níveis de realidade, se faz necessário para romper os muros que costumam separar as escolas do seu entorno, especialmente as particulares. “Será que as escolas estão em contato com a comunidade à sua volta? Se houvesse mais porosidade, a educação para a sustentabilidade aconteceria naturalmente, pois esta é, sobretudo, transversal”, diz Reinaldo Bulgarelli, especialista em temas da diversidade e professor da Eaesp na área de responsabilidade social corporativa. Ele compara muitas escolas particulares a shopping centers, que fazem o aluno esquecer o lado de fora e acabam por formar ambientes segregacionistas.
Ainda que políticas do governo busquem criar oportunidades de inclusão por meio do sistema de cotas e do Programa Universidade para Todos (ProUni), o ensino de qualidade no Brasil, como se sabe, é acessado principalmente pelas classes favorecidas, perpetuando a imobilidade social.
“Quem está discutindo sustentabilidade é uma elite, mas ser sustentável é ser inclusivo”, afirma. A seu ver, o desrespeito à diversidade ainda é tão grande na sociedade brasileira que chega a ser sentido em turmas mais homogêneas. Bulgarelli descreve as queixas das alunas em grupos de discussão dos quais participa. “Até as brancas e ricas sofrem discriminação. Elas dizem: ‘Eu estudo tanto quanto meu colega, mas no mercado de trabalho é ele que vai ser meu chefe. Se é assim, prefiro não lutar por um cargo de chefia, vou tentar equilibrar o trabalho com a satisfação na vida pessoal’.” Por isso, segundo Bulgarelli, tem uma turma imensa de mulheres montando o próprio negócio ou optando por uma vida fora do País.
Já nas escolas públicas o problema é a porosidade à violência. “Diria até que em alguns casos há conivência, pois não se interpõe um filtro, não se executa um projeto para trabalhar a questão”, diz. E descreve situações que parecem banais, mas podem marcar profundamente as crianças e causar ressentimento ou revolta. Em geral, os professores, que se colocam como detentores do conhecimento, são brancos, e os alunos, negros. Nas creches, as crianças brancas costumam ser são penteadas pelas professoras brancas, que não têm o know-how de pentear o cabelo das crianças negras. Estas acabam penteadas pela merendeira, pela copeira, que estão abaixo na hierarquia de poder nas escolas. Assim, diz Bulgarelli, o momento de ser arrumado, de ser cuidado, do prazer desse contato físico e emocional, vem com uma carga de segregação.
Será um tipo sutil de violência, ainda que não intencional? Que efeitos isso pode ter nos corações e mentes dessas crianças e como isso vai afetar a sua formação na escola e na sociedade?
“A ciência não deu conta do sofrimento do homem”, diz Maria de Mello, do Ciret. O ensino, enquanto mero transmissor do conhecimento científico, não dará conta das demandas e das carências da humanidade.
Da Vinci a Piaget
“A atitude transdisciplinar não é nova. Ela está, por exemplo, no Renascimento e no Romantismo, em Leonardo da Vinci ou Goethe”, diz Brandão, da UFMG. Já o termo “transdisciplinaridade” é recente e surge com Jean Piaget em um seminário realizado em 1970, em Nice, na França.
Brandão explica que, enquanto para Jean Piaget o objeto da transdisciplinaridade está na interação entre as ciências disciplinares formais, para os autores Eric Jantsch e Boaventura de Sousa Santos, “o foco está mais na interação destas ciências com o humano e o social, e na abertura do conhecimento disciplinar para os não disciplinares, muitos do quais abrigados no campo da arte e da cultura – e que a Academia só consegue absorver parcialmente e com muito desconforto, em uma relação problemática”, diz.
A transdisciplinaridade surge como resposta ao avanço e ao aprofundamento do conhecimento nos vários nichos em que foi fragmentado, sobretudo a partir do século XVIII. “A excessiva especialização do saber fez com que se perdesse o próprio objeto – caso da Medicina, em que os vários recortes do corpo fizeram perder de vista a noção do corpo como um organismo. É por essa via que a Medicina Oriental encontrou seu lugar no Ocidente”, diz Brandão.
Fernando Bignardi, coordenador do Centro de Estudos do Envelhecimento, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), mostra como a transdisciplinaridade pode se aplicar à Medicina. Ele explica que a principal causa de perdas funcionais na velhice, decorrentes das doenças crônicas, é o estilo de vida. Este, por sua vez, resulta de fatores multidimensionais, como escolhas alimentares, hábitos de sono, ritmo de vida, crenças, postura e atividade física. Por isso, em vez do que chama de modelo mecânico newtoniano (referente ao determinismo de Isaac Newton), Bignardi considera as múltiplas dimensões no ser humano: física, metabólica, vital, mental e supramental (fundamentada na mecânica quântica) – uma abordagem, segundo ele, com resultados muito satisfatórios nos pacientes.
Inter, multi, transdisciplinar. Qual a diferença?
Para explicar a diferença entre as visões disciplinar, multidisciplinar, interdisciplinar e transdisciplinar, o físico romeno Basarab Nicolescu, um dos principais estudiosos do tema, lança mão de um exemplo: a Igreja da Sagrada Família, construída por Antonio Gaudí em Barcelona. Enquanto objeto de estudo disciplinar, esse templo remete à Arquitetura, uma disciplina que tem sua própria metodologia. Mas ele também pode receber olhares cruzados partindo de diferentes disciplinas, como a História da Arte, a História das Religiões, a Física (sobre a resistência dos materiais), a Química, a Psicanálise (sobre a personalidade de Gaudí). Essa já é uma visão multidisciplinar.
Outra possibilidade é transferir métodos de uma disciplina para outra, ou seja: com a finalidade de terminar o templo que Gaudí deixou inacabado, podemos nos servir de seus projetos e desenhos para nos inspirar, ou utilizar a eletrônica e a realidade virtual, e transferir o método da Informática para a Arquitetura. Trata-se da visão interdisciplinar.
“Podemos, contudo, ter um olhar radicalmente diferente”, diz Nicolescu. “Como posso eu mesmo, pessoa privada, visitar esse templo? Em que esse objeto concerne a mim, à minha vida, à nossa vida de hoje, ao sentido deste mundo onde eu vivo?”, refere-se aqui Nicolescu à transdisciplinaridade, mencionando uma viagem de ida e volta entre o mundo interior e o objeto exterior. “Talvez eu me diga, é isso o que Gaudí queria exprimir (ao construir a igreja): oferecer a nós sua própria representação do mistério da realidade, irredutível a qualquer discurso.”
Nicolescu chama essas visões de quatro flechas do arco do conhecimento, em que nenhuma substitui a outra. “Não são olhares excludentes. A transdisciplinaridade não veio tomar tomar o lugar ocupado pelo competente exercício da disciplinaridade, da multi e da inter. Essas quatro flechas não apenas podem como devem continuar coexistindo”, diz Maria de Mello, do Ciret.