Setor privado propõe incorporar às cadeias globais de valor uma logística reversa capaz de influenciar o design dos produtos, seu consumo e a recuperação de materiais
O modelo produtivo que consiste em retirar matérias-primas da natureza, processá-las, oferecer os resultados ao consumo e descartar seus remanescentes está com os dias contados. Essa forma linear de utilização dos recursos, típica da sociedade do jogar fora, será substituída por uma economia circular e regenerativa. O conceito vem sendo utilizado por inúmeras organizações e especialistas. Em 2012 e 2013 a Fundação Ellen MacArthur já havia publicado dois excelentes relatórios[1], tanto mostrando a ineficiência material e energética do que se produz hoje como sugerindo caminhos para sua transformação.
Agora, acaba de receber uma síntese extraordinariamente benfeita no Fórum Econômico Mundial [2]. Desta vez, a Fundação apoia-se na consultoria McKinsey e alia-se ao Fórum Econômico Mundial em uma proposta com potencial de mudar a qualidade da discussão contemporânea sobre desenvolvimento sustentável. Não se trata de reciclagem, nem de temas que interessam estritamente aos especialistas em resíduos sólidos. O objetivo tampouco se restringe a valorizar as formas localizadas de recuperação de rejeitos.
[1] Towards the Circular Economy 1: Economic and Business Rationale for an Accelerated Transition; January 2012, Cowes, Isle of Wight: Ellen MacArthur Foundation e Towards the Circular Economy 2: Opportunities for the consumer goods sector; January 2013, Cowes, Isle of Wight: Ellen MacArthur Foundation.
[2] Acesse o relatório aqui
FRONTEIRA DE INOVAÇÃO
A ambição desse indispensável relatório é incorporar a ideia de economia circular ao âmago das cadeias globais de valor. Algo como uma logística reversa global e que exerça influência estratégica sobre o design dos produtos, seu consumo e a recuperação dos materiais em que se apoia. Uma proposta de planejamento econômico que vem do setor privado e que estabelece metas sobre a maneira como se utilizam os recursos materiais, energéticos e bióticos dos quais depende a reprodução social.
O crescimento econômico mundial entre 1850 e 2000 teve nos preços declinantes das matérias-primas minerais e agrícolas um de seus vetores decisivos. Essa tendência secular foi revertida desde o início do milênio. Em meio à inédita volatilidade, os preços médios das commodities (incluindo petróleo, claro) aumentaram 150% entre 2002 e 2010.
Em nenhuma década do século XX, a volatilidade dos preços dos minérios e das commodities agrícolas (alimentares e não alimentares) foi tão forte como desde o ano 2000. A entrada nos mercados globais de mais de 3 bilhões de novos consumidores até 2025 pressiona a disponibilidade de recursos indispensáveis para a indústria e aumenta seus custos de exploração.
Existem duas condições para que a economia circular ofereça alternativa a esse estrangulador aumento de custos. A primeira reside na identificação dos objetos por radiofrequência e, portanto, na possibilidade de seu rastreamento, independentemente de onde estejam. A “internet das coisas” é uma das bases centrais da economia circular: hoje existem mais objetos do que pessoas ligadas entre si por dispositivos digitais: 12 bilhões de dispositivos em 2010, com previsão de aumento para 25 bilhões em 2015 e 50 bilhões em 2020. A visibilidade das bases materiais e energéticas dos processos industriais é hoje maior que nunca e só tende a crescer.
Em sua planta de Choisy-le-Roi, a Renault fabrica peças de reposição com base no reaproveitamento de remanescentes usados, o que reduz os preços ao consumidor, diminui o consumo de água, energia e as emissões de gases de efeito estufa. Nesse sentido, os exemplos pioneiros contidos no relatório parecem muito promissores.
A segunda condição decisiva para a economia circular é de natureza política e, de certa forma, ética. Ela envolve intenção e articulação entre atores econômicos. Uma economia circular supõe design voltado para eliminar a noção de lixo. Para isso, não se pode contar com o movimento espontâneo das forças de mercado. O relatório sugere um conjunto específico de materiais (papel, papelão, plásticos, produtos siderúrgicos, entre outros) para os quais devem ser criados, durante os próximos cinco a dez anos, mecanismos que permitam ampliar exponencialmente sua reutilização.
Trata-se de uma das mais fascinantes fronteiras da inovação contemporânea e que só poderá emergir se as cadeias globais de valor se reorganizarem para obedecer a essa lógica de revalorização de seus nutrientes técnicos e bióticos.
É impossível saber se as condições políticas para tal conquista civilizacional no plano produtivo estão dadas. Mas, se ela ocorrer, os países cujo crescimento vem basicamente da exploração de matérias- primas minerais e agrícolas e que estão na retaguarda da sociedade da informação em rede enfrentarão imensas dificuldades para acelerar seu processo de desenvolvimento.
*Professor Titular do Departamento de Economia da FEA/USP
Twitter: @abramovay – Blog: ricardoabramovay.com[:en]Setor privado propõe incorporar às cadeias globais de valor uma logística reversa capaz de influenciar o design dos produtos, seu consumo e a recuperação de materiais
O modelo produtivo que consiste em retirar matérias-primas da natureza, processá-las, oferecer os resultados ao consumo e descartar seus remanescentes está com os dias contados. Essa forma linear de utilização dos recursos, típica da sociedade do jogar fora, será substituída por uma economia circular e regenerativa. O conceito vem sendo utilizado por inúmeras organizações e especialistas. Em 2012 e 2013 a Fundação Ellen MacArthur já havia publicado dois excelentes relatórios[1], tanto mostrando a ineficiência material e energética do que se produz hoje como sugerindo caminhos para sua transformação.
Agora, acaba de receber uma síntese extraordinariamente benfeita no Fórum Econômico Mundial [2]. Desta vez, a Fundação apoia-se na consultoria McKinsey e alia-se ao Fórum Econômico Mundial em uma proposta com potencial de mudar a qualidade da discussão contemporânea sobre desenvolvimento sustentável. Não se trata de reciclagem, nem de temas que interessam estritamente aos especialistas em resíduos sólidos. O objetivo tampouco se restringe a valorizar as formas localizadas de recuperação de rejeitos.
[1] Towards the Circular Economy 1: Economic and Business Rationale for an Accelerated Transition; January 2012, Cowes, Isle of Wight: Ellen MacArthur Foundation e Towards the Circular Economy 2: Opportunities for the consumer goods sector; January 2013, Cowes, Isle of Wight: Ellen MacArthur Foundation.
[2] Acesse o relatório aqui
FRONTEIRA DE INOVAÇÃO
A ambição desse indispensável relatório é incorporar a ideia de economia circular ao âmago das cadeias globais de valor. Algo como uma logística reversa global e que exerça influência estratégica sobre o design dos produtos, seu consumo e a recuperação dos materiais em que se apoia. Uma proposta de planejamento econômico que vem do setor privado e que estabelece metas sobre a maneira como se utilizam os recursos materiais, energéticos e bióticos dos quais depende a reprodução social.
O crescimento econômico mundial entre 1850 e 2000 teve nos preços declinantes das matérias-primas minerais e agrícolas um de seus vetores decisivos. Essa tendência secular foi revertida desde o início do milênio. Em meio à inédita volatilidade, os preços médios das commodities (incluindo petróleo, claro) aumentaram 150% entre 2002 e 2010.
Em nenhuma década do século XX, a volatilidade dos preços dos minérios e das commodities agrícolas (alimentares e não alimentares) foi tão forte como desde o ano 2000. A entrada nos mercados globais de mais de 3 bilhões de novos consumidores até 2025 pressiona a disponibilidade de recursos indispensáveis para a indústria e aumenta seus custos de exploração.
Existem duas condições para que a economia circular ofereça alternativa a esse estrangulador aumento de custos. A primeira reside na identificação dos objetos por radiofrequência e, portanto, na possibilidade de seu rastreamento, independentemente de onde estejam. A “internet das coisas” é uma das bases centrais da economia circular: hoje existem mais objetos do que pessoas ligadas entre si por dispositivos digitais: 12 bilhões de dispositivos em 2010, com previsão de aumento para 25 bilhões em 2015 e 50 bilhões em 2020. A visibilidade das bases materiais e energéticas dos processos industriais é hoje maior que nunca e só tende a crescer.
Em sua planta de Choisy-le-Roi, a Renault fabrica peças de reposição com base no reaproveitamento de remanescentes usados, o que reduz os preços ao consumidor, diminui o consumo de água, energia e as emissões de gases de efeito estufa. Nesse sentido, os exemplos pioneiros contidos no relatório parecem muito promissores.
A segunda condição decisiva para a economia circular é de natureza política e, de certa forma, ética. Ela envolve intenção e articulação entre atores econômicos. Uma economia circular supõe design voltado para eliminar a noção de lixo. Para isso, não se pode contar com o movimento espontâneo das forças de mercado. O relatório sugere um conjunto específico de materiais (papel, papelão, plásticos, produtos siderúrgicos, entre outros) para os quais devem ser criados, durante os próximos cinco a dez anos, mecanismos que permitam ampliar exponencialmente sua reutilização.
Trata-se de uma das mais fascinantes fronteiras da inovação contemporânea e que só poderá emergir se as cadeias globais de valor se reorganizarem para obedecer a essa lógica de revalorização de seus nutrientes técnicos e bióticos.
É impossível saber se as condições políticas para tal conquista civilizacional no plano produtivo estão dadas. Mas, se ela ocorrer, os países cujo crescimento vem basicamente da exploração de matérias- primas minerais e agrícolas e que estão na retaguarda da sociedade da informação em rede enfrentarão imensas dificuldades para acelerar seu processo de desenvolvimento.
*Professor Titular do Departamento de Economia da FEA/USP
Twitter: @abramovay – Blog: ricardoabramovay.com