Por Jean Paul Metzger
As três grandes crises globais que o planeta enfrenta atualmente estão intimamente ligadas aos processos de modifi cação no padrão de uso e ocupação das terras e, em particular, à fragmentação de habitats nativos. Apesar da preocupação com a dimensão das mudanças climáticas, da degradação e do esgotamento dos recursos hídricos e da extinção das espécies nativas — e a conseqüente erosão genética—, é possível ter uma visão otimista a longo prazo, mesmo baseada nos dados pessimistas atuais.
Há tempos o homem substitui habitats nativos para introduzir outros ambientes que supram suas necessidades básicas, em particular alimentação e habitação. Junto com a conversão em áreas agrícolas, pastos, áreas urbanas, ocorre também uma modifi cação no padrão de distribuição espacial dos habitats nativos. Anteriormente dispostos de forma contínua, habitats naturais passam a ocorrer unicamente como manchas ou fragmentos isolados, imersos em uma ampla matriz de áreas modifi cadas pelo homem.
O processo de subdivisão do habitat nativo, ao qual se dá o nome de “fragmentação”, é evidente no caso da Mata Atlântica, da qual hoje existem apenas pequenos remanescentes, em geral em áreas de relevo íngreme ou afastadas das cidades e das estradas. Apesar de menos conhecida ou estudada, a fragmentação ocorre em outros biomas. Há intensa fragmentação em toda a borda meridional da Amazônia, ao longo do chamado “arco de desmatamento”. De forma semelhante, o Cerrado vem sendo fragmentado em conseqüência, essencialmente, da expansão das áreas de cultivo de soja no Planalto Central brasileiro. Nem os campos sulinos, o Pantanal ou a Caatinga escapam dos efeitos da fragmentação.
A fragmentação ocorre concomitantemente à perda de habitat nativo e, por isso, alguns especialistas consideram desnecessária a distinção entre esses dois processos. Em um sentido mais amplo, portanto, a fragmentação é entendida como uma modifi cação da estrutura da paisagem onde há perda de habitat nativo, formação de fragmentos isolados e aumento das áreas de contato, as chamadas bordas, entre ambientes nativos e áreas de uso humano. Esse conceito é o utilizado na análise das relações da fragmentação com as grandes crises ambientais globais.
Mais efeito estufa
Mais especifi camente, as crises relacionadas às mudanças climáticas, aos recursos hídricos e à extinção de espécies estão fortemente relacionadas à fragmentação. Ela contribui para as mudanças climáticas por meio da intensifi cação das emissões de gases de efeito estufa (GEE). Isso se dá, primeiro, pela substituição de uma cobertura vegetal com maior potencial de absorção de CO2 do que aquelas introduzidas pelo homem, em particular em áreas tropicais. Segundo, pela queima da biomassa vegetal decorrente dessa substituição e, por conseqüência, pela volatilização de uma série de compostos que contribuem para o efeito estufa. E, finalmente, pela introdução de cultivos anuais que geralmente possuem uma taxa mais intensa de respiração nos solos do que de absorção de CO2 por fotossíntese, o que resulta em emissão desse gás para a atmosfera.
Embora os efeitos da fragmentação possam parecer insignifi cantes diante daqueles causados pela queima de combustíveis fósseis, essa pode ser uma conclusão precipitada. Em países desenvolvidos, como Estados Unidos ou Canadá, a queima de combustíveis fósseis representa 55% a 60% das emissões de GEE, enquanto nos Emirados Árabes a contribuição chega a 79%.
No caso do Brasil, entretanto, dados recentes indicam que a queima de combustíveis fósseis contribui em 17% na emissão de GEE, mas a agricultura participa com 26%, a pecuária, com 29%, e os usos fl orestais, com 21%. Estes três últimos itens estão intimamente relacionados à conversão de habitats nativos para outros de uso humano, ou seja, à perda de habitat ou fragmentação, no sentido amplo, de habitats nativos.
Menos água
Em relação à água, a fragmentação contribui para a crise que se avizinha de diversas maneiras. Em uma bacia hidrográfi ca, a retirada da cobertura vegetal nativa leva a uma alteração no balanço entre precipitação e evapotranspiração, resultando muitas vezes na redução da quantidade de água disponível localmente. Sem a cobertura vegetal, o escoamento superfi cial é maior, intensifi cando os picos de cheia, aumentando a erosão dos solos e o assoreamento dos rios e diminuindo a recarga do lençol freático. Esse conjunto reduz ainda mais a disponibilidade do recurso hídrico.
Nesse caso, não é apenas a perda de habitat nativo que leva às mudanças hidrológicas — a disposição espacial, ou seja, a fragmentação per se, pode também acelerar o processo. Em particular, a perda de habitat nas cabeceiras tem efeitos mais severos sobre a reposição do lençol do que em outros locais. De forma similar, a perda das matas ribeirinhas intensifica a erosão dos solos e o assoreamento dos rios.
Uma das maiores superfícies de água doce do mundo, o Mar de Aral, na antiga União Soviética, atualmente na fronteira do Cazaquistão com o Uzbequistão, exemplifi ca dramaticamente a relação da fragmentação com a crise hídrica. Devido à substituição de habitats nativos por cultivos de algodão, e com o bombeamento, a partir dos anos 60, da água dos rios Amu Daria e Sir Daria, o Mar de Aral teve sua superfície reduzida em mais de 60%.
Com a redução da extensão do lago, houve um aumento da salinidade da água e extinção de 20 das 24 espécies de peixes locais, acabando com o recurso de cerca de 60 mil pescadores. O vento espalhou o sal depositado nas áreas ressecadas, o que levou a uma queda brutal na produtividade agrícola e na pecuária em um raio de 200 quilômetros. A água do lençol freático, além de salgada, baixou de 5 para 15 metros, salvo nas áreas irrigadas, onde o lençol subiu, levando à salinização dos solos e à desertifi cação. O caso do Mar de Aral, infelizmente, não é isolado.
Extinções por minuto
O homem já alterou 50% da superfície terrestre, removendo habitats nativos e introduzindo novas formas de cobertura das terras, segundo dados da Food and Agriculture Organization (FAO), de 2002, e de um trabalho do ecólogo americano Peter Vitousek. As alterações ocorreram tanto em áreas fl orestadas, em particular na Europa e na América do Norte, quanto em áreas de campos naturais. Essa perda de habitat e a sua conseqüente fragmentação levam à extinção de espécies nativas.
Para estimar a perda de espécies induzida pelo homem, Edward O. Wilson utilizou, nos anos 90, uma relação da área de habitat com a riqueza de espécies, sugerida inicialmente por Svante Arrhenius em 1921 e que se tornou famosa. Usando premissas conservadoras, Wilson calculou que, se existirem 10 milhões de espécies, seriam esperadas 17.500 extinções por ano, quase 48 por dia e 2 por hora. Se estiver correto, tal ritmo de extinção é 100 a 1.000 vezes maior do que o registrado antes da ampla distribuição do homem pelo planeta. Estaríamos, então, provocando a sexta crise de extinção de espécies—todas as outras foram essencialmente provocadas por mudanças climáticas, sem relação com o homem.
As estimativas de Wilson podem estar erradas, afi nal são poucos os registros recentes de extinção. Ainda assim, outras estimativas disponíveis—mesmo variando o número de espécies total, a taxa de perda de habitat ou a porcentagem de espécies em zona tropical —também chegam a números alarmantes. E a conclusão é a mesma: a perda de habitat nativo está levando a uma grande crise de extinção de espécies.
Os dados acima consideram apenas a perda de habitat e não o conjunto das alterações estruturais a que a paisagem é submetida quando há fragmentação. Uma extensa literatura relaciona a redução no tamanho dos fragmentos de habitat remanescentes ao aumento do risco local de extinção. Além disso, quanto mais isolado o fragmento, e reduzida a conectividade da paisagem—sua capacidade de facilitar os fluxos biológicos—, menores as possibilidades de migração e recolonização de fragmentos onde houve extinção.
A combinação desses dois processos locais—o aumento do risco de extinção e a redução das possibilidades de migração—, relacionados à fragmentação, deve acelerar as perdas de espécies.
Colapso ou transição?
Muitas sociedades passadas não souberam lidar com crises como a que vivemos e acabaram extintas. O desmatamento foi uma das principais causas da decadência da civilização Maia, que habitou as fl orestas tropicais do México, de Honduras e da Guatemala desde 2500 a.C. e que ao fi m do século IX estava praticamente extinta. A conseqüência foi a perda de madeira para cozimento de alimentos e construções, além da caça de grande porte, o que elevou a competição por recurso e levou à guerra.
Se há exemplos trágicos como o da civilização Maia e de outras nas Ilhas da Polinésia, há também sociedades que perceberam como lidar com a crise relacionada à fragmentação de seus habitats nativos. É o caso de nações européias como França, Noruega, Finlândia e Alemanha, que, ao detectar o problema, tiveram a vontade política para agir e, principalmente, agiram de forma eficiente.
Essas nações passaram pela chamada “transição florestal”— após um período de crescimento econômico baseado na perda de habitat, conseguiram inverter o processo, aumentando a cobertura fl orestal sem afetar seu desempenho econômico. Hoje, têm cobertura florestal duas vezes maior do que há 150 anos.
Mantidas as diferenças biogeográfi cas e culturais, tais países podem indicar caminhos interessantes para o Brasil crescer sem perder (muito de) sua cobertura fl orestal. Um deles é o uso de mecanismos de cobrança por serviços ambientais, nascentes no País. O Projeto Oásis, por exemplo, pagará os proprietários para manter áreas florestadas na região de manancial do Rio Guarapiranga. Como ensina outra civilização milenar, a chinesa, a palavra crise encerra não só perigo, mas oportunidade.