Como a arte e os jogos ajudam a criança a lidar com as próprias emoções, organizar ideias e solucionar problemas
Demorou, mas algumas escolas começam a escutar o que as crianças têm a dizer, em vez de impor aos alunos a supremacia do mundo adulto. Sábios como só eles, os pequenos vêm mostrando aos professores que a arte e a brincadeira são o caminho mais iluminado para o aprendizado. A prática de ouvir os estudantes tem levado os professores a descobrir não só os temas que mais interessam à turma, mas também os melhores meios de apresentá-los às crianças.
Não é difícil entender por que algumas escolas são apontadas como modelo ao eleger as atividades lúdicas como as principais aliadas no ensino. Brincando ou fazendo arte em torno de um assunto que desperta a curiosidade, o estudante desenvolve a percepção, a imaginação e o raciocínio, ao mesmo tempo que põe a mão na massa. É assim que os exercícios e ensinamentos se tornam literalmente palpáveis nesse universo infantil em formação.
Conversa de roda
De tanto falar e perguntar sobre os peixes que habitam o aquário da escola, as crianças de 3 anos de uma turma do Centro Social Marista Itaquera, situada em região periférica da capital paulista, na Zona Leste, convenceram as professoras de que os animais deveriam ser objeto de investigação durante todo o semestre. Participando de jogos e trabalhos de arte que atualmente enfeitam a sala de aula, eles aprenderam de onde vêm os peixes, o que comem e por que eles são diferentes de outros bichos.
“Todos os projetos de ensino começam com assuntos trazidos e observados pelos alunos. São temas que emergem do grupo”, resume a coordenadora pedagógica da escola pública, Alessandra Geraldo. Nas reuniões em roda, realizadas sempre no começo e no fim de cada aula, os estudantes são convidados a definir a rotina do dia. Neste encontro diário, eles expressam os conhecimentos que trazem de casa e criam novas referências.
“O diálogo permanente é importante, porque respeita o que a criança já sabe, faz com que ela aprenda elementos novos e também ensina a escutar o colega. Há troca de conhecimento e elas se sentem mais seguras para arriscar, pois são orientadas antes de cada atividade e brincadeira”, completa Renata Cocato, educadora social da escola, que neste ano recebeu o selo ‘Aqui se Brinca’, promovido pela marca OMO (da Unilever), como uma das instituições com as melhores práticas do brincar no Estado.
O amplo gramado que fica na entrada do Centro Social Marista Itaquera não serve apenas para a diversão durante o intervalo: é também cenário para lições que normalmente ficariam restritas à sala de aula. As portas permanecem abertas para o jardim e as crianças podem transitar quando quiserem pelo espaço, além de visitar as classes vizinhas. Se a atividade é na sala de aula, ninguém sente necessidade de “fugir”, já que o espaço aberto está ao alcance o tempo todo. Um dos exercícios organizados em sala é a fabricação de brinquedos com a utilização dos chamados “objetos não estruturados”.
“São coisas que fazem parte do dia a dia deles em casa e passam a ser ressignificadas. Usando a imaginação e a criatividade, eles conseguem construir de casas de papelão a bichos feitos de palha. Elaboram novas possibilidades”, explica Renata. Segundo a educadora, é na criação artística e no brincar que a criança deixa de apenas reproduzir as ações dos adultos para começar a se transformar em sujeito histórico e social. “Ela faz sua própria leitura do mundo e representa isso através da brincadeira”, afirma.
Mais diversão, por favor
Os alunos também se colocam como personagens ativos quando elaboram, por exemplo, uma linha do tempo que faz paralelo entre a história de sua escola e a do Brasil e do mundo.
O exercício, desenvolvido na Arraial das Cores, na Vila Madalena, bairro da Zona Oeste de São Paulo, é baseado em um ponto-chave da propagada transdisciplinaridade: incluir os conhecimentos e sentidos da criança no processo para transformá-la em um agente ativo.
Da mesma forma que o Centro Marista Itaquera, a instituição – que é particular e também conquistou o selo “Aqui se Brinca” – costuma ouvir os aprendizes e tomar sua experiência como ponto de partida para a formação. Neste processo, os jogos, o brincar e o fazer artístico, mais uma vez, são ferramentas essenciais.
A escola não faz uso de livros didáticos, recusa-se a aplicar o tradicional sistema de avaliação que dá nota aos alunos e garante que os pais nem ficam curiosos a respeito dos resultados. “Quando algum deles não vai bem na lição, nos perguntamos o que fizemos de errado para que não tenha ficado claro para ele, e não o contrário”, diz a coordenadora pedagógica Maria Carolina Villas Boas. O material didático foi substituído por fichas e livros produzidos pela própria escola, com a colaboração dos estudantes. O material fica à disposição na biblioteca e é associado a cada projeto desenvolvido pelas turmas, para que elas estabeleçam uma relação mais direta com as atividades.
Quando Página22 visitou a Arraial das Cores, um grupo de crianças jogava, na quadra, um jogo chamado “Nunca Três”, criado anos atrás por outros alunos. Da mesma forma que aquela brincadeira com a bola ensina regras matemáticas e exige raciocínio lógico, a construção de uma casa de madeira no quintal do lugar, meses antes, demandou que as crianças fizessem cálculos, estudassem escala e desenvolvessem noções de espaço. Uma proposta prática e conceitual semelhante à da Tinkering School, escola californiana que tem por princípio estimular os pequenos a construir tudo aquilo que ronda sua imaginação.
“Geralmente, os trabalhos vêm das necessidades do grupo e do nosso olhar sobre eles”, acrescenta Maria Carolina. Apesar de seguir os referenciais exigidos pelo Ministério da Educação, a escola prefere não ficar presa ao conteúdo dos livros e, sim, investir em processos que levem as crianças a solucionar problemas. Na aula de artes, orientada pelo professor Paulo Nin, uma discussão sobre a linha e o desenho levou à construção coletiva de uma grande teia colorida pelos meninos.
Durante a produção da teia – que incluiu a construção do suporte de madeira para a escultura –, eles experimentaram parcerias, testaram habilidades e perceberam as diferenças entre o trabalho em grupo e o individual. “Tem espaço tanto para o coletivo quanto para o intimista. Neste trabalho, consideramos a construção como uma ferramenta específica do jogo. A criança vai se apropriando do objeto até torná-lo seu”, diz Nin.
Desenhando um caminho
A linha pedagógica que aposta na resolução de problemas valendo-se da criação vem ganhando, a pequenos passos, alguma força em âmbito nacional. No novo Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), que pretende reestruturar os currículos de todo o Brasil, uma das áreas de avaliação é o domínio de linguagens – da matemática à artística. Mesmo que ainda distante da realidade da maioria das escolas, a diretriz pode indicar a valorização do ensino artístico, historicamente negligenciado em diferentes níveis pelos governos desde a ditadura militar.
“A partir daí (da época da ditadura militar) a prática de arte nas escolas públicas primárias foi dominada em geral pela sugestão de tema e por desenhos alusivos a comemorações cívicas, religiosas e outras festas”, descreve em artigo a professora Ana Mae Barbosa. Primeira doutora em Arte-Educação do País, Ana foi a criadora da “proposta triangular” de ensino que se apoia nos pilares da contextualização histórica, do fazer artístico e da apreciação da arte. Ela relata que os livros publicados nos anos 60 e 70 eram em sua maioria redutores e traziam como núcleo central a descrição de técnicas.
Se podemos identificar algum avanço em relação ao que se chamava de educação artística décadas atrás, ainda há um longo caminho a ser percorrido, no sentido de reconhecer a arte e a brincadeira como aspectos fundamentais do ensino. Desalojado em 2008 de um galpão antes cedido pelo governo de Minas Gerais, o Circo de Todo Mundo, ONG premiada por sua atuação com crianças e jovens em situação de risco, começa agora a se reestruturar para prosseguir com o trabalho que realiza desde 1991.
Hoje, a organização atende 200 crianças e adolescentes em três espaços emprestados por entidades na região metropolitana de Belo Horizonte e deve ocupar, em breve, uma casa que será cedida pela Prefeitura de Nova Lima. Ao promover aulas circenses para crianças socialmente vulneráveis, o Circo de Todo Mundo busca devolver a elas um imaginário massacrado pelo trabalho infantil forçado e outros tipos de abuso.
Para Maria Eneide, coordenadora da ONG, o circo e qualquer outra atividade artística são instrumentos eficazes para provocar o imaginário e fazer com que as crianças reconheçam melhor suas capacidades físicas, se encontrem com elas mesmas, percebam a importância do seu corpo e da escola. “A gente entende que não se educa um ser humano feliz e inteligente se não se respeitar a infância dele, que tem dois espaços: a brincadeira e o afeto. A escola tem de chegar na vida da criança como uma brincadeira”, alerta.
O recado é importante, ainda mais quando pensamos em práticas como a dos vestibulares simulados, que começam a alcançar até o ensino básico. Para combater modelos viciados e renovar o espírito de crianças que brincam menos do que deveriam, a escola precisa assumir sua vocação de espaço lúdico. Abrir as portas para o quintal, deixar o sol entrar e permitir que as crianças descubram o lado de fora.
—————————————————————————————————————————————————-
Enquanto isso, no mundo dos adultos…
estão em jogo tecnologia, conhecimento , dinheiro , recursos naturais e gente
Em uma mesa com cinco pessoas, quatro delas usam terno e gravata e todas estão com a atenção voltada para um tabuleiro colorido que reproduz o mapa-múndi. Os mais jovens comparam as regras com as do popular jogo estratégico War, enquanto um senhor tem dificuldades para captar a proposta da brincadeira.
Faz sentido que o jogo Negócio Sustentável seja a princípio menos compreensível para o senhor do que para os jovens empresários. Na contramão da velha lógica de mercado, o jogo propõe que os participantes não sejam adversários, e sim players que se ajudam mutuamente para garantir não só o lucro de seus negócios, mas também benefícios para o planeta.
Lançado em 2008 pela consultora de finanças Glória Maria Pereira, o jogo de tabuleiro chama os participantes a refletir sobre como gerir negócios, tendo em vista cinco diferentes “moedas”: tecnologia, conhecimento, dinheiro, recursos naturais e pessoas. A lição divertida sobre empreendedorismo sustentável vem atraindo empresários de diferentes nichos do mercado e também começa a chegar às universidades. Já é usado como instrumento pedagógico, por exemplo, no Programa de Iniciação Científica (PIC) da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEA), da USP.
“O jogo foi pensado para um mundo que vive em rede, onde, se um perder, o outro perde também. Um exemplo desse tipo de reação em cadeia foi a crise econômica internacional originada pela subprime”, explica Glória Maria, durante apresentação que fez a empresários no Conselho Regional de Administração de São Paulo.
Quando o sino soa, ninguém na mesa quer parar de jogar os dados. “Além de mostrar como se estrutura um negócio sustentável, a brincadeira ajuda a reestruturar os conhecimentos prévios de maneira lúdica”, diz o administrador Daniel Silva. Por enquanto, o produto pode ser comprado (por R$ 300) apenas pelo site www.negociosustentavel.com, mas será lançado comercialmente em 2010 no Brasil e em outros países.
(Assista ao vídeo sobre o jogo sustentável na coluna ao lado.)