Empresas conquistam os mercados globais, mas a grande questão é falar a língua dos públicos locais com os quais interagem
Por Amália Safatle
A sociedade contemporânea não se cansa de refletir sobre a globalização, fenômeno econômico, social e cultural que pressupõe a quebra de barreiras e a formação de uma aldeia global. É sedutora e até poética a idéia da recriação de uma verdadeira Pangéia, onde as decisões sejam tomadas em prol de uma única comunidade, de proporção mundial.
No entanto, essa reflexão quase sempre se depara com os paradoxos da globalização. A tecnologia da informação conectou as pessoas e tornou o planeta intercomunicável. Ao mesmo tempo, cresceu a consciência de que o mundo é um só ecossistema, inteiramente sujeito às mudanças ambientais globais. Mas nem por isso o entendimento da humanidade aumenta nessa proporção.
Tal mensagem passa até nas telas do cinema. O premiado fi lme Babel — já sugere o nome — mostra o grau de utopia da aldeia global. Babel lança mão de três narrativas que se entrelaçam para dizer que as mercadorias, sim, ganham um mundo sem fronteiras, enquanto as pessoas mal conseguem transpor as barreiras da compreensão.
Se a globalização é um fenômeno de raízes econômicas, impulsionado com o aumento das transações comerciais pós-Guerra Fria, o setor privado deveria ser por excelência um campo pródigo na construção de relações capazes de construir uma aldeia global. Ou, ao menos, no exercício dessa construção.
Também por meio de três situações diferentes, mas com elementos em comum, esta reportagem aborda casos que envolvem três empresas: todas de capital nacional e privado, com ações negociadas em Bolsa, crescente participação nos mercados globais e investimento maciço em ações de responsabilidade social.
Trata-se da Natura, da Aracruz Celulose e da Companhia Vale do Rio Doce, que passaram, ou ainda passam, por crises de relacionamento com comunidades tradicionais e/ou com povos indígenas.
Por definição, comunidades tradicionais são povos ou grupos de pessoas que, relativamente isolados do convívio com a sociedade ocidental, desenvolveram tradições e identidade próprias, dentro de um determinado território. Povos indígenas, a princípio, estariam sob esse guarda-chuva, mas, em função de características especiais em relação ao Estado e à condição de cidadania, PÁGINA 22 faz essa diferenciação.
O caso da Natura envolve as populações ribeirinhas e as vendedoras de ervas do Mercado Ver-o-Peso, em Belém, que reivindicam o direito de receber benefícios, uma vez que possibilitaram o acesso da empresa a ativos da biodiversidade.
O da Aracruz está ligado aos índios tupiniquim e guarani, no Norte do Espírito Santo. Com base em laudos da Fundação Nacional do Índio (Funai), esses povos exigem a demarcação de 11.009 hectares de terra, hoje nas mãos da Aracruz, por considerar que constituem parte de território indígena. A empresa, amparada em outros documentos, nega o direito e afi rma que as terras foram adquiridas por ela de forma legítima. Comunidades quilombolas também reivindicam terras hoje sob posse da Aracruz e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) protesta contra a monocultura do eucalipto na região.
O caso da Vale diz respeito aos índios xikrin na região da Serra dos Carajás. Os índios têm usado métodos de coerção para obter da empresa um volume crescente de recursos e bens, a título de indenização pela ocupação de terras indígenas no transporte de minério de ferro. Em resposta à insatisfação constante dos índios, a empresa não só cortou a verba mensal como entrou com representação contra o governo brasileiro na Organização dos Estados Americanos (OEA), por entender que a solução do caso não compete mais a ela.
Diante desses exemplos, e outros similares, a refl exão a se fazer é: como o setor empresarial pode estar inserido na aldeia do mundo globalizado ao mesmo tempo que tem difi culdade de se inserir nas “aldeias locais”?
Esse é um questionamento que o próprio diretor de Sustentabilidade e Relações Corporativas da Aracruz, Carlos Alberto Roxo, faz: “O relacionamento com as partes interessadas, a sustentabilidade e a necessidade de inserir esses elementos em um mundo globalizado representam toda uma nova dimensão para os negócios”.
Roxo conta que os litígios com as comunidades tradicionais, os povos indígenas e os movimentos sociais acabaram servindo para que a empresa buscasse internalizar a questão da sustentabilidade.
“A Aracruz hoje desenvolve um plano integrado de sustentabilidade, a qual antes não era vista como um processo dentro da empresa. Temos refletido e enxergamos que a Aracruz precisa se adaptar a essa nova dimensão. E a Aracruz tem capacidade de se adaptar, caso contrário não teria chegado aonde chegou”, afirma o executivo.
As experiências das três empresas servem também para provocar refl exões sobre a responsabilidade social corporativa praticada no Brasil. Os casos mostram que a sociedade, cada dia mais consciente das questões socioambientais, exige que as companhias ajam com desenvoltura e transparência diante de uma miríade de variáveis culturais e antropológicas que se manifestam.
O próprio conceito da responsabilidade social, que faz parte da história recente no Brasil, já evoluiu: “A fase inicial da sustentabilidade, em que o importante era colocá-la na agenda do setor empresarial, está esgotada. A tendência agora é a da verifi cação”, afi rma, em entrevista nesta edição, Fabio Feldmann, ex-deputado federal e nome de referência na história do movimento ambiental brasileiro e internacional. Em resumo, fazer negócios tornou-se bem mais complexo, sofisticado e dinâmico que tempos atrás.
Agendas positiva e negativa
Há um fator fundamental que diferencia a Natura dos casos Vale e Aracruz, na visão de Fernando Mathias, advogado do Instituto Socioambiental (ISA). Segundo ele, a Natura tem todo interesse de ordem comercial e institucional em se relacionar com as comunidades, pois isso integra o conceito da própria empresa: é nas comunidades onde ela busca inspiração para seus produtos e acesso à matéria-prima. O bom relacionamento com essas partes interessadas, portanto, funciona como uma estratégia de operação, de marketing e de agregação de valor. Já nos casos da Aracruz e da Vale, diz Mathias, as comunidades não estão diretamente relacionadas aos produtos que vendem — celulose de eucalipto e minério de ferro. “Ao contrário, são partes a ser indenizadas e compensadas, por pressão pública ou judicial”, diz.
Enquanto na Natura as comunidades são vistas como uma agenda positiva, na Aracruz e na Vale constituem uma agenda negativa”, afirma Mathias. Isso explicaria a forma ativa como a Natura tem buscado—e conseguido—o diálogo e o entendimento com as partes interessadas.
Essa diferença ocorre também em relação aos consumidores. Especialmente no caso da Vale, o consumidor final faz pouca relação entre o produto fabricado com o minério de ferro e a origem da matéria-prima. Na cadeia de papel e celulose, a “proximidade” entre a matéria-prima e o produto final é um pouco maior. Mas, na Natura, trata-se de uma relação muito mais próxima.
Há ainda outra diferença de fundo. As experiências da Vale e da Aracruz carregam no bojo centenas de anos de uma tensa relação entre empresas e povos indígenas no Brasil. “Historicamente, é um relacionamento que nunca deu certo. Foi sob o setor privado, com o beneplácito do Estado, que os índios perderam suas terras”, afi rma Mércio Pereira Gomes, presidente da Funai.
O que não quer dizer que o entendimento seja impossível, ressalta Marcio Santilli, coordenador do ISA, ex-deputado federal e ex-presidente da Funai. Ele cita como uma gestão bem-sucedida de crise a vivida entre a Eletronorte e os índios waimiri atroari, por conta do alagamento de terras indígenas na construção da hidrelétrica de Balbina, na divisa do Amazonas com Roraima.
Maristela Bernardo, socióloga e presidente do Conselho Diretor do Instituto Internacional de Educação do Brasil (IEB), afirma que um primeiro passo para gerenciar crises entre o setor privado e as comunidades tradicionais — essencial para entender as possibilidades de sinergia entre as partes — é reconhecer a profunda diferença de interesses e valores dos dois lados.
“Essa diferença pode ser constatada na forma como cada um vê os recursos naturais. Para as empresas, por mais que seus dirigentes sejam sensíveis ao temário ambientalista ou que elas mesmas tenham formalmente entre seus objetivos contribuir para o ‘desenvolvimento sustentável’, seu olhar último para o ecossistema é aquele que o vê como insumo ou como território estratégico para sua realização no mercado”, diz Maristela. “E, portanto, o seu olhar para as populações que nele vivem também será para um potencial ‘inimigo’ a ser vencido, aliciado ou mantido sob controle”, conclui.
Diferentes projetos existenciais
Já para as populações tradicionais, o modo de vida se confunde com a existência do ecossistema. Assim, explica Maristela, quando elas estão em negociação com a empresa, além do evidente interesse material na obtenção de renda, está em jogo principalmente a defesa de um modo de vida, de uma cultura, de uma visão de mundo que se funde com o ecossistema.
“Estão em confronto diferentes projetos existenciais”, resume. Segundo ela, não é incomum os negociadores das empresas manifestarem irritação diante do que consideram a defesa de um estilo de vida “atrasado” por parte das comunidades, arrogando-se o direito de julgar, com base em seus próprios valores, o que é bom para elas.
Surge, então, um delicado paradoxo. Cada um dos lados precisa enxergar o outro como um igual… mas diferente. Igual na escala de direitos, e diferente no modo de vida e na visão de mundo.
A diferença do poderio econômico entre as partes é brutal— e facilmente pode resvalar para uma demonstração de força das empresas na busca da intimidação ou do aliciamento ao qual se refere Maristela.
Mas nem por isso é possível passar uma régua entre o bem e o mal, a vítima e o algoz. A atitude das empresas hoje é o resultado do que a sociedade brasileira — com todas as suas partes — produziu durante mais de 500 anos, durante épocas obscuras de colonização, exploração e ditaduras.
Os europeus que aqui chegaram, mesmo descobrindo que não estavam na Índia, continuaram chamando os habitantes locais de índios, “ignorando propositalmente as diferenças lingüístico-culturais”, como assinala um texto de autoria da Funai. “Era mais fácil tratar os nativos de forma homogênea, já que o objetivo era um só: o domínio político, econômico e religioso”.
Se as empresas terão capacidade de lidar com as atuais crises de relacionamento, é outra história, no sentido literal da expressão. Existe, de fato, uma outra história a ser trilhada, que começa na globalização e pode desembocar na construção de uma verdadeira aldeia global.
Até porque, como diz Maristela, as populações tradicionais, embora pouco letradas e sem poderio econômico, lidam com valores nacionais, do planeta e da humanidade. “Está aí potencialmente um grande poder político que não raro surpreende as empresas e as coloca em xeque”.
Entre as três empresas procuradas, a Companhia Vale do Rio Doce não atendeu a reportagem. Por meio de sua diretoria de comunicação, recusou-se a falar sobre a questão dos índios xikrin. Respondeu que esse é um caso de polícia e qualifi cou a pauta como “um ponto fora da curva”. Afirmou, ainda, que a empresa estaria disponível para falar sobre projetos de responsabilidade social — dos quais a questão com os xikrin, no entender da empresa, não faz parte.