O brasileiro já se dá conta da crise ambiental que o cerca, mas a maioria muda pouco seu modo de agir, influenciada por uma mídia que estimula o consumo e não questiona as forças e culturas instituídas
Por Amália Safatle
Alianças de fibra de coco selaram o “primeiro casamento sustentável do mundo”, segundo press releases. Cinco assessorias de imprensa trabalharam para que a cerimônia, no dia 8 de abril, em São Paulo, se transformasse em um acontecimento midiático.
A notícia era, de fato, saborosa pela originalidade. Um casamento com o menor impacto socioambiental possível: vestido de noiva de garrafa pet reciclada, tiara para o cabelo confeccionada por presidiárias, pratinhos e copos biodegradáveis, cabelo e maquiagem feitos por jovens assistidos por um projeto social, metrô e triciclo substituindo a tradicional limusine, emissões de carbono neutralizadas pelo plantio de árvores. E o evento, no Parque do Trianon, parecia ter mais jornalistas e fotógrafos do que convidados das famílias.
Disse a noiva, Sabrina Campos, que o intuito era mostrar ao filho de 5 anos que é possível viver de forma diferente, “sem maltratar o planeta”. A atitude louvável de Sabrina ficou registrada – vai virar até documentário –, mas, com a chuvarada que caiu no dia do casamento, o que se viu foi um batalhão de jornalistas e curiosos com capas de plástico que eram distribuídas gratuitamente no local.
Curiosidades como essa fazem o tema ambiental se disseminar pelos canais de comunicação. Na outra ponta, uma cobertura jornalística tem tratado a questão de forma apocalíptica. No Rio de Janeiro, psicólogos têm alertado para o sentimento de medo nas crianças em relação ao aquecimento global e à falta d’água, conforme reportagem publicada em O Estado de S. Paulo.
O Fórum Brasileiro de Mudanças Climáticas chegou a preparar livros paradidáticos orientando os professores a não passar uma visão catastrófi ca para os estudantes, pois as novas gerações terão muito a fazer para enfrentar a crise e não podem fi car paralisadas pelo temor (leia mais sobre Ecoansiedade na Coluna desta edição). De forma festiva ou apocalíptica, a tal crise está no noticiário, nas escolas, nos comentários do motorista de táxi, no bate-papo das madames no clube e no dos contínuos na fi la do banco. O brasileiro tem sentido na pele o calor fora do normal e as intempéries climáticas – e já faz uma mínima ligação entre esse desconforto e o aquecimento global. Nas ruas e favelas, a falta d’água, o esgoto a céu aberto, as enchentes e os deslizamentos estabelecem a conexão direta entre as condições da natureza e o dia-a-dia do cidadão, ainda que ele não chame isso de “meio ambiente”.
Mas, a partir dessa constatação, o que o brasileiro tem praticado no seu dia-a-dia? Será que enxerga as relações de causa e efeito em suas práticas de consumo?
Para Hélio Mattar, diretor-presidente do Instituto Akatu, não deve chegar a 0,01 o percentual de brasileiros que são consumidores conscientes à risca. Mas chega a 5% a fatia da população que adota um conjunto signifi cativo de hábitos amigáveis ao ambiente, ainda que muitos deles possam ter motivações puramente econômicas, do tipo desligar a luz em ambientes desocupados ou usar os dois lados de uma folha de papel. É o que mostrou recente pesquisa do instituto, realizada pela Market Analysis.
A pesquisa diagnosticou que o brasileiro está em transi- ção entre as duas primeiras fases de um processo evolutivo, que o estudo convencionou dividir em cinco etapas.
Na primeira etapa, o público tem um primeiro contato com o tema e ainda é muito influenciado pela forma como a mídia o divulga. Assim, economiza água e recicla o lixo porque algumas campanhas incentivam, mas, sem o estímulo, volta aos hábitos originais. Na segunda fase, o público se familiariza com o assunto e começa a se identificar com preferências e orientações, mas ainda há uma distância entre os valores ambientais que defende e o que pratica. Nas três demais etapas, o fenômeno vai se consolidando e as pessoas adotam posturas conscientes e coerentes com os valores em que acreditam.
Fabián Echegaray, responsável pela pesquisa na Market Analysis, usou no estudo sistemas de valores e crenças que compõem os diversos perfis do brasileiro. Um deles é o ambientalismo, em que se prioriza a defesa do ambiente e o reequilíbrio entre natureza e intervenção humana. Outro é o materialismo, em que se enfatiza a acumulação incessante de bens materiais e a busca de autoproteção, por meio do acesso a alimentos, saúde e segurança. Já no pós-materialismo, busca-se o sentimento de pertença social, a realização pessoal e o reconhecimento individual. A simplicidade voluntária vai além: persegue o bem-estar por meio da vida simples, anti-hedonista, antimaterialista e auto-suficiente.
TRAÇOS MISTURADOS
Segundo Echegaray, de modo geral o brasileiro aspira a simplicidade, mas sua realidade ainda é orientada pelos valores materialistas e pela idéia de que a identidade se forma pela posse de bens. Assim como a maioria da população brasileira, os personagens entrevistados nesta reportagem apresentam um mix desses sistemas de valores, mas em cada caso há traços mais nítidos que outros. Nos modos de vida e nas visões de mundo de Fátima e de Lique, por exemplo, o materialismo e o pós-materialismo são perceptíveis. Hiroshi mostra-se um ambientalista com motivações espirituais, enquanto Karine e Maria adotam a simplicidade voluntária – ainda que Maria viva restrições materiais. Mattar, do Akatu, reconhece que na pesquisa, embora feita de modo a cruzar as informações e detectar incoerências, as pessoas tendem a responder que são mais conscientes do que na realidade. “Só isso é um indicador de evolução de consciência”, argumenta, pois mostra que as pessoas, mesmo que não pratiquem, aplaudem o “bom” comportamento.
FOI MAL
A reportagem visitou várias comunidades no site de relacionamento Orkut – há centenas delas – como “Consumistas mesmo”, “Consumistas forever”, “Dinheiro traz felicidade, sim”, “Ainda compro uma Ferrari”, e pediu entrevistas sobre comportamento e consumo, mas ninguém quis se pronunciar. A reportagem também flagrou alguns desperdícios. Em Artur Nogueira, interior de São Paulo, uma senhora que diariamente “varre” as folhas da calçada com a mangueira – a prática é uma espécie de “esporte municipal”–, informada de que se estava apurando uma matéria sobre consumo de água, afirmou rapidamente que “não queria saber nada disso”.
Em Cotia (SP), uma sorveteria por quilo com o simpático nome de Sabiá mantém, há anos, a água de meia dúzia de torneiras escorrendo sobre os pegadores de sorvete. Há cerca de dez anos, um cliente interpelou a proprietária, que afirmou: “Minha água é de poço, uso quanto quiser. E a Sabesp desperdiça muito também”. Interpelada no fim de abril, a dona disse que não podia manter as colheres de sorvete sujas e que não tinha tempo para entrevista. Limitou-se a dizer que instalou sensores que acionam as torneiras. Mas como o movimento é intenso, as torneiras são acionadas permanentemente.
Se hoje esses comportamentos “pegam mal” e começam a ser motivo de vergonha, o discurso do desenvolvimento sustentável tem sido cada vez mais incorporado pelas pessoas e empresas.
Para entender o que há por trás do discurso do desenvolvimento sustentável, Eda Tassara, coordenadora do Departamento de Psicologia Social na faculdade de Psicologia da USP, divide o comportamento da sociedade em relação ao meio ambiente em dois tipos básicos. Um faz a crítica do desenvolvimento e tenta modificar seus processos. O outro não faz a crítica, apenas busca aperfeiçoá-lo e busca tecnologias que tornem os produtos menos impactantes, tornando-o “sustentável”.
CONTRADIÇÃO EM TERMOS
Para o professor do curso de Gestão Ambiental da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (USP Zona Leste), Sergio Pacca, termos como “consumo sustentável” e “desenvolvimento sustentável” caem em contradição. “A sustentabilidade é uma questão simples que remete para a taxa de uso do recurso e o estoque disponível, e para a capacidade do ambiente de assimilar a poluição. Existem fatores tecnológicos, regulatórios e econômicos que afetam a sustentabilidade, mas não podemos fazer mágica!”, diz.
Segundo Eda, esse tipo de visão compartilhada por Pacca é contra-hegemônica: critica a valorização do consumo e do sistema competitivo. Entretato, seus atores não estão organizados o suficiente para transformar o sistema. “Essas forças emergentes não constituíram hegemonia, mas podem vir a constituir um dia, porque nenhuma força dominante consegue se segurar para sempre, à medida que os espaços de locução propostos por (Jürgen) Habermas (filósofo alemão) se tornem democráticos”, diz. Para isso, é preciso uma imprensa independente, que não se curve aos interesses hegemô- nicos e se coloque como esse espaço livre.
Desde o boom dos relatórios do Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática (IPCC), tem sido freqüente a publicação de revistas e jornais abordando os negócios verdes e as corporações verdes, em edições verdes – o verde servindo apenas como adjetivo de um processo que raramente ou nunca foi questionado por esses mesmos veículos.
É dessa forma que o conceito de sustentabilidade tem chegado ao cidadão e ao consumidor: como adjetivação, e não de forma substantiva. Uma discussão que envolve a neutralização de carbono é exatamente esta: levará ao questionamento de processos ou apenas reforçará o atual modus operandi do sistema hegemônico citado por Eda? (leia a continuidaddesse debate em Artigo nesta edição)
A Associação Brasileira de Anunciantes (ABA), que reúne grandes corporações, neste ano escolheu a sustentabilidade como tema na homenagem ao Dia do Consumidor, 15 de março, e elegeu o tema “Consumo Responsável” como mote de sua campanha.
“É um assunto que veio muito à tona. Uma oportunidade que veio a calhar”, diz Sílvia Pereira, presidente do comitê de atendimento ao consumidor da ABA. Segundo ela, não se trata de modismo. “O discurso da sustentabilidade que fica só na fachada não se mantém no tempo. Tem que falar e praticar”, afirma.
Isleide Fontenelle, professora da FGV e especialista em marketing, contata que as empresas têm buscado se alinhar ao tema da sustentabilidade, mas isso ainda estaria restrito ao campo da imagem, não da ação.
Autora do livro O Nome da Marca: McDonald’s, Fetichismo e Cultura Descartável, cita o exemplo da rede de lanchonetes que na década de 80 foi atacada por ambientalistas por usar embalagens de polipropileno. Em resposta, a empresa lançou as embalagens em papel e buscou uma autopromoção nisso.
“Foi um comportamento reativo que a empresa ‘vendeu’ como proativo. Muito do que o McDonald’s é hoje se deve ao uso dos descartáveis e ao fato de ter abolido tudo o que era lavável e reaproveitável”, diz.
CEREAIS GOELA ABAIXO
Para Eda Tassara, “a grande luta hoje é pela construção da democracia na vida social, que aumenta a probabilidade de as pessoas perceberem os fundamentos do seu próprio comportamento e começar a escolher por conta própria”.
Nessa linha, Isleide cita a historiadora Susan Strasser para mostrar que muitas escolhas não partem do cidadão, e sim de um sistema econômico que se formou no último século. “O consumo foi construído”, diz Isleide. Para dar as bases à nascente indústria americana, Susan relata que foi preciso “educar” o cidadão a comprar, por exemplo, a aveia Oetker em caixas, e não mais a granel, como sempre comprava. “Criou-se também a ‘necessidade’ de consumir cereais toda manhã”, conta Isleide.
O mesmo se deu com as roupas, que antes eram feitas à máquina e movimentavam uma economia local e descentralizada, formada por costureiras e alfaiates. Houve todo um trabalho de marketing, com anúncios publicitários, para atingir principalmente o jovem, mostrando que o moderno era usar roupas industrializadas.
“O consumidor foi inventado, produzido”, diz Isleide. Por isso é tão complicado modificar uma estrutura econômica que levou tanto tempo para ser construída – e culmina, nos EUA, em uma sociedade na qual 45% da venda de automóveis são os SUV, os esportivos beberrões, que sintetizam o way-of-life aspirado por países como o Brasil. Mesmo minimamente informado sobre o aquecimento global e as altas emissões de carbono do carro, o comprador de um SUV diz que está buscando segurança contra acidentes, perigos e imprevistos das ruas. Parece sempre haver um argumento de plantão para alimentar as vendas.
Para o ex-deputado federal Fabio Feldmann, os ambientalistas precisam usar as mesmas armas do marketing para conquistar seus objetivos. “O comportamento e o consumo são ao mesmo tempo a raiz do problema e da solução”, diz. “É preciso mostrar, por exemplo, que o desejável é ter um carro eficiente, mais limpo, e não um carrão”, defende.
Assim, diz Mattar, o consumo consciente – que para Isleide é um paradoxo, pois o marketing é alimentado pelo inconsciente, pela emoção e subjetividade, não pela consciência – usaria o mesmo arsenal do marketing tradicional. Faria com que o consumidor se emocionasse com a temática socioambiental, influenciando seu comportamento.
A humanidade, durante milênios, desenvolveu uma cultura que a agora a coloca em xeque, diante de uma natureza que hoje claramente mostra seus limites. Mais que alterações de comportamento, será preciso criar uma novíssima cultura, desta vez não com objetivo de buscar a diferenciação, e sim a consonância com a natureza