A modificação genética é um excelente mote para perguntar para que e a quem serve a ciência. E provocá-la a interagir com aspectos sociológicos e éticos
Por Amália Safatle
Coloque numa sala diversas pessoas com um conhecimento mínimo sobre transgênicos e levante o assunto. Estão aí os ingredientes básicos da receita para uma acalorada discussão. Poucos temas despertam tanta controvérsia como este, talvez por ser capaz de unir, em um só DNA, aspectos políticos, ambientais, científicos, econômicos, sociais, filosóficos, jurídicos e – não menos importante – éticos.
Por essa característica, a questão dos transgênicos é um excelente mote para discutir o papel da ciência e dos avanços tecnológicos: afinal, servem para que e para quem? Trata-se de um provocativo exercício proposto à ciência, para que interaja com as várias esferas da sociedade. A busca do conhecimento científico deve ou não ser neutra em suas implicações? (leia mais em artigo desta edição)
No caso dos transgênicos, a “transversalização da ciência” por esses outros campos põe em xeque o seu princípio de neutralidade e mostra um fecundo debate a ser travado, necessidade evidenciada pelo constante embate entre os contra e os pró-transgênicos.
A discussão está longe de se esgotar, ainda que alguns governos, como o brasileiro – que assumiu uma política aberta ao desenvolvimento biotecnológico -, já tenham determinado as formas de como essa tecnologia será aplicada, sem a concordância de diversas parcelas da sociedade. Dessa forma, elas acabam recorrendo a medidas judiciais para marcar posição.
O mais recente embate envolveu o milho geneticamente modificado pela Bayer CropScience, cuja liberação foi suspensa pela Justiça, a partir de ação pública movida por entidades da sociedade civil. Caso o milho seja aprovado para comercialização, a participação de transgênicos na dieta brasileira deverá ser muito maior, já que é um alimento largamente consumido no País.
Recorte e cole
Em uma definição simplificada, organismos transgênicos são aqueles que tiveram seu genoma modificado em laboratório a partir da introdução de uma seqüência de genes de outras espécies. O DNA é recortado e colado com a ajuda de enzimas. Graças a essa engenharia de ponta, plantas transgênicas sofrem profunda mudança, ganhando características sob medida: podem se tornar resistentes a pragas e a herbicidas, como o milho Bt e a soja Roundup Ready; mais produtivas, como a cana-de-açúcar projetada pela Votorantim Novos Negócios; e mais nutritivas, como o arroz dourado. Essas modificações seriam impensáveis pelos meios naturais de reprodução das plantas ou extremamente lentas e caras através do melhoramento genético.
Com tantos benefícios aparentes, é de se perguntar o porquê da controvérsia. Na visão dos críticos, como movimentos ambientalistas e sociais, produtores orgânicos e agroecológicos, entidades em defesa do consumidor e uma ala de pesquisadores acadêmicos, a produção e a comercialização dos transgênicos embutem um conflito essencialmente político, pois beneficiariam “uma minoria dominadora em detrimento da maioria dominada”.
Para eles, saem ganhando poucas empresas internacionais, que detêm as patentes, enquanto se desconhecem os efeitos da manipulação genética sobre a saúde humana e o meio ambiente a longo prazo, por falta de pesquisas abrangentes e independentes.
Além disso, a produção de transgênicos sem o devido cuidado levaria à contaminação de culturas convencionais e orgânicas, inviabilizando-as e impossibilitando a chamada coexistência de diversos tipos de culturas – transgênica, convencional, orgânica – que atendam a todos os nichos de consumidor. Citam o exemplo da contaminação do milho na Espanha . Ao contrário da soja, o milho sofre polinização cruzada. Seu pólen pode ser levado pelo vento a grandes distâncias, podendo contaminar plantios de milho orgânico. Seria, portanto, uma tecnologia invasiva, e que reforça um paradigma já existente, o do agronegócio que concentra a renda, desloca o homem do campo e traz grandes impactos ambientais.
Outra crítica: o direito do consumidor de saber o que está comprando não tem sido respeitado no Brasil, pois as empresas não concordam com o tipo de rotulagem definido por decreto (um “T” inserido em um triângulo amarelo, considerado símbolo de perigo, quando já foi aprovado para consumo) e por isso têm descumprido a lei.
Contra-argumentos
Do outro lado, defensores dos transgênicos garantem que há estudos suficientes provando a segurança para o ambiente e a saúde humana, além do que há anos são consumidos largamente em países como os EUA. (Críticos rebatem dizendo que o DDT também foi consumido durante 30, 40 anos, até que fosse banido).
Afirmam que a coexistência de plantios é possível, desde que tomados os devidos cuidados pelos agricultores para evitar a contaminação, que há mercados para todos os tipos de cultura e que alimentos orgânicos, com possibilidade de causar intoxicações alimentares por bactérias, representam alto risco de saúde pública e nem por isso sofrem “perseguição”.
Defendem que o Brasil só tem a ganhar competitividade internacional com o desenvolvimento biotecnológico, e não buscá-lo fará o País perder o bonde da história. “Foi o que aconteceu com a reserva de mercado de informática”, compara Alda Lerayer, diretora-executiva do Conselho de Informações sobre Biotecnologia, que reúne empresas do setor. Segundo ela, medidas judiciais, como a liminar que recentemente revogou a liberação do milho da Bayer, o Liberty Link, por falta de Estudo de Impacto Ambiental, criam insegurança institucional, atrasando as pesquisas e impedindo inclusive que empresas brasileiras, como a Embrapa , a Votorantim Novos Negócios e o Centro de Tecnologia Canavieira, desenvolvam tecnologia nacional.
Além disso, dizem que o agricultor tem direito de escolher plantar transgênicos – e a crescente adesão mostra que tem sido vantajoso para ele. Argumentam que há ganhos ambientais também, pois se torna possível produzir mais em menos espaço para uma população mundial em crescimento. “Você pode ser amigo da biotecnologia e produzir mais na mesma área, o que será necessário para fazer frente à necessidade de produzir o dobro para alimentar a população que só deve se estabilizar em 2050”, afirma Fernando Reinach, diretor-executivo da Votorantim Novos Negócios. Com os transgênicos, se reduziriam a pressão sobre desmatamento e a conseqüente perda de biodiversidade, além do que se usaria quantidade menor de agrotóxicos. Isso é questionado pelos críticos, pois começam a aparecer casos de resistência a herbicida, o que requer a aplicação de maiores quantidades e outras variedades de veneno. “Com
o tempo, as pragas desenvolvem resistência. Por isso, para que os transgênicos continuem vantajosos, periodicamente a indústria terá de lançar novas gerações de produtos, como acontece com os antibióticos”, explica Reinach.
Para cada argumento, há um contra-argumento, e preencheríamos páginas e páginas listando prós e contras. Há, contudo, uma questão anterior a todas essas.
Cisão preocupante
No Departamento de Filosofia da USP, o professor titular Pablo Rubén Mariconda, o pesquisador Mauricio de Carvalho Ramos e o professor visitante Hugh Lacey, senior reasearch scholar do Swarthmore College (Pensilvânia, Estados Unidos), são alguns estudiosos da Filosofia da Ciência que têm abordado a questão dos transgênicos, buscando interligar o conhecimento científico e valores éticos.
Em suas avaliações, a abordagem dada aos transgênicos no Brasil evidencia uma preocupante cisão entre ciência e sociedade. “Nunca se consideram os mecanismos sociais relacionados, mas somente os físicos e bioquímicos. Somos contra porque isso reduz o valor da ciência”, afirmam. “Os defensores de transgênicos minimizam a existência de risco e afirmam que não há alternativas para atender a demanda de alimentos em razão do crescimento populacional. Os riscos existem, mas podem ser administrados à luz de regulamentos. Entre eles estão o de maior desorganização social do campo, que precisam ser considerados”, afirma Mariconda. Mas a separação entre a busca do conhecimento científico e a preocupação social tem sido evidente no Brasil. As afirmações ouvidas nesta reportagem mostram que o embate tem sido feito sobre a seguinte base: para os grupos pró-transgênicos, os seus críticos são desinformados, não dominam os meandros da biotecnologia e estão cegados pelo obscurantismo ideológico. E, para os críticos, os defensores dos transgênicos possuem uma visão tecnicista e vendida a interesses políticos e econômicos.
Quem estará com a razão? Talvez os que aliem a ciência à visão do bem-estar social. E os que defendem a busca cuidadosa de alternativas para esse bem-estar, como reza um dos princípios científicos, o da Precaução, ao qual
o Brasil aderiu ao assinar o Protocolo de Cartagena, sobre biossegurança. O princípio recomenda que, antes de implementar as inovações tecnocientíficas, seja feita pesquisa detalhada de largo alcance sobre seus riscos potenciais. Segundo Lacey, essa recomendação tem sido acusada de representar uma ameaça à autonomia da ciência.
“O princípio é acusado de anticiência, quando na verdade serve muito bem aos valores dela, pois pede que haja mais e não menos pesquisa”, afirma Lacey. E a pesquisa para avanços tecnológicos não necessariamente precisa se dar no campo da transgenia. “A agroecologia, embora seja vista como romântica e pouco científica, pode embutir muito conhecimento. Mas, para isso, é preciso que haja financiamento a esse tipo de pesquisa, que não tem existido”, diz.
Mariconda observa que, nos primórdios do desenvolvimento científico, o Estado, na França e na Inglaterra, era
o incentivador da pesquisa, em busca de fortalecimento geopolítico e geração de riqueza. No século XIX, a ciência passou a ser desenvolvida principalmente nas universidades. “Até que na Segunda Guerra Mundial – e o Projeto Manhattan (para construção da bomba atômica) é um divisor de águas – a indústria passou a exercer grande papel.” E assim o desenvolvimento da ciência vinculou-se fortemente à busca de lucros.
Não que os lucros sejam condenáveis, mas precisam ser pesados em relação ao desenvolvimento social. Na visão de Mariconda, a partir do século XVII, o Ocidente evoluiu enormemente no campo do conhecimento científico, mas não do ponto de vista moral. “Toda a crise ambiental que se manifesta hoje mostra a necessidade de pôr em questão se é isso mesmo
o que queremos. Defendo o uso da ciência vinculado ao desenvolvimento humano de que fala Amartya Sen”, diz o professor, que preside a Associação Filosófica Scientiae Studia.
Segundo Fernando Reinach, o Estado e a nobreza que sustentavam no passado o conhecimento científico perceberam que ele causava desenvolvimento econômico. “E depois perceberam que causava muito desenvolvimento econômico, do qualosocial deveria ser decorrente”, afirma. A biotecnologia, além de promover
o desenvolvimento da medicina, como remédios e insulina, contribui para a criação de uma grande oferta de alimentos baratos para alimentar todas as classes sociais em uma população crescente.
Mas, para Marijane Lisboa, professora de sociologia da PUC e membro do Conselho Deliberativo da Associação de Agricultura Orgânica, a idéia de que sempre será mais barato produzir externalizando-se os custos socioambientais será superada pela crise ecológica. E contesta certa apropriação do discurso social pelos defensores dos transgênicos. Segundo ela, os sociólogos são acusados de falar dos transgênicos sem conhecer a fundo a biotecnologia, mas os geneticistas falam dos aspectos sociais sem necessariamente conhecer a sociologia.
“Quando se usa o argumento de que a biotecnologia desenvolverá alimentos mais nutritivos, não acho ética a idéia de que vamos sustentar os pobres com uma ‘ração’ cheia de proteína especialmente adaptada a eles. Não é assim que se ataca o problema da pobreza e da exclusão social”, dispara. “Além disso, chegamos a 3 bilhões de pessoas no planeta praticando apenas a agricultura orgânica, com pouquíssimo conhecimento científico aplicado. Do ponto de vista de balanço energético, calculando-se os gastos para sua produção, é uma modalidade mais eficaz que a convencional e a transgênica, e ainda respeita a variedade e as tradições culinárias e fixa o homem no campo”, afirma.
Sobretudo técnico
Mas esse tipo de discussão tem ficado de fora das deliberações no Brasil. Conforme a segunda Lei de Biossegurança (11. 105/05), aprovada na Câmara e no Senado após dois anos de tramitação, foi definido que decisões relativas a transgênicos passariam a ser da competência de uma Comissão de cunho fundamentalmente técnico, formada na maioria por cientistas, a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio).
Compete à CTNBio, vinculada ao Ministério da Ciência e Tecnologia, definir, por maioria, quais atividades com organismos geneticamente modificados (OGMs) podem causar significativa degradação ambiental e conseqüentemente necessitam de licenciamento ambiental. A comissão tem poder deliberativo no tocante à segurança dos OGMs, enquanto o Conselho Nacional de Biossegurança (CNBS), composto de 11 ministros e chefiado pela Casa Civil, analisa a conveniência econômica da liberação.
Hoje os ministérios do Meio Ambiente e da Saúde, que colocam dúvidas sobre os riscos que os transgênicos podem acarretar para a natureza e o consumo humano, tinham maior poder decisório a respeito do tema, têm uma participação minoritária na comissão, que é composta de 27 membros. E os ministros integrantes do Conselho que têm dúvidas sobre os riscos e benefícios dos transgênicos também são minoria, observa Marijane Lisboa.
Seguindo o Princípio de Precaução, formou-se na Suíça um grupo internacional de cientistas de universidades públicas reunidos no projeto Genetic Modified Organisms – Environmental Risk Assessment Methodologies (GMOEra) . O objetivo é produzir estudos independentes sobre os riscos associados aos transgênicos e a busca de alternativas, com base em conhecimentos das ciências ambientais, da biotecnologia e da socioeconomia. O projeto foi apresentado à CTNBio por Marijane, mas, segundo ela, não encontrou receptividade. “Disseram que agora é tarde demais para essa discussão.”
Sem se sentir devidamente representados em um fórum eqüitativo, movimentos contrários aos transgênicos e órgãos vinculados a esses ministérios acabam recorrendo a medidas judiciais para ganhar voz.
Foi o que aconteceu no episódio do milho da Bayer, o Liberty Link. A CTNBio julgou desnecessário um estudo de impacto ambiental específico e o liberou para a comercialização em maio. A liberação foi suspensa pela Justiça em resposta à ação pública movida pelas organizações Terra de Direitos, Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), Assessoria e Serviços a Projetos em Agricultura Alternativa (ASPTA) e Associação Nacional dos Pequenos Agricultores (Anpa). Houve novo revés à liberação quando o Ibama e a Anvisa recorreram ao Conselho. A última informação até o fechamento desta edição era de que o Conselho havia pedido à comissão nova avaliação dos impactos.
Patricia Fukuma, da Fukuma Advogados e Consultores, que trabalha com biotecnologia desde 1998, quando foi aprovada a soja Roundup Ready da Monsanto, considera que houve tempo suficiente para que a questão dos transgênicos fosse previamente discutida na sociedade, e que esta se encontra devidamente representada na CTNBio.
“A primeira lei de biossegurança foi discutida durante cinco anos e a segunda, durante dois anos.” Tanto para Patricia como para Alda Lerayer, a CTNBio está plenamente capacitada a definir as regras de aplicação da biotecnologia no Brasil, ao mesmo tempo que o País tem pressa em desenvolver tecnologia e mercados.
“O País ficou paralisado com a liminar contra o milho. Quanto mais se criam obstáculos para a implementação da lei, mais se dá margem à clandestinidade”, diz Patricia. Segundo ela, o agricultor pode plantar mesmo com a proibição, o que acabará gerando um fato consumado, como ocorreu com a soja. “A CTNBio tem profissionais competentíssimos, com 18 membros doutores, capazes de avaliar os riscos. Mas contra a ideologia não há argumentos racionais”, diz a advogada.
Para Alda, os movimentos contra a biotecnologia, “ligados à sociologia, à filosofia, à biodinâmica, têm pouca informação sobre biologia e genética”. “Em 1925, o lançamento do milho híbrido provocou a mesma discussão. Disseram que cruzamentos esquisitos poderiam gerar mutação em seres humanos e não haveria mais diversidade de milho. Na época queimaram plantações”, exemplifica.
Segundo ela, enquanto as liminares atrasam o desenvolvimento biotecnológico brasileiro, há pesquisas internacionais indo além dos transgênicos. Não será mais necessário transferir genes, e sim modificar a sua estrutura. Essa vanguarda já existe e se chama modelagem gênica”, diz.
O que abre mais um enorme de campo de discussão.
Procura-se informação: consumidor e investidor estão no escuro
Uma pergunta sobre transgênicos poderá constar do próximo questionário a ser encaminhado às empresas de capital aberto candidatas a participar da carteira do Índice de Sustentabilidade Empresarial (ISE) da Bovespa. A demanda para que houvesse tal questionamento partiu de uma consulta pública do ISE, e foi sugerida pela médica oncologista Nise Yamaguchi, diretora-presidente do Instituto Avanços em Medicina e pesquisadora do Hospital das Clínicas. Segundo o consultor Aron Belinky, responsável pela dimensão “natureza do produto” do ISE, o questionário não vai entrar no mérito se transgênicos são ruins ou não. E sim se as empresas informam seus consumidores sobre a eventual presença de ingredientes conforme determinação legal, tais como organismos geneticamente modificados.
O Brasil possui uma lei de rotulagem (Decreto número 4.680/03) segundo a qual as empresas devem informar seus consumidores caso o produto contenha no mínimo 1% de OGMs. O rótulo definido é um “T” inserido em um triângulo amarelo. Mas não se encontram nas prateleiras nenhum produto com esse símbolo. Ou não há transgênicos na composição de nenhum deles ou há empresas descumprindo a lei. Segundo a listagem do Greenpeace, de um total de 109 empresas consultadas pela organização, apenas 68 garantem que não utilizam OGM. As demais estão na “lista vermelha”.
Questionada pela reportagem, a Associação Brasileira das Indústrias da Alimentação (Abia), que reúne cerca de 200 empresas, respondeu que não é contra a rotulagem e, sim, contra “imperfeições do decreto, que acabam desinformando o consumidor”. Entre elas, símbolo inadequado, com conotação de perigo, e a necessidade de informar se os animais foram alimentados com ração transgênica. Por discordar da lei, a Abia não a cumpre. Ao mesmo tempo, afirma, por meio de sua assessoria de imprensa, que “o não-cumprimento fere não só princípios de responsabilidade social, como também princípios legais vigentes, o que sempre é repelido pela associação”.