Por Márcio Souza
Certamente a Amazônia, como prova a sua própria história, é uma região acostumada com a modernidade. Nos 500 anos de presença da cultura européia, experimentou os métodos mais modernos de exploração. Cada uma das fases da história regional mostra a modernidade das experiências que foram se sucedendo: agricultura capitalista de pequenos proprietários em 1760 com o Marquês de Pombal, economia extrativista exportadora em 1890 com a borracha, e estrutura industrial eletroeletrônica em 1970 com a Zona Franca de Manaus. Os habitantes da Amazônia, portanto, não se assustam facilmente com problemas de modernidade, o que vem provar que a região é bem mais surpreendente, complexa e senhora de um perfi l civilizatório que o falatório internacional faz crer. Não por outro motivo, a Amazônia continua um conveniente mistério para os brasileiros.
A questão da região amazônica é sem dúvida fundamental para entendermos bem a diversidade do Brasil. Mas nem sempre foi possível o acesso ao passado da grande planície. Por isso, chamo a atenção para o trabalho de reestruturação dos arquivos públicos brasileiros. Como o que foi feito em Belém, permitindo que os pesquisadores tivessem acesso a informações até então inéditas, o que foi muito importante para o estudo da formação do Brasil e da integração da Amazônia ao Estado brasileiro.
O Brasil é fruto de um conjunto de paradoxos, entre pobreza e riqueza, modernidade e arcaísmo. É necessário analisá-los para entender a formação do País. É preciso levar em conta também as particularidades do modelo colonial português.
Não podemos esquecer que, na origem, a Amazônia não pertencia ao Brasil. Na verdade, os portugueses tinham duas colônias na América do Sul, uma descoberta por Cabral em 1500, governada pelo vice-rei do Brasil, a outra, o Grão-Pará e Rio Negro, descoberto por Vicente Yañes Pinzón em 1498, logo após terceira viagem de Colombo à América, quando batizou o Rio Amazonas de Mar Dulce, mas efetivamente ocupada pelos portugueses a partir de 1630. Esses dois Estados se desenvolveram distintamente até 1823, data em que o Império do Brasil começou a anexar o seu vizinho. A violência era naquela altura a única via possível, tão diferentes eram as estratégias, a cultura e a economia dessas duas colônias. A Amazônia então não era uma fronteira: é um conceito que foi inventando pelo Império e retomado pela República.
Passado de Autonomia
No Grão-Pará e Rio Negro, a economia era fundada na produção manufaturada, a partir das transformações do látex. Era uma indústria florescente, produzindo objetos de fama mundial, como sapatos e galochas, capas impermeáveis, molas e instrumentos cirúrgicos, destinados à exportação ou ao consumo interno. Baseava- se também na indústria naval e numa agricultura de pequenos proprietários.
O Marquês de Pombal nomeara seu próprio irmão para dirigir o país, com o intento de reter o processo de decadência do Império português, que dava mostras de ser incapaz de acompanhar o desenvolvimento capitalista. Nesse contexto, os escravos tinham uma importância menor do que nos outros lugares. O país desfruta, além disso, de uma cultura urbana bastante desenvolvida, com Belém, construída para ser a capital administrativa. Ou a sede da Capitania do Rio Negro, Barcelos, que conheceu um importante desenvolvimento antes de Manaus, e para a qual se recorrera ao arquiteto e urbanista de Bolonha, Antônio José Landi. Em compensação, a colônia Chamada Brasil dependia amplamente da agricultura e da agroindústria, tendo, portanto, uma grande proporção de mão-de-obra escrava.
Em meados do século XVIII, tanto o Grão-Pará quanto o Brasil conseguem criar uma forte classe de comerciantes, ligados à importação e exportação, senhores de grandes fortunas e bastante autônomos em relação à Metrópole. Mas enquanto os comerciantes do Rio de Janeiro deliberadamente optaram pela agricultura de trabalho intensivo, como o café, baseando-se no regime da escravidão, os empresários do Grão-Pará intensifi caram seus investimentos na indústria naval e nas primeiras fábricas de benefi ciamento de produtos extrativos, especialmente o tabaco e a castanha-do-pará. A anexação da Amazônia marcou o começo de um novo processo e provavelmente, aos olhos das elites do Rio de Janeiro, só poderia ser à força. Para as elites do Grão- Pará, o incidente das Cortes, liberais internamente, mas recolonizadoras para fora, e a intimidade com as idéias da Revolução Francesa adquirida na tomada e ocupação de Caiena, fez perceber que a via da República era mais adaptada à América que um regime monárquico.
Os ministros do jovem e impetuoso imperador brasileiro não podiam admitir tal coisa. E, entre 1823 a 1840, o que se vai ver é um processo de provocação deliberada, seguida por uma severa convulsão social e a conseqüente repressão. Se me permitem a comparação um tanto audaciosa, foi de certo modo como se o Sul tivesse ganhado a Guerra de Secessão nos Estados Unidos. Com a repressão, a Amazônia perdeu 40% dos seus habitantes. A anexação destruiu todos os focos de modernidade. Entre o Império e as oligarquias locais, nenhum diálogo era então possível.
Pragmatismo português
Se o Brasil é geralmente dado no exterior como um país de emoções, de irracionalidade, um país primitivo ou até folclórico, não podemos esquecer, no entanto, que ele herdou da colonização portuguesa uma grande capacidade de organização e de planejamento, assim como uma preocupação afi rmada com os detalhes. Os portugueses sempre fi xaram objetivos para si mesmos. Previam cada um de seus passos no continente latino-americano. Não consta na crônica da conquista a existência de portugueses em busca da fonte da juventude, tampouco puseram um pé na água para declarar, como fizeram os espanhóis, que se tinham apossado do Oceano Atlântico inteiro. Se o Império não tivesse tido que se haver com a Amazônia, ou, como disse José Honório Rodrigues, se não tivesse passado o tempo inteiro reprimindo revoltas populares, podemos estar certos de que o processo de expansão territorial do Brasil teria atingido as margens do Pacífi co. A Amazônia passou, portanto, a ser uma fronteira entre uma zona de cultura brasileira predominante e um subcontinente onde se fala francês, holandês, espanhol, português.
Imagem distorcida
Na realidade, a Amazônia foi reinventada pelo Brasil, que propôs para ela a sua própria imagem. Os moradores da Amazônia sempre se espantam ao ver que, talvez para melhor vendê-la e explorá-la, ainda apresentam sua região como habitada essencialmente por tribos indígenas, enquanto existem há muito tempo cidades, uma verdadeira vida urbana, e uma população erudita que teceu laços estreitos com a Europa desde o século XIX. Aliás, nisso residem as maiores possibilidades de resistência e de sobrevivência dessa região. Com efeito, os povos indígenas da Amazônia nada conseguirão se não se apoiarem nessa população urbana que é a única que se expressa nas eleições e exerce pressão sobre a cena política. É pelo jogo das forças democráticas que o problema da exploração econômica da Amazônia poderá encontrar uma solução. Portanto é preciso reforçar as estruturas políticas regionais. A Amazônia conta uma população de 20 milhões de pessoas, com 9 milhões de eleitores, o que não é pouca coisa.
Embora o Brasil se orgulhe de ter ‘absorvido’ a Amazônia, não aniquilou suas peculiaridades. Continua havendo uma cozinha, uma literatura, uma música da Amazônia. As trocas entre ambas as culturas são muitas, e isso é bom. A exploração da Amazônia pode esclarecer com proveito o projeto de modernidade do Brasil. As favelas, a má distribuição de renda e a desigualdade social decorrem menos da pobreza de certas regiões que obriga seus moradores a emigrar do que das opções políticas adotadas pelos grandes latifundiários e pelos donos das grandes empresas, ou seja, por aqueles que detêm o capital, os donos do império brasileiro.