Por Ignacy Sachs
João Meirelles Filho, paulista de nascença, poeta, cientista social formado na prestigiosa London School of Economics, militante ambiental, amazônida por eleição, apaixonado e angustiado pela pátria amazônica, brinda-nos com um livro excepcional tanto pela sinceridade e engajamento do autor quanto pela riqueza de informações e reflexões nele contidos. Trata-se de O Livro de Ouro da Amazônia (Ediouro, 2006, 5a edição, revista e ampliada).
Na mídia internacional, a Amazônia aparece essencialmente como um problema candente em função dos impactos avassaladores da destruição da sua floresta sobre o clima. De vez em quando, levantam-se na Europa vozes descabidas sugerindo sua transformação em uma mega-reserva natural, a exemplo da Antártida, como se ela não fosse habitada por mais de 20 milhões de amazônidas só na parte brasileira, que amanhã serão 30 ou mais milhões, a maioria vivendo em condições de grande miséria. Thiago de Mello, poeta local que prefaciou o livro, costuma dizer que a espécie mais ameaçada na Amazônia chama-se homem.
Porém há pouca reflexão sobre o extraordinário potencial da Amazônia de se transformar no foco de uma biocivilização futura, conquanto aprendamos a fazer bom uso de sua natureza e riquíssima biodiversidade. Ambas as vertentes estão presentes na obra de Meirelles.
Com dados abundantes, ele denuncia as onze bestas do apocalipse responsáveis pelo atraso da Amazônia, tais como a pecuária bovina extensiva, o plantio da soja, a produção do carvão vegetal a partir da floresta nativa, a exploração madeireira predatória, o modelo fundiário e a grilagem das terras, para mencionar as principais.
Entre 1993 e 2005, o rebanho bovino passou de 26,6 milhões para 63 milhões de cabeças, um salto impressionante com conseqüências devastadoras, dado o caráter extremamente extensivo dessa pecuária e a necessidade constante de seguir derrubando a floresta para criar novos pastos. E com resultados mais do que modestos no que diz respeito ao emprego: quando muito um emprego por mil hectares de pecuária tradicional, que o autor contrapõe aos 100 empregos que poderia gerar na mesma área a agricultura familiar ou os 500 empregos se adotadas as práticas da permacultura.
Meirelles é um entusiasta incondicional dessa modalidade de agroecologia, que ainda tem de provar sua eficiência nas condições do trópico úmido. Mas não resta dúvida de que a agroecologia adaptada às necessidades da agricultura familiar, os sistemas agrossilvipastoris e a aqüicultura para a qual os ecossistemas amazônicos oferecem condições favoráveis formam um elenco de soluções para o futuro da Amazônia rural, informado pelo conceito de desenvolvimento socialmente includente e ambientalmente sustentável.
Meirelles descreve numerosos exemplos bem-sucedidos de projetos em pequena escala que apontam a boa direção. E diz com razão que os 600 milhões de hectares já desmatados poderiam acomodar 1,2 milhão de famílias de agricultores em lotes de 50 hectares, com quatro quintos da área mantidos como reserva natural, proporcionando-lhes condições de vida razoáveis.
Milagre dos peixes
A aqüicultura tem um papel fundamental a desempenhar: “A imagem da aqüicultura na Amazônia é de 300 mil lagos pequenos. Lagos no fundo do quintal associados a sistemas altamente produtivos de permacultura, sem a necessidade de rações de fora” (págs. 330-31). Um hectare de aqüicultura produz de 1 a 10 toneladas de peixe ao ano, comparadas a 49 a 85 quilos de carne de pecuária, e oferece ocupação para uma família de três por hectare e não um emprego por mil hectares.
Entre as vocações para a Amazônia, Meirelles menciona o ecoturismo, citando a bela frase em que Darcy Ribeiro descreve a Amazônia como “o grande jardim terrenal que os homens do futuro desejarão ver, cheirar, sentir, admirar” (pág. 343). Tudo dependerá, no entanto, de quantos serão e como se deslocarão. O turismo de massa dificilmente se acomoda com o prefixo “eco”.
Em compensação, o autor tem razão em insistir na necessidade de uma mobilização maior da potencialidade Científica do Brasil para identificar as inúmeras oportunidades de aproveitamento da biodiversidade amazônica para produzir alimentos, bioenergia, fibras, materiais de construção, adubos verdes, fármacos e cosméticos, fazendo da Amazônia um dos berços da biocivilização do futuro, uma “terra de boa esperança”, no dizer do geógrafo tropicalista Pierre Gourou, e não um “triste trópico”.
Para tanto serão necessárias políticas públicas que se contraponham à destruição da Amazônia, corrigindo o que Meirelles considera o maior erro das políticas brasileiras dos últimos 40 anos, ou seja, a abertura da fronteira pioneira na Amazônia (pág. 353), que acabou beneficiando muito pouca gente – um universo de menos de 20 mil pessoas, segundo o autor.
No livro estão mencionados os seguintes instrumentos: o zoneamento econômico-ecológico nos moldes propostos por Bertha Becker, o imposto territorial local, um novo modelo fundiário e a formalização do uso sustentável das terras pelas populações nativas. É de esperar que sirvam para orquestrar a substituição das atividades destrutivas pela expansão sustentável da agroindústria, do manejo dos sistemas agroflorestais e da aqüicultura.
A batalha está longe de ser ganha. O boom dos biocombustíveis traz a conversão das pastagens no Sudeste em canaviais e, por tabela, empurra a pecuária extensiva para a Amazônia Legal, onde as terras são mais baratas. Por sua vez, as pastagens degradadas na Amazônia estão sendo aproveitadas para o plantio da soja. E a destruição da floresta prossegue. Esse ciclo predatório só cederá a medidas drásticas e imediatas.
Convém criar o quanto antes uma agência governamental de bioenergia que possa impor um zoneamento econômico-ecológico para valer, uma certificação socioambiental rigorosa de todos os biocombustíveis, até mesmo para o mercado interno, um conjunto de políticas de discriminação positiva voltadas aos agricultores familiares e um programa ambicioso de pesquisas no setor público para identificar sistemas de produção integrada de alimentos e energia adequados aos diferentes biomas do Brasil. E, assim, avançar na direção de bioenergias de segunda e terceira geração, com especial destaque para a valorização de várias espécies de palmeiras nativas da Amazônia.