A história da Amazônia, paraíso e inferno verde, está intimamente ligada à presença estrangeira e ao temor nacional de perda da soberania. Seu destino, mais do que nunca, depende dessa dialética
Por Flavia Pardini
Em uma cabeça, “onças, aranhas, macacos, araras, capivaras, coatis – uma enorme riqueza e variedade de vida selvagem em um mundo verde e úmido”. Em outra, “fogo, correntão, Caterpillar, biodiversidade perdida, mudança climática”. São imagens contemporâneas da mesma fl oresta, Amazônias forjadas por estrangeiros de diferentes pontos de vista. A primeira enunciada pela antropóloga Kay Milton, que pesquisa assuntos ambientais na Queen’s University, em Belfast, na Irlanda do Norte. A segunda, por John Carter, fazendeiro texano que vive na região do Xingu há 11 anos.
A Amazônia sempre fascinou os forasteiros, sejam de outros países ou do resto do Brasil, estes tão estrangeiros quanto os primeiros. Desde a mítica expedição comandada por Francisco de Orellana, em 1541, de Quito até o Atlântico, em que teriam sido avistadas índias guerreiras ao longo do rio, por isso batizado de Amazonas, a floresta é descrita como o paraíso ou o inferno, ambos insuportavelmente verdes.
Em Narrativa Pessoal das Viagens às Regiões Equinociais do Novo Continente, Alexander von Humboldt, naturalista que explorou a América Latina de 1799 a 1804, antecipa um tempo em que “cidades populosas, enriquecidas pelo comércio, e campos férteis cultivados pelas mãos de homens livres adornarão esses mesmos locais onde, no momento de minhas viagens, encontro apenas florestas impenetráveis e terras inundadas”.
Na trilha de Humboldt, uma série de naturalistas visitou a hiléia e contribuiu para deixar impressa, em livros e na mente de colonizadores e colonos, a idéia européia de uma civilização amazônica. “Em nenhum outro lugar a natureza e o clima são tão favoráveis ao trabalhador, e afi rmo sem medo que aqui a fl oresta original pode ser convertida em ricas pastagens, em campos cultivados, jardins e pomares contendo toda variedade de produtos, com metade do trabalho, e o que é mais importante, em menos de metade do tempo necessário em casa, embora lá tivéssemos campos limpos em vez de floresta para começar”, escreveu o britânico Alfred Russel Wallace em 1853 sobre a área hoje ocupada por São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas.
Antes dos naturalistas, a Amazônia já fazia parte da economia mundial, como lembra o sociólogo Stephen Bunker. Após a chegada dos portugueses, forneceu especiarias e óleos animais para os mercados europeus. Do fi nal do século XIX até 1910, garantiu a borracha para automóveis e outras máquinas que transformaram a indústria americana e européia. E, mais recentemente, passou a exportar minérios e metais que alimentam a moderna indústria mundial e as novas tecnologias. Talvez mais revelador seja o fato de que, 150 anos após a previsão de Wallace, cerca de 75 milhões de hectares antes cobertos pela impenetrável floresta foram convertidos em pastagens.
A frase do presidente responde a relatos sobre anseios de internacionalização da Amazônia que, embora não comprovados, geram consternação em solo brasileiro, a ponto de mobilizar políticos e parlamentares. Há dois anos, o Senado realizou audiência pública sobre o tema “A Internacionalização da Amazônia: Risco Real ou Temor Infundado?” “Eu não diria que há uma ameaça de internacionalização da Amazônia, mas confesso que acho interessante que haja essa permanente preocupação”, afirmou, à época, o secretário-executivo do Ministério das Relações Exteriores, Samuel Pinheiro Guimarães.
O temor permanece, alimentado por declarações atribuídas a celebridades internacionais, do ex-presidente francês François Mitterrand ao eterno presidenciável americano Al Gore, sempre apontando o interesse externo em retirar do Brasil a soberania sobre a porção amazônica que lhe cabe. Mas, para forasteiros com décadas de trabalho dedicado à Amazônia, a idéia soa estrangeira. “Só ouço isso no Brasil, de alguns brasileiros”, afirma o biólogo Thomas Lovejoy, presidente do Heinz Center para Ciência, Economia e Meio Ambiente. “Literalmente nunca nos Estados Unidos.”
O antropólogo Stephan Schwartzman, co-diretor do Programa de Trabalho Internacional da Environmental Defense, uma organização não governamental americana, conta que de tanto ouvir a retórica brasileira decidiu pesquisar, em Washington, quais seriam as bases. “Posso afirmar categoricamente que não existe em nenhuma esfera política, seja dentro do governo, seja fora, a intenção de internacionalizar a Amazônia, de minar a soberania brasileira ou de algum outro país amazônico”.
Os rumores de internacionalização persistem, na visão de Robert Goodland, ex-assessor do Banco Mundial para assuntos ambientais, “porque o Brasil vende internacionalmente praticamente todas as toras, a carne, a soja e o alumínio extraído da Amazônia”. Para ele, a conversão da Amazônia em produtos para os mercados internacionais manda a mensagem clara, embora equivocada, de que a floresta vale mais se for exportada.
Periferia extrema
Assim tem sido desde antes que o mantra da internacionalização integrasse a “geopolítica um pouco fantástica” do Brasil em relação à Amazônia, nas palavras de Stephan Schwartzman.
Stephen Bunker usou a Amazônia como exemplo maior de um modelo de subdesenvolvimento em que regiões de “extrema periferia” se caracterizam por laços econômicos com o sistema capitalista mundial baseados quase que exclusivamente em commodities extraídas – recursos que independem da intervenção humana para que existam ou se reproduzam – e pelas baixas proporções de capital e trabalho incorporadas no valor total das exportações.
A extração – em vez da produção – responde a oportunidades no mercado internacional, mas causa efeitos ambientais, sociais e demográficos que limitam as possibilidades de uso futuro dos recursos naturais que sustentam essas economias, criando assim a sucessão de booms e colapsos que ainda hoje domina a Amazônia.
A primeira onda extrativa na Amazônia, segundo Bunker, respondeu à demanda européia por especiarias e óleos animais – extraídos de ovos de tartaruga e dos manatis –, aproveitando-se não só dos recursos naturais, mas da tecnologia indígena. A conseqüência, além do benefício econômico aos primeiros exploradores, foi a redução da capacidade da região de suportar seus habitantes tradicionais, cujos números decresciam desde o contato com o homem branco. Após o colapso do primeiro ciclo de extração e longa estagnação, a economia reorganizouse para responder à demanda internacional por borracha. Mas não sem sentir os efeitos do ciclo anterior.
“Quando, na metade do século XIX, os europeus deram uso industrial ao que muitos índios amazônicos sabiam há tempos – que a borracha podia ser moldada de várias formas –, a ausência de uma força de trabalho adequada retardou sua resposta à nova explosão do mercado”, escreveu Bunker. A extração de borracha selvagem é intensiva em trabalho, mas o ciclo anterior havia deixado a maior parte das áreas rurais da Amazônia desabitada. A solução foi importar trabalhadores do Nordeste e alimentos de outras partes do País.
Foi possível manter tal sistema de extração, apesar do alto custo, enquanto os mercados internacionais dependeram apenas da Amazônia como fonte de borracha. Mas, quando os ingleses levaram sementes para a Ásia e ali estabeleceram seringais, veio o colapso. A explicação mais comum para a incapacidade de competir com o pólo asiático reside no surgimento de um fungo que impossibilitou a formação de plantações na Amazônia. Mas, para Bunker, a razão vai além do fungo. “Em vez disso, foi a falta de uma população rural – resultado direto do modo de extração colonial – que impediu o cultivo”, escreveu. Seguiu-se mais um longo período de estagnação.
A partir dos anos 50, na cronologia de Bunker, as relações entre a Amazônia e os mercados internacionais passaram a ser intermediadas pelo Estado brasileiro, que, graças aos efeitos dos ciclos anteriores, pôde tratar a região como “uma fronteira vazia de onde os lucros poderiam ser extraídos rapidamente e com pouca consideração aos sistemas sociais, econômicos e ambientais existentes”.
Os eixos que nortearam a ocupação foram o endividamento externo decorrente da industrialização do resto do País e a preocupação com segurança e ordem interna. “A Amazônia deixou de ser a periferia extrema das economias européia e americana para se tornar a fronteira periférica da qual capitalistas e o Estado brasileiro, ambos dependentes, extraem valor”, escreveu o sociólogo.
Dialética amazônica
Nessa fase, para extrair valor da floresta o governo concedeu direitos a companhias estrangeiras, subsídios e incentivos a empresas brasileiras, investiu milhões de dólares na abertura de estradas e iniciou um programa de colonização. Data desse período também a intensificação das respostas brasileiras a supostas tentativas de internacionalização. No livro A Amazônia e a Cobiça Internacional, de 1968, o ex-governador do Amazonas Arthur Ferreira Reis usa o interesse externo para justificar a necessidade de ocupar e “desenvolver” a região.
Mas, se de um lado as elites locais e o governo nacional não souberam tirar a Amazônia da extrema periferia, do outro, paira o interesse estrangeiro. “Ao longo de sua história, desde a chegada dos europeus, há a sensação de que, embora o Brasil tenha estendido sua soberania sobre ela, a Amazônia pertence ao mundo”, escreveu Richard Bourne, jornalista britânico no livro Assalto à Amazônia, de 1976. Segundo ele, o interesse compreende três elementos que, embora contraditórios, suportam-se mutuamente: ganância econômica, curiosidade científica e preocupações humanitárias e conservacionistas.
Diante da vontade brasileira de ocupar o que até então parecia uma “colônia interna”, os estrangeiros arregimentaram- se para permitir a empreitada, fornecendo o capital necessário e, em alguns casos, embrenhando-se para implantar projetos na floresta. Caso do Projeto Jari, estabelecido pelo milionário americano D.K. Ludwig em 1967 com a bênção e incentivos do governo brasileiro – em pleno movimento de “integrar para não entregar” – para produzir minérios, produtos florestais e agrícolas.
Na visão de Bourne, esse e outros casos são exemplos da “dialética entre interesses nacionais e internacionais”. que molda a economia amazônica. “O desejo dos governos brasileiros de reafirmar a soberania nacional e promover o desenvolvimento econômico, em parte estimulado pelo temor de predadores estrangeiros, na verdade envolveu tentativas de explorar o capital e a tecnologia de empresas internacionais para promover esquemas na Amazônia”, escreveu.
“A internacionalização no sentido de uma ameaça de outros países tomarem a região do Brasil não é real”, diz Philip Fearnside, ecólogo que estuda a Amazônia desde 1973. “Mas há uma internacionalização de outro tipo, que progride rapidamente e com todo o apoio do governo brasileiro. Isto é, a venda dos recursos naturais da região para empresas internacionais”. O exemplo recente, segundo Fearnside, são as hidrelétricas existentes e planejadas, que fornecem energia para beneficiar alumínio e outros produtos de exportação.
“É energia elétrica exportada em forma de lingotes de alumínio”, afirma. “Os países importadores e os donos internacionais de empresas como Alcoa e Nippon Amazon Aluminium Company não querem construir hidrelétricas ou outras fontes de energia em casa, não apenas devido aos custos diretos, mas também ao custo ambiental, e este impacto é exportado para a Amazônia”.
Comportas abertas
O terceiro elemento citado por Bourne – preocupações conservacionistas – passou a pesar na dialética amazônica nas últimas décadas. Nos anos 80, a Amazônia ocupou corações e mentes nas nações ricas com campanhas contra as queimadas e em defesa dos povos da floresta, como a encabeçada por Chico Mendes. Atualmente, cresce a percepção de que a floresta tem um papel a desempenhar no regime climático mundial, ameaçado pelas emissões de gases de efeito estufa.
“Há a percepção geral no Reino Unido de que a Amazônia deve ser ‘internacionalizada’ e eu concordo”, diz a antropóloga Kay Milton. “A principal razão é a mudança climática. Se a Amazônia for destruída, não é apenas o Brasil que perde a floresta, o mundo perde um importante reservatório de carbono e uma fonte de biodiversidade.”
“Serei a primeira pessoa a defender o Brasil”, diz John Carter sobre uma eventual ameaça de internacionalização. Ele criou a ONG Aliança da Terra para incentivar os proprietários na Amazônia a “produzir certo”, respeitando elementos socioambientais. “O que o Brasil está fazendo com a Amazônia é igual ao que o resto do mundo fez no passado, explorando um recurso natural ao máximo para retorno financeiro imediato”, afirma. “São milhares de indivíduos de todas as cores, nacionalidades e situações financeiras que tentam espremer tudo o que a fronteira oferece, enquanto o governo luta para manter o controle. O governo militar pediu para o povo integrar para não entregar, e o povo fez. Agora as comportas estão abertas.”
Tão abertas que as hidrelétricas do Rio Madeira em breve sairão do papel. Mas a pressão externa para que as atividades econômicas na Amazônia não contribuam para o aquecimento global ainda pode inaugurar uma nova fase da dialética amazônica. “Manter a floresta em pé é interesse do próprio Brasil, uma vez que ela desempenha funções essenciais, inclusive como fonte de chuva para o Centro-Sul”, lembra Fearnside. “O custo de pararo desmatamento extrapola as capacidades orçamentárias do Ministério do Meio Ambiente e de órgãos estaduais. Portanto, o interesse internacional pode ser aproveitado como fonte de recursos na escala necessária para contrapor as forças de destruição na região.”
“Com o surgimento dos mercados internacionais de carbono, há pela primeira vez, e talvez a última, a possibilidade de criar um mecanismo que valorize a floresta em pé”, diz Schwartzman. A idéia é que países industrializados remunerem as nações tropicais que evitam o desmatamento e promovem o desenvolvimento sustentável. Um belo exemplo de como a dialética de séculos entre estrangeiros e brasileiros na Amazônia pode beneficiar mais do que alguns poucos “desbravadores”.