O uso racional e ordenado do solo surge como a melhor forma de evitar os problemas sociais e ambientais da intervenção humana. Um recorte sobre a Região Oeste da Grande São Paulo, onde há uma proliferação de loteamentos residenciais, mostra boas e más experiências na disputa por espaço
Por Amália Safatle – Fotos: Bruno Bernardi
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“A preservação da natureza fica muito difícil dentro das cidades porque na disciplina de Ciências o professor ensina que devemos plantar árvores, mas em Geografia aprendemos que as cidades precisam se desenvolver e crescer. O homem não consegue associar as duas coisas e a natureza sai sempre perdendo.”
O trecho é de autoria de uma menina de 12 anos, Rejane Miranda Heitz, de Niquelândia, Goiás. Foi extraído de uma redação proposta pelo Instituto Ecofuturo, para que crianças, adolescentes e adultos de escolas de todo o Brasil refletissem sobre “o melhor lugar do mundo” e “o que podia ser bem melhor e será” – expressão emprestada de Gonzaguinha que dá título à coletânea dos textos mais significativos.
Com uma clareza juvenil, está ali sintetizado o desafio do desenvolvimento sustentável nas formas de ocupação humana. Assim que deixou a condição de caçador-coletor, quando sobrevivia das andanças por campos e florestas, e se enraizou em culturas agrícolas e pecuárias, o ser humano esquadrinhou, nem sempre pacificamente, as fronteiras políticas de seu território. Plantações, vilas, cidades, nações impuseram a cultura da civilização sobre o estado da natureza.
Rezam as enciclopédias que tanto o sentido físico como o político da palavra território recaem na idéia de apropriação de um espaço geográfico por um indivíduo ou uma coletividade. Foi o que talvez intuiu a menina Rejane, ao se lembrar das aulas de Geografia. No campo ou nas cidades, a disputa por espaço faz questionar as formas de desenvolvimento no processo de dominação do ambiente. Florestas e cerrados abrem espaço à agropecuária, como mostra reportagem à página 38, e moradias avançam sobre áreas naturais, como descrevem esta e a reportagem à página 26.
Em comum com estes casos fatores econômicos agem como drivers da ocupação – os produtores em busca de áreas agricultáveis e as residências que proliferam no raio de centros urbanos como o de São Paulo, ou de pólos industriais, como o de Cubatão, na Serra do Mar. Em todos os exemplos, segundo especialistas ouvidos nestas reportagens, as saídas parecem apontar a mesma direção: realizar a ocupação sob a observação de limites legais e de uma sociedade vigilante capaz de pôr rédeas na força econômica, que por si só não promove uma ocupação ordenada. Se a cultura se constrói sobre a natureza, que o faça de forma planejada e sustentável.
“O mercado não leva em conta a racionalidade do uso do solo. Aí que entra o papel do Estado”, afirma Jurandir Fernandes, diretor-presidente da Empresa Paulista de Planejamento Metropolitano (Emplasa) e ex-secretário estadual de Transportes Metropolitanos. Fernandes conta que, na Emplasa, há pilhas e pilhas de planejamento urbano. “O que falta é colocar os planos em prática e fiscalizá-los”, afirma.
Concentração de problemas
A Cohab (acima), em Itapevi (SP), foi
construída para alojar despejados das
favelas paulistanas. A poucos quilômetros
dali, loteamento de classe média alta
encrava casas e carros na floresta
Apesar das vastas terras brasileiras, a população aglomera-se em regiões metropolitanas, que somam 27 em todo o País. Destas, três encontram-se no estado paulista: a Grande São Paulo, a Baixada Santista e a de Campinas. São áreas que representam apenas 0,33% do território brasileiro, mas abrigam 15% da população e respondem por quase um quarto do PIB nacional. Na Região Metropolitana de São Paulo, a concentração é ainda mais gritante: em seus 39 municípios residem 19,5 milhões de pessoas, quase metade dos 40 milhões de habitantes de todo o estado paulista.
Somem-se a essa concentração a força econômica da região, a especulação imobiliária, a falta de uma fiscalização eficaz, o déficit habitacional das camadas populares e um boom da construção civil puxado pela queda das taxas de juro. Pronto: está formado um coquetel explosivo de ocupação, que se dá em uma das áreas ecologicamente mais frágeis do Brasil, os remanescentes de Mata Atlântica. O resultado da ocupação desordenada é a perda de biodiversidade, a superexploração de água, a concentração de poluentes e a disputa desigual por espaço entre as classes favorecidas e a população carente, para citar alguns problemas.
Compõe esse quadro outro fenômeno, válido para todo o País – a excessiva autonomia dos municípios. “Os prefeitos têm liberdade para definir a ocupação. O Brasil não é uma federação de 27 estados, mas de quase 6 mil municípios”, diz Fernandes. Segundo ele, diante do anseio por liberdade depois da ditadura militar, a Constituição deu asas à municipalização. “Agora é preciso uma institucionalização metropolitana.” É nesse sentido que a Emplasa pretende atuar, ao reunir e analisar em conjunto os planos diretores dos 39 municípios, que, além de não se comunicarem, muitas vezes são conflitantes entre si.
Marta Dora Grostein, coordenadora do Laboratório de Urbanismo da Metrópole e professora associada na Faculdade de Arquitetura a Urbanismo da USP, enfatiza a necessidade de se fazer um planejamento metropolitano e regional que englobe a infra-estrutura de água, de esgoto, elétrica, viária etc. Os comitês de bacia, por enxergarem os municípios de forma interligada, são instâncias capazes de lidar com o tema da ocupação de forma mais ampla, sem falar no arcabouço de leis estaduais e federais.
“Os municípios têm poder, mas a forma de ocupação contemporânea vai além do município”, diz a professora. “Não é porque Valinhos cresceu que cresceu o seu número de condomínios residenciais, mas porque se localiza entre as regiões metropolitanas de São Paulo e de Campinas”, exemplifica.
Espaço, verde e segurança
Um vetor importante de ocupação nos dias de hoje, segundo Marta, é justamente a numerosa formação de loteamentos e condomínios fechados. “Essa dinâmica ocorre em todas as classes sociais, da alta até a de menor renda, para as quais se vendem segurança e qualidade ambiental”, diz. Um exemplo disso é o lançamento da Gafisa, chamado Bairro Novo, voltado à classe mais popular, mas nos moldes de um condomínio de médio ou alto padrão. O primeiro empreendimento será lançado em Cotia (SP), próximo à Reserva Florestal do Morro Grande.
A esses atrativos citados por Marta, Hélio Alterman, fundador da imobiliária Proinvest – que atua há 20 anos na região da Granja Viana, na Região Oeste da Grande São Paulo –, acrescenta outro: a busca das pessoas por mais espaço. “Quem mora em apartamento em São Paulo fica satisfeito com um lote de 250 metros quadrados em um loteamento fechado, onde seu filho possa tranqüilamente andar de bicicleta na rua”, diz Alterman. “É espaço com segurança que as pessoas mais vêm buscar, e não necessariamente lotes com verde.”
Mas terrenos de 250 metros já configuram alta densidade demográfica e estimulam a retirada da vegetação para maior aproveitamento do espaço. Esse retalhamento do solo, que dá liquidez ao mercado imobiliário, promove uma crescente taxa de ocupação – muitas vezes em áreas de floresta – e sem infra-estrutura compatível, levando à perda da qualidade de vida que de início despertou o interesse pelo lugar.
Embora a Lei da Mata Atlântica, aprovada em dezembro de 2006, aumente as restrições ao desmatamento – estipula preservação de 50% da vegetação ou a compensação em outra área do correspondente desmatado –, um das poucas situações em que é permitida a supressão de floresta secundária em estágio avançado de regeneração é para a criação de loteamentos, informa Isabel Fonseca Barcellos, diretora da Divisão Regional Metropolitana de São Paulo do Departamento Estadual de Proteção de Recursos Naturais (DEPRN).
A proliferação dos condomínios não só impacta a biodiversidade como sobrecarrega as redes de infra-estrutura ao demandar a expansão de sistemas viários, uma vez que seus moradores precisam vencer grandes distâncias até o local de trabalho.
A conquista do Oeste
A parte Oeste da Grande São Paulo é um exemplo claro disso. Somente ao longo da Raposo Tavares, rodovia que serve a região, são mais de 300 loteamentos residenciais. O governo ainda cogita a implantação de um aeroporto no quilômetro 39, próximo à reserva do Morro Grande.
Sem investimento em transporte público, a estrada não dá mais vazão ao fluxo de automóveis e de caminhões, e está próxima de um apagão viário. Mesmo assim, os lançamentos continuam em marcha, muitos usando o apelo ecológico nas vendas.
Segundo Alterman, a corrida para o Oeste se dá porque se trata de um corredor relativamente livre para a ocupação de condomínios, ao contrário de outros eixos da Grande São Paulo, com maiores barreiras geográficas e ambientais. Ao Norte, há a Serra da Cantareira. Ao Leste, a Serra do Mar. Ao Sul, as áreas de mananciais, já tomadas pela população de baixa renda.
De acordo com o corretor, esses fatores, aliados à restrição às construções impostas pela lei de zoneamento na cidade de São Paulo e à busca de terras mais baratas, estimularam as construtoras a desbravar essa região, em um momento em que o setor imobiliário brasileiro vive uma euforia.
A revista Conjuntura da Construção, publicação do Sindicato da Construção de São Paulo (SindusCon-SP) e da Fundação Getulio Vargas, informa que os empresários do setor nunca estiveram tão otimistas em relação às perspectivas de desempenho de suas empresas, o que se deve em grande parte à expansão do crédito com a queda dos juros.
De acordo com a mesma publicação, o Brasil vive um déficit de coabitação, ou seja, o número de famílias formado é maior que o da criação de domicílios, sem falar na quantidade de habitações precárias. Com tanta demanda, a ocupação avança sobre as terras no entorno dos núcleos urbanos. “A descentralização não é só um fenômeno brasileiro, é mundial”, afirma Fernandes, da Emplasa.
Segundo ele, é clássica a organização de espaço em que os empregos se encontram nas áreas centrais e as moradias nas periféricas. Com uma infra-estrutura já consolidada – energia, água, esgoto, telecomunicações, estações de metrô – o valor do solo no centro cresce e a área se torna comercial, pois assim é capaz de promover retorno financeiro maior ao proprietário. E com isso se alarga a mancha urbana, tanto pelas pessoas de menor renda em busca de moradia barata como pelas de renda média e alta atrás de espaço e qualidade de vida.
No Brasil, esse fenômeno mundial foi ainda mais intensificado, segundo Fernandes, “por uma questão de justiça social”: a tarifa única do transporte público. Ao se cobrar o mesmo valor independente da distância do trecho percorrido, de modo a atender à população da periferia, estimulouse a expansão da ocupação.
Mas como esse modelo é insustentável, em especial devido aos problemas de deslocamento – poluição, gastos, horas perdidas no trânsito –, e é impossível acomodar toda a população no centro e suas imediações, Fernandes afirma que a nova tendência é a de se criarem subcentralidades, gerando emprego e renda nas pontas das áreas urbanizadas. “As nouvelles villes na França e as new towns na Inglaterra são alternativas que se têm buscado nesse sentido”, diz.
Também na Região Oeste da Grande São Paulo, em Barueri, Alphaville mantém condomínios residenciais fechados junto com escritórios, indústrias de baixo impacto ambiental e centro comercial. Poderia ser modelo de um novo núcleo urbano, mas enfrenta pelo menos um problema estrutural: lá moram 40 mil pessoas, das quais a maioria trabalha em São Paulo. E, das 120 mil que lá trabalham, grande parte mora na capital. O resultado dessa inversão se traduz em poluição e em uma Castello Branco – a rodovia que liga as duas cidades – congestionada.
Não são apenas ambientais, entretanto, os impactos dessa forma de ocupação em espaços fechados. Para Marta Grostein, trata-se de um formato que leva à convivência apenas entre iguais, sem promover diversificação cultural e social (leia mais na edição 9 de PÁGINA 22, em especial sobre Cidades). Em geral, próximo às cercas dos condomínios cresce a ocupação das camadas populares, atraídas por empregos de faxineira, jardineiro, segurança, limpador de piscina. As duas classes sociais vivem próximas, mas não se misturam.
Com tantos poréns, como falar em condomínios sustentáveis?
Até os anos 90, os folhetos e propagandas de lançamentos imobiliários costumavam ser de cor creme, neutra. Depois, com o aumento da consciência ambiental, passaram a adotar tons de verde e a usar fotos de árvores e passarinhos, ainda que a propaganda ecológica não fosse tão fiel à realidade. A observação é de Marcelo Takaoka, responsável pelo empreendimento Gênesis, que assumiu a preservação de uma vasta área florestal como seu maior atrativo de vendas. “As pessoas sempre associam o verde e a água à vida. É isso que elas buscam no fundo e passaram a demandar das incorporadoras”, diz.
Muito seguro disso, Takaoka lançou em Santana de Parnaíba (SP), perto de Alphaville, o condomínio de alto padrão que inverteu as tradicionais taxas de ocupação do mercado. A Lei da Mata Atlântica ainda não havia sido aprovada e, pela lei de loteamentos, ele poderia manter cerca de 15% em área verde e lotear o restante.
Mas loteou 15,9% – correspondentes a uma área que havia sido pasto –, deixou 73,4% como Mata Atlântica e os demais 10,7% destinou a ruas e áreas comuns. Ainda sobraram espaços de pasto que o empreendimento reflorestou, elevando em 24% a área de mata. Ou seja, em vez diminuir a floresta, o condomínio a aumentou.
Atrair ambientalistas
“Disseram no mercado que nós íamos quebrar e o projeto ainda atrairia a atenção de ambientalistas, o que seria uma dor de cabeça.” Ao contrário, Takaoka foi quem os consultou para planejar melhor uma ocupação sustentável. Segundo ele, o custo de vender menos lotes foi compensado pela sua valorização por conta dos diferenciais de sustentabilidade. Depois do Gênesis I, entregue em 2004, e do Gênesis II, em 2006, Takaoka prepara lançamento na mesma linha em Porto Alegre.
Uma dificuldade, diz ele, é encontrar o parceiro, dono de terras – já que a incorporadora não pode se imobilizar comprando áreas – que aceite esse tipo de empreendimento. “Em geral, querem deixar pequenas áreas verdes e maximizar a ocupação.”
Com a Lei da Mata Atlântica, o quadro muda de figura, pois a fatia que precisa ser reservada como área verde é significativa. Em relação a condomínios já existentes, em que há remanescentes florestais nos lotes, as imobiliárias estão em uma sinuca de bico.
“Para nós o prejuízo foi enorme”, diz Alterman, da Proinvest, uma das imobiliárias que atuam em um condomínio em Itapevi (SP), o Vila Verde, considerado um dos mais ricos em vegetação de Mata Atlântica no eixo da Raposo Tavares. Com lotes a partir de 360 metros quadrados, o proprietário, pela lei, precisa deixar 50% da área do terreno intacta.
Para os de baixa metragem, isso praticamente inviabiliza a construção. E há relatos de novos proprietários que adquiriram os lotes desavisadamente e até em Área de Proteção Permanente. “Nossos corretores estão instruídos a avisar o cliente sobre as novas restrições”, garante Alterman.
Antes, valia nesse condomínio um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), pelo qual cada proprietário deveria manter área verde de 20%. Para tentar retroceder ao TAC e não cumprir a Lei da Mata Atlântica, a diretoria da associação de moradores do condomínio contratou advogados, com o argumento de que os novos proprietários têm direitos iguais aos dos antigos.
“Esperamos que haja uma decisão judicial no meio-termo entre o TAC e a Lei da Mata Atlântica”, diz Alterman. É preciso lembrar, entretanto, que se trata de uma lei federal e específica sobre o bioma, que ficou 14 anos em discussão no Congresso Nacional até ser aprovada.
José Renato Nalini, desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo e um dos criadores da Comissão de Meio Ambiente do TJ, sustenta que não pode existir direito adquirido em relação ao meio ambiente. “Existe direito adquirido a poluir? Você acha que alguém que conseguiu uma licença ambiental antiga para desmatar APP ou Unidade de Conservação pode se servir dela para devastar hoje?”, questiona. Isabel, do DEPRN, adianta que, em paralelo à lei federal, haverá uma resolução estadual específica para a supressão da vegetação nativa nos casos de parcelamento do solo e edificação em áreas urbanas, cujos termos serão divulgados em março.
Erros passados
Mata Atlântica ou Semi-Árido?
Próximo à Reserva Florestal
do Morro Grande, em Cotia (SP),
abre-se mais um loteamento
O Vila Verde, criado na década de 70 sobre uma antiga fazenda, tem um traçado de ruas que fragmenta a floresta, oferece lotes pequenos, ocupa topos de morro e dificilmente seria aprovado hoje sob critérios de sustentabilidade. Uma fazenda vizinha a ele, a Granja Carolina, que se estende pelos municípios de Cotia e Itapevi, também está prestes a virar condomínio residencial pelas mãos da Alphaville Urbanismo, recémcomprada pela Gafisa – uma ocupação que desta vez pode evitar erros cometidos no passado, se planejada e executada sob critérios sustentáveis.
De acordo com o diretor de projetos, Marcelo Willer, buscou-se um traçado que desse menor margem possível à contestação por parte de órgãos ambientais e da sociedade civil. É a terceira vez que se tenta implantar um condomínio no local, onde há uma mata bastante conservada e rica biodiversidade. Segundo ele, serão 5 milhões de metros quadrados, dos quais 56% transformados em Reserva Particular do Patrimônio Natural. É previsto o tratamento integral do esgoto que será gerado nos futuros 2.800 lotes. O estudo de impacto ambiental já foi concluído, mas o projeto deverá passar por audiências públicas e em seguida buscar a autorização no Conselho Estadual de Meio Ambiente antes de ser implantado.
Um dado preocupante é a duplicação, proposta pelo empreendedor, de uma estrada de acesso e interligação entre a Raposo Tavares e a Castello Branco. Como se sabe, estradas são fortes indutoras de ocupação e trazem impacto à fauna. Daniel Martins, biólogo que trabalha no condomínio vizinho, o Vila Verde, afirma, por exemplo, que recentemente foram atropelados um gato-mourisco e um veado-mateiro – antes mesmo da duplicação da estrada.
Por outro lado, defende Willer, a duplicação permitirá a implantação de uma linha de ônibus com a qual moradores dos bairros pobres de Itapevi, onde há altas taxas de desemprego, poderão vir trabalhar no condomínio. “De todas as ocupações possíveis no local, a nossa (de classe média e alta) é a que trará menor impacto. Alguém tem que pagar a conta da conservação”, afirma.
Papel a cumprir
Funcionária municipal de São Paulo na subprefeitura de Itaim Paulista e estudiosa da história da ocupação da cidade, Rosane Keppke acredita que as classes média e alta podem exercer esse papel de conservação. Ela cita professores da FAU, para os quais a área de manancial no Sul de São Paulo poderia ter sido de certo modo preservada caso tivessem sido implantados condomínios que valorizassem o potencial paisagístico, como uma espécie de Côte d’Azur.
Como esse perfil de moradores não se interessou – segundo Rosane as classes média e alta paulistanas buscam a sua centralidade na Região Sudoeste – e houve uma lei muito restritiva ao uso do solo naquela região, os proprietários acabaram cedendo às imobiliárias inescrupulosas que incentivaram, com ajuda de políticos, loteamentos irregulares para as classes baixas.
Em tese de doutorado defendida na FAU, Rosane aponta as desigualdades sociais como o principal vetor do descontrole no uso e ocupação do solo. Sob o argumento da justiça social e em busca de dividendos políticos, o poder público concedeu imunidade fiscal e anistia às camadas populares. A classe média, diante do exemplo, buscou as mesmas facilidades, obtidas sob um sistema corrupto de fiscalização.
“O brasileiro tem a cultura do puxadinho. A família de baixa renda cresceu, ou precisa tirar renda do aluguel de um cômodo, faz um puxado”, afirma Rosane. A mesma coisa acontece na classe média: faz um quarto a mais, constrói a churrasqueira e a piscina.
E assim a cidade se expande, ocupa cada ponto vazio, se aperta e se impermeabiliza. Torna-se mais opressiva, e empurra as pessoas para fora, em busca de qualidade de vida. Lançam-se os condomínios. E então começa tudo outra vez, até que um planejamento bem executado e fiscalizado coloque ordem nesse movimento, harmonizando árvores e cidades.
O uso racional e ordenado do solo surge como a melhor forma de evitar os problemas sociais e ambientais da intervenção humana. Um recorte sobre a Região Oeste da Grande São Paulo, onde há uma proliferação de loteamentos residenciais, mostra boas e más experiências na disputa por espaço
Por Amália Safatle – Fotos: Bruno Bernardi
Versão
em PDF
“A preservação da natureza fica muito difícil dentro das cidades porque na disciplina de Ciências o professor ensina que devemos plantar árvores, mas em Geografia aprendemos que as cidades precisam se desenvolver e crescer. O homem não consegue associar as duas coisas e a natureza sai sempre perdendo.”
O trecho é de autoria de uma menina de 12 anos, Rejane Miranda Heitz, de Niquelândia, Goiás. Foi extraído de uma redação proposta pelo Instituto Ecofuturo, para que crianças, adolescentes e adultos de escolas de todo o Brasil refletissem sobre “o melhor lugar do mundo” e “o que podia ser bem melhor e será” – expressão emprestada de Gonzaguinha que dá título à coletânea dos textos mais significativos.
Com uma clareza juvenil, está ali sintetizado o desafio do desenvolvimento sustentável nas formas de ocupação humana. Assim que deixou a condição de caçador-coletor, quando sobrevivia das andanças por campos e florestas, e se enraizou em culturas agrícolas e pecuárias, o ser humano esquadrinhou, nem sempre pacificamente, as fronteiras políticas de seu território. Plantações, vilas, cidades, nações impuseram a cultura da civilização sobre o estado da natureza.
Rezam as enciclopédias que tanto o sentido físico como o político da palavra território recaem na idéia de apropriação de um espaço geográfico por um indivíduo ou uma coletividade. Foi o que talvez intuiu a menina Rejane, ao se lembrar das aulas de Geografia. No campo ou nas cidades, a disputa por espaço faz questionar as formas de desenvolvimento no processo de dominação do ambiente. Florestas e cerrados abrem espaço à agropecuária, como mostra reportagem à página 38, e moradias avançam sobre áreas naturais, como descrevem esta e a reportagem à página 26.
Em comum com estes casos fatores econômicos agem como drivers da ocupação – os produtores em busca de áreas agricultáveis e as residências que proliferam no raio de centros urbanos como o de São Paulo, ou de pólos industriais, como o de Cubatão, na Serra do Mar. Em todos os exemplos, segundo especialistas ouvidos nestas reportagens, as saídas parecem apontar a mesma direção: realizar a ocupação sob a observação de limites legais e de uma sociedade vigilante capaz de pôr rédeas na força econômica, que por si só não promove uma ocupação ordenada. Se a cultura se constrói sobre a natureza, que o faça de forma planejada e sustentável.
“O mercado não leva em conta a racionalidade do uso do solo. Aí que entra o papel do Estado”, afirma Jurandir Fernandes, diretor-presidente da Empresa Paulista de Planejamento Metropolitano (Emplasa) e ex-secretário estadual de Transportes Metropolitanos. Fernandes conta que, na Emplasa, há pilhas e pilhas de planejamento urbano. “O que falta é colocar os planos em prática e fiscalizá-los”, afirma.
Concentração de problemas
A Cohab (acima), em Itapevi (SP), foi
construída para alojar despejados das
favelas paulistanas. A poucos quilômetros
dali, loteamento de classe média alta
encrava casas e carros na floresta
Apesar das vastas terras brasileiras, a população aglomera-se em regiões metropolitanas, que somam 27 em todo o País. Destas, três encontram-se no estado paulista: a Grande São Paulo, a Baixada Santista e a de Campinas. São áreas que representam apenas 0,33% do território brasileiro, mas abrigam 15% da população e respondem por quase um quarto do PIB nacional. Na Região Metropolitana de São Paulo, a concentração é ainda mais gritante: em seus 39 municípios residem 19,5 milhões de pessoas, quase metade dos 40 milhões de habitantes de todo o estado paulista.
Somem-se a essa concentração a força econômica da região, a especulação imobiliária, a falta de uma fiscalização eficaz, o déficit habitacional das camadas populares e um boom da construção civil puxado pela queda das taxas de juro. Pronto: está formado um coquetel explosivo de ocupação, que se dá em uma das áreas ecologicamente mais frágeis do Brasil, os remanescentes de Mata Atlântica. O resultado da ocupação desordenada é a perda de biodiversidade, a superexploração de água, a concentração de poluentes e a disputa desigual por espaço entre as classes favorecidas e a população carente, para citar alguns problemas.
Compõe esse quadro outro fenômeno, válido para todo o País – a excessiva autonomia dos municípios. “Os prefeitos têm liberdade para definir a ocupação. O Brasil não é uma federação de 27 estados, mas de quase 6 mil municípios”, diz Fernandes. Segundo ele, diante do anseio por liberdade depois da ditadura militar, a Constituição deu asas à municipalização. “Agora é preciso uma institucionalização metropolitana.” É nesse sentido que a Emplasa pretende atuar, ao reunir e analisar em conjunto os planos diretores dos 39 municípios, que, além de não se comunicarem, muitas vezes são conflitantes entre si.
Marta Dora Grostein, coordenadora do Laboratório de Urbanismo da Metrópole e professora associada na Faculdade de Arquitetura a Urbanismo da USP, enfatiza a necessidade de se fazer um planejamento metropolitano e regional que englobe a infra-estrutura de água, de esgoto, elétrica, viária etc. Os comitês de bacia, por enxergarem os municípios de forma interligada, são instâncias capazes de lidar com o tema da ocupação de forma mais ampla, sem falar no arcabouço de leis estaduais e federais.
“Os municípios têm poder, mas a forma de ocupação contemporânea vai além do município”, diz a professora. “Não é porque Valinhos cresceu que cresceu o seu número de condomínios residenciais, mas porque se localiza entre as regiões metropolitanas de São Paulo e de Campinas”, exemplifica.
Espaço, verde e segurança
Um vetor importante de ocupação nos dias de hoje, segundo Marta, é justamente a numerosa formação de loteamentos e condomínios fechados. “Essa dinâmica ocorre em todas as classes sociais, da alta até a de menor renda, para as quais se vendem segurança e qualidade ambiental”, diz. Um exemplo disso é o lançamento da Gafisa, chamado Bairro Novo, voltado à classe mais popular, mas nos moldes de um condomínio de médio ou alto padrão. O primeiro empreendimento será lançado em Cotia (SP), próximo à Reserva Florestal do Morro Grande.
A esses atrativos citados por Marta, Hélio Alterman, fundador da imobiliária Proinvest – que atua há 20 anos na região da Granja Viana, na Região Oeste da Grande São Paulo –, acrescenta outro: a busca das pessoas por mais espaço. “Quem mora em apartamento em São Paulo fica satisfeito com um lote de 250 metros quadrados em um loteamento fechado, onde seu filho possa tranqüilamente andar de bicicleta na rua”, diz Alterman. “É espaço com segurança que as pessoas mais vêm buscar, e não necessariamente lotes com verde.”
Mas terrenos de 250 metros já configuram alta densidade demográfica e estimulam a retirada da vegetação para maior aproveitamento do espaço. Esse retalhamento do solo, que dá liquidez ao mercado imobiliário, promove uma crescente taxa de ocupação – muitas vezes em áreas de floresta – e sem infra-estrutura compatível, levando à perda da qualidade de vida que de início despertou o interesse pelo lugar.
Embora a Lei da Mata Atlântica, aprovada em dezembro de 2006, aumente as restrições ao desmatamento – estipula preservação de 50% da vegetação ou a compensação em outra área do correspondente desmatado –, um das poucas situações em que é permitida a supressão de floresta secundária em estágio avançado de regeneração é para a criação de loteamentos, informa Isabel Fonseca Barcellos, diretora da Divisão Regional Metropolitana de São Paulo do Departamento Estadual de Proteção de Recursos Naturais (DEPRN).
A proliferação dos condomínios não só impacta a biodiversidade como sobrecarrega as redes de infra-estrutura ao demandar a expansão de sistemas viários, uma vez que seus moradores precisam vencer grandes distâncias até o local de trabalho.
A conquista do Oeste
A parte Oeste da Grande São Paulo é um exemplo claro disso. Somente ao longo da Raposo Tavares, rodovia que serve a região, são mais de 300 loteamentos residenciais. O governo ainda cogita a implantação de um aeroporto no quilômetro 39, próximo à reserva do Morro Grande.
Sem investimento em transporte público, a estrada não dá mais vazão ao fluxo de automóveis e de caminhões, e está próxima de um apagão viário. Mesmo assim, os lançamentos continuam em marcha, muitos usando o apelo ecológico nas vendas.
Segundo Alterman, a corrida para o Oeste se dá porque se trata de um corredor relativamente livre para a ocupação de condomínios, ao contrário de outros eixos da Grande São Paulo, com maiores barreiras geográficas e ambientais. Ao Norte, há a Serra da Cantareira. Ao Leste, a Serra do Mar. Ao Sul, as áreas de mananciais, já tomadas pela população de baixa renda.
De acordo com o corretor, esses fatores, aliados à restrição às construções impostas pela lei de zoneamento na cidade de São Paulo e à busca de terras mais baratas, estimularam as construtoras a desbravar essa região, em um momento em que o setor imobiliário brasileiro vive uma euforia.
A revista Conjuntura da Construção, publicação do Sindicato da Construção de São Paulo (SindusCon-SP) e da Fundação Getulio Vargas, informa que os empresários do setor nunca estiveram tão otimistas em relação às perspectivas de desempenho de suas empresas, o que se deve em grande parte à expansão do crédito com a queda dos juros.
De acordo com a mesma publicação, o Brasil vive um déficit de coabitação, ou seja, o número de famílias formado é maior que o da criação de domicílios, sem falar na quantidade de habitações precárias. Com tanta demanda, a ocupação avança sobre as terras no entorno dos núcleos urbanos. “A descentralização não é só um fenômeno brasileiro, é mundial”, afirma Fernandes, da Emplasa.
Segundo ele, é clássica a organização de espaço em que os empregos se encontram nas áreas centrais e as moradias nas periféricas. Com uma infra-estrutura já consolidada – energia, água, esgoto, telecomunicações, estações de metrô – o valor do solo no centro cresce e a área se torna comercial, pois assim é capaz de promover retorno financeiro maior ao proprietário. E com isso se alarga a mancha urbana, tanto pelas pessoas de menor renda em busca de moradia barata como pelas de renda média e alta atrás de espaço e qualidade de vida.
No Brasil, esse fenômeno mundial foi ainda mais intensificado, segundo Fernandes, “por uma questão de justiça social”: a tarifa única do transporte público. Ao se cobrar o mesmo valor independente da distância do trecho percorrido, de modo a atender à população da periferia, estimulouse a expansão da ocupação.
Mas como esse modelo é insustentável, em especial devido aos problemas de deslocamento – poluição, gastos, horas perdidas no trânsito –, e é impossível acomodar toda a população no centro e suas imediações, Fernandes afirma que a nova tendência é a de se criarem subcentralidades, gerando emprego e renda nas pontas das áreas urbanizadas. “As nouvelles villes na França e as new towns na Inglaterra são alternativas que se têm buscado nesse sentido”, diz.
Também na Região Oeste da Grande São Paulo, em Barueri, Alphaville mantém condomínios residenciais fechados junto com escritórios, indústrias de baixo impacto ambiental e centro comercial. Poderia ser modelo de um novo núcleo urbano, mas enfrenta pelo menos um problema estrutural: lá moram 40 mil pessoas, das quais a maioria trabalha em São Paulo. E, das 120 mil que lá trabalham, grande parte mora na capital. O resultado dessa inversão se traduz em poluição e em uma Castello Branco – a rodovia que liga as duas cidades – congestionada.
Não são apenas ambientais, entretanto, os impactos dessa forma de ocupação em espaços fechados. Para Marta Grostein, trata-se de um formato que leva à convivência apenas entre iguais, sem promover diversificação cultural e social (leia mais na edição 9 de PÁGINA 22, em especial sobre Cidades). Em geral, próximo às cercas dos condomínios cresce a ocupação das camadas populares, atraídas por empregos de faxineira, jardineiro, segurança, limpador de piscina. As duas classes sociais vivem próximas, mas não se misturam.
Com tantos poréns, como falar em condomínios sustentáveis?
Até os anos 90, os folhetos e propagandas de lançamentos imobiliários costumavam ser de cor creme, neutra. Depois, com o aumento da consciência ambiental, passaram a adotar tons de verde e a usar fotos de árvores e passarinhos, ainda que a propaganda ecológica não fosse tão fiel à realidade. A observação é de Marcelo Takaoka, responsável pelo empreendimento Gênesis, que assumiu a preservação de uma vasta área florestal como seu maior atrativo de vendas. “As pessoas sempre associam o verde e a água à vida. É isso que elas buscam no fundo e passaram a demandar das incorporadoras”, diz.
Muito seguro disso, Takaoka lançou em Santana de Parnaíba (SP), perto de Alphaville, o condomínio de alto padrão que inverteu as tradicionais taxas de ocupação do mercado. A Lei da Mata Atlântica ainda não havia sido aprovada e, pela lei de loteamentos, ele poderia manter cerca de 15% em área verde e lotear o restante.
Mas loteou 15,9% – correspondentes a uma área que havia sido pasto –, deixou 73,4% como Mata Atlântica e os demais 10,7% destinou a ruas e áreas comuns. Ainda sobraram espaços de pasto que o empreendimento reflorestou, elevando em 24% a área de mata. Ou seja, em vez diminuir a floresta, o condomínio a aumentou.
Atrair ambientalistas
“Disseram no mercado que nós íamos quebrar e o projeto ainda atrairia a atenção de ambientalistas, o que seria uma dor de cabeça.” Ao contrário, Takaoka foi quem os consultou para planejar melhor uma ocupação sustentável. Segundo ele, o custo de vender menos lotes foi compensado pela sua valorização por conta dos diferenciais de sustentabilidade. Depois do Gênesis I, entregue em 2004, e do Gênesis II, em 2006, Takaoka prepara lançamento na mesma linha em Porto Alegre.
Uma dificuldade, diz ele, é encontrar o parceiro, dono de terras – já que a incorporadora não pode se imobilizar comprando áreas – que aceite esse tipo de empreendimento. “Em geral, querem deixar pequenas áreas verdes e maximizar a ocupação.”
Com a Lei da Mata Atlântica, o quadro muda de figura, pois a fatia que precisa ser reservada como área verde é significativa. Em relação a condomínios já existentes, em que há remanescentes florestais nos lotes, as imobiliárias estão em uma sinuca de bico.
“Para nós o prejuízo foi enorme”, diz Alterman, da Proinvest, uma das imobiliárias que atuam em um condomínio em Itapevi (SP), o Vila Verde, considerado um dos mais ricos em vegetação de Mata Atlântica no eixo da Raposo Tavares. Com lotes a partir de 360 metros quadrados, o proprietário, pela lei, precisa deixar 50% da área do terreno intacta.
Para os de baixa metragem, isso praticamente inviabiliza a construção. E há relatos de novos proprietários que adquiriram os lotes desavisadamente e até em Área de Proteção Permanente. “Nossos corretores estão instruídos a avisar o cliente sobre as novas restrições”, garante Alterman.
Antes, valia nesse condomínio um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), pelo qual cada proprietário deveria manter área verde de 20%. Para tentar retroceder ao TAC e não cumprir a Lei da Mata Atlântica, a diretoria da associação de moradores do condomínio contratou advogados, com o argumento de que os novos proprietários têm direitos iguais aos dos antigos.
“Esperamos que haja uma decisão judicial no meio-termo entre o TAC e a Lei da Mata Atlântica”, diz Alterman. É preciso lembrar, entretanto, que se trata de uma lei federal e específica sobre o bioma, que ficou 14 anos em discussão no Congresso Nacional até ser aprovada.
José Renato Nalini, desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo e um dos criadores da Comissão de Meio Ambiente do TJ, sustenta que não pode existir direito adquirido em relação ao meio ambiente. “Existe direito adquirido a poluir? Você acha que alguém que conseguiu uma licença ambiental antiga para desmatar APP ou Unidade de Conservação pode se servir dela para devastar hoje?”, questiona. Isabel, do DEPRN, adianta que, em paralelo à lei federal, haverá uma resolução estadual específica para a supressão da vegetação nativa nos casos de parcelamento do solo e edificação em áreas urbanas, cujos termos serão divulgados em março.
Erros passados
Mata Atlântica ou Semi-Árido?
Próximo à Reserva Florestal
do Morro Grande, em Cotia (SP),
abre-se mais um loteamento
O Vila Verde, criado na década de 70 sobre uma antiga fazenda, tem um traçado de ruas que fragmenta a floresta, oferece lotes pequenos, ocupa topos de morro e dificilmente seria aprovado hoje sob critérios de sustentabilidade. Uma fazenda vizinha a ele, a Granja Carolina, que se estende pelos municípios de Cotia e Itapevi, também está prestes a virar condomínio residencial pelas mãos da Alphaville Urbanismo, recémcomprada pela Gafisa – uma ocupação que desta vez pode evitar erros cometidos no passado, se planejada e executada sob critérios sustentáveis.
De acordo com o diretor de projetos, Marcelo Willer, buscou-se um traçado que desse menor margem possível à contestação por parte de órgãos ambientais e da sociedade civil. É a terceira vez que se tenta implantar um condomínio no local, onde há uma mata bastante conservada e rica biodiversidade. Segundo ele, serão 5 milhões de metros quadrados, dos quais 56% transformados em Reserva Particular do Patrimônio Natural. É previsto o tratamento integral do esgoto que será gerado nos futuros 2.800 lotes. O estudo de impacto ambiental já foi concluído, mas o projeto deverá passar por audiências públicas e em seguida buscar a autorização no Conselho Estadual de Meio Ambiente antes de ser implantado.
Um dado preocupante é a duplicação, proposta pelo empreendedor, de uma estrada de acesso e interligação entre a Raposo Tavares e a Castello Branco. Como se sabe, estradas são fortes indutoras de ocupação e trazem impacto à fauna. Daniel Martins, biólogo que trabalha no condomínio vizinho, o Vila Verde, afirma, por exemplo, que recentemente foram atropelados um gato-mourisco e um veado-mateiro – antes mesmo da duplicação da estrada.
Por outro lado, defende Willer, a duplicação permitirá a implantação de uma linha de ônibus com a qual moradores dos bairros pobres de Itapevi, onde há altas taxas de desemprego, poderão vir trabalhar no condomínio. “De todas as ocupações possíveis no local, a nossa (de classe média e alta) é a que trará menor impacto. Alguém tem que pagar a conta da conservação”, afirma.
Papel a cumprir
Funcionária municipal de São Paulo na subprefeitura de Itaim Paulista e estudiosa da história da ocupação da cidade, Rosane Keppke acredita que as classes média e alta podem exercer esse papel de conservação. Ela cita professores da FAU, para os quais a área de manancial no Sul de São Paulo poderia ter sido de certo modo preservada caso tivessem sido implantados condomínios que valorizassem o potencial paisagístico, como uma espécie de Côte d’Azur.
Como esse perfil de moradores não se interessou – segundo Rosane as classes média e alta paulistanas buscam a sua centralidade na Região Sudoeste – e houve uma lei muito restritiva ao uso do solo naquela região, os proprietários acabaram cedendo às imobiliárias inescrupulosas que incentivaram, com ajuda de políticos, loteamentos irregulares para as classes baixas.
Em tese de doutorado defendida na FAU, Rosane aponta as desigualdades sociais como o principal vetor do descontrole no uso e ocupação do solo. Sob o argumento da justiça social e em busca de dividendos políticos, o poder público concedeu imunidade fiscal e anistia às camadas populares. A classe média, diante do exemplo, buscou as mesmas facilidades, obtidas sob um sistema corrupto de fiscalização.
“O brasileiro tem a cultura do puxadinho. A família de baixa renda cresceu, ou precisa tirar renda do aluguel de um cômodo, faz um puxado”, afirma Rosane. A mesma coisa acontece na classe média: faz um quarto a mais, constrói a churrasqueira e a piscina.
E assim a cidade se expande, ocupa cada ponto vazio, se aperta e se impermeabiliza. Torna-se mais opressiva, e empurra as pessoas para fora, em busca de qualidade de vida. Lançam-se os condomínios. E então começa tudo outra vez, até que um planejamento bem executado e fiscalizado coloque ordem nesse movimento, harmonizando árvores e cidades.
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