“De qualquer pano de mato, de de-entre quase cada encostar de duas folhas, saíam em giro as todas as cores de borboletas. Como não se viu, aqui se vê. Porque, nos gerais, a mesma raça de borboletas, que em outras partes é trivial regular – cá cresce, vira muito maior, e com mais brilho, se sabe; acho que é do seco do ar, do limpo, desta luz enorme.” João Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas
Por Amália Safatle – Fotos Bruno Bernardi
Ressequido, mas berço das principais bacias hidrográficas brasileiras. Dono de vegetação adaptada aos incêndios naturais, é a terra do fogo – mas recebe águas em chuvas volumosas. Estende seus 207 milhões de hectares Brasil adentro: ao mesmo tempo que é um interiorzão, abriga a capital do País. Dizem que o solo é pobre, mas que também é o celeiro do mundo. A paisagem parece monotônica, entretanto se multiplica em pelo menos cinco padrões diferenciados, com cerca de 10 mil espécies de plantas. As árvores crescem tortas e retorcidas, mas se espalham em altiplanos de horizonte retíssimo. Arcaico, sobre suas formações geológicas de antiga datação viveram povos primitivos – contudo, é ponta de novas tecnologias agrárias e de energia renovável. É floresta, só que de cabeça para baixo. Vai entender o Cerrado.
É preciso mesmo entendê-lo, para poder conservá-lo. No desconhecimento, ele se deixa levar pelas aparências. Sem o apelo da exuberante rain forest, 38,8% já foram embora para dar lugar a atividades agropecuárias e alimentar fornos de siderúrgicas (leia mais nesta reportagem). Os dados do governo, com base em mapas obtidos por georreferenciamento em 2002, indicam que as pastagens cultivadas ocupam 61 milhões de hectares, e as culturas anuais e perenes, 17,5 milhões.
Mas as sutis variações do Cerrado enganam até os satélites. É fácil confundir desmatamento com o ciclo natural da vegetação. “Aquele solo está aberto porque o homem desmatou ou porque caíram as folhas?”, exemplifica Maria Cecília Wey de Brito, secretária de Biodiversidade e Florestas do Ministério do Meio Ambiente. E dão margem a controvérsias.
Campos com pastagens nativas ocupadas pela pecuária – no caso são 30 milhões de hectares – exercem função ecológica mesmo “antropizados”, ou devem ser considerados como devastados? Para a Conservação Internacional (CI), devem.
Por esse e outros motivos, a CI considera que, do Cerrado, 65% “foram para o espaço”, nas palavras de seu diretor de Política Ambiental, Paulo Gustavo do Prado Pereira – e isso tem afetado até a quantidade de substrato disponível para novas pesquisas científicas. Segundo a CI, é um dos 34 hotspots mundiais, ao combinar alto índice de biodiversidade com acelerada taxa de destruição.
A previsão da ONG é que, no atual ritmo, o Cerrado vá se exaurir até 2030, sem antes mesmo ser decodificado. Sérgio Guimarães, coordenador-executivo do Instituto Centro de Vida (ICV), e representante no Conselho Nacional de Meio Ambiente das ONGs da Região Centro-Oeste, afirma que intactos mesmo restam apenas 11% do bioma. Segundo o MMA, 6,82% do seu território está protegido na forma de 171 Unidades de Conservação (UCs), e a meta é chegar a 10% até 2010.
Ainda que o fato não ganhe manchetes nos jornais, Donald Sawyer, professor do Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília (UnB), afirma que a taxa de desmatamento no Cerrado atingiu o dobro da amazônica, com 22 mil quilômetros quadrados anuais. Estudo do Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN), do qual Sawyer é assessor, indica que essa taxa foi recentemente alavancada pela expansão da cana-de-açúcar, que avança a trator de São Paulo para Minas Gerais, Mato Grosso do Sul, Goiás, Mato Grosso e Tocantins.
O estudo, realizado com recursos da Comunidade Européia, cruza dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e do Ministério do Meio Ambiente. Ao interpor mapas da lavoura de cana com os de áreas prioritárias para conservação, identifica que, na região central do estado de São Paulo, por exemplo, uma localidade considerada como “prioridade extremamente alta” para conectar Unidades de Conservação agora convive com extensos canaviais. A Reserva Biológica localizada em Sertãozinho (SP) aparece como ilha cercada de cana por todos os lados. Principalmente por conta da mudança no uso do solo, as emissões de carbono já seriam equivalentes a 35% da Amazônia, segundo a pesquisadora da UnB Mercedes Bustamante.
Fato é que o desencontro de informações oficiais e extra-oficiais denuncia o quão pouco conhecido ainda é o Cerrado. Suas fotografias por satélite, assim como as de outros biomas, são relativamente escassas. A Amazônia, explica o chefe-geral da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) Cerrados, Roberto Teixeira Alves, “é falada mundialmente, menos habitada e mais estratégica, em termos da existência de minérios, por exemplo”. Daí ter sido alvo de um programa de vigilância constante por satélite.
Já os demais biomas nunca mereceram atenção similar. Alves afirma que, a partir de agora, esse acompanhamento deverá ser feito no Cerrado de quatro em quatro anos. Maria Cecília, do MMA, diz que há intenção de firmar com o Centro de Monitoramento do Ibama um acordo para colher dados anuais de todos os biomas.
O estudo, realizado com recursos da Comunidade Européia, cruza dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e do Ministério do Meio Ambiente. Ao interpor mapas da lavoura de cana com os de áreas prioritárias para conservação, identifica que, na região central do estado de São Paulo, por exemplo, uma localidade considerada como “prioridade extremamente alta” para conectar Unidades de Conservação agora convive com extensos canaviais. A Reserva Biológica localizada em Sertãozinho (SP) aparece como ilha cercada de cana por todos os lados. Principalmente por conta da mudança no uso do solo, as emissões ser feito no Cerrado de quatro em quatro anos. Maria Cecília, do MMA, diz que há a intenção de firmar com o Centro de Monitoramento do Ibama um acordo para colher dados anuais de todos os biomas.
Resistência tem limite
Cerrados, cerradão e campestres; matas de galeria, cordilheiras e veredas; capões de matas, biodiversas e touceiras de cactáceas. O renomado geógrafo Aziz Ab’Sáber assim denomina a variedade do Cerrado que se dispõe de forma areolar, linear e pontual. Em Os Domínios de Natureza no Brasil – potencialidades paisagísticas, afirma que no universo geoecológico do Brasil intertropical não existe comunidade biológica mais flexível e dotada de poder de sobrevivência em solos pobres do que os cerrados. Haja vista a façanha de renascer das próprias cinzas. “Não resiste, porém, aos violentos artifícios tecnológicos inventados pelos homens ditos civilizados”, escreve.
Campo plano e aberto para o receituário da Revolução Verde de Norman Bourlaug, calcado em maquinário intensivo e uso maciço de adubos químicos e agrotóxicos, o Cerrado a partir da década de 70 transformou-se em espaço para a produção de alimentos – que começou com a diminuição da oferta de terras baratas no Sul e Sudeste e a descoberta de que seu solo poderia ser manejado.
“Há 35 anos, a terra não valia nada. Era um local isolado. O que trouxe grande desenvolvimento foi a transferência da capital, 48 anos atrás. Aí que tudo começou. E foram abrindo estradas, como a Belém-Brasília”, conta Alves, da Embrapa, para quem as novas técnicas agrícolas agora têm buscado a sustentabilidade com técnicas biológicas, plantio direto, aumento da produtividade e uso menor de agroquímicos.
Fernando Penteado Cardoso, que acompanhou Bourlaug em uma visita ao Cerrado e presidia a fábrica de adubos Manah, não entende por que se usam palavras como “ameaça” e “destruição” quando se refere, a seu ver, ao uso “de cerca de 10 milhões de hectares de solos antes pobres e inaproveitados que foram convertidos em terras férteis agricultáveis” – e asseguram a produção de alimentos e as exportações das quais tanto o País depende.
A visão ambientalista, para Cardoso, é excessivamente catastrófica: a contaminação do solo e da água por agroquímicos é mínima e os acadêmicos não têm com que se preocupar, pois sempre restarão grandes regiões de Cerrado intocadas nas áreas pedregosas, de morros ou inundáveis, além de reservas como o Parque Nacional das Emas e as dos índios.
O pensamento de Cardoso pertence a uma linha atrelada a um velho paradigma. Mas tão ou mais preocupante é saber o que as novas gerações estão aprendendo.
Estudo de Marcelo Ximenes Bizerril, professor de Ciências Naturais da Universidade de Brasília – Planaltina, mostra que partem até de livros didáticos idéias preconceituosas em relação ao bioma, nos quais pouco se descrevem as riquezas socioambientais e muito se ressalta a sua exploração para fins agropecuários, como se fosse moeda de troca pela preservação da Amazônia.
Eis algumas das pérolas colhidas em livros usados em escolas públicas e privadas à época do estudo, realizado em 2003, com base em amostras de obras das maiores editoras: “O Cerrado é a grande muralha de proteção da Amazônia. Cada hectare explorado no Brasil Central é um hectare da Floresta Amazônica que fica de pé”. “O relevo plano é outro fator que permite a mecanização e o aproveitamento integral da área.” Mais: “Com o uso do calcário para corrigir a acidez do solo e outras providências técnicas, o Cerrado foi transformado, de vegetação rala e troncos retorcidos, em imensas áreas de pastagens ou de cultivo, principalmente de soja”. “A pobreza dos solos explica a pobreza da vegetação, que não se parece nem um pouco com as grandes florestas da Região Norte.” Bizerril alertou o Ministério da Educação sobre esses resultados. Em outra pesquisa, realizada com 200 estudantes entre 13 e 16 anos do Distrito Federal nos meios rural e urbano, o professor identificou que eles conhecem mais a biodiversidade da África e “preferem” as espécies exóticas às nativas. “É uma geração acostumada a consumir uma cultura importada”, diz.
O pouco interesse se estenderia aos adultos. Para Guimarães, do ICV, muito da dificuldade para captação de recursos por parte das ONGs que atuam no Cerrado deve-se à falta da adesão do empresariado local. “As empresas que atuam em grandes cidades como Cuiabá, Brasília e Goiânia também não têm a percepção de estar no Cerrado. É preciso que a sociedade local se assuma como habitante do bioma”, diz.
Barreiras não tarifárias
De forma voluntária ou para responder a pressões internacionais que podem se traduzir em barreiras comerciais não tarifárias, o setor privado provavelmente terá de adotar métodos de produção mais sustentáveis. Exemplo emblemático é o da soja produzida no bioma amazônico, alvo de moratória declarada pelos produtores brasileiros do grão ante a exigência do consumidor internacional.
“Pressões em relação ao Cerrado ainda não há”, afirma Carlo Lovatelli, presidente da Associação Brasileira de Agribusiness, que assinou a moratória. “O Cerrado faz parte do agronegócio”, emenda.
Contudo, importantes cadeias do agribusiness – das quais a maioria atua largamente no bioma – começam a se organizar em fóruns multistakeholders (constituídos por várias partes interessadas, como produtores, consumidores, ONGs) para buscar processos de produção mais responsáveis e dirimir prováveis conflitos entre lados opostos.
O Instituto para o Agronegócio Responsável (Ares), do qual Lovatelli é presidente do Conselho Deliberativo, seria um desses fóruns, o qual se propôs a fazer um diagnóstico inicial sobre a sustentabilidade na produção de soja, algodão, café, milho, citros, cana-de-açúcar, bovinos, aves, suínos e madeiras.
Outro exemplo é a mesa-redonda internacional sobre a produção da soja, a Round Table on Responsible Soy.
Roberto Waack, presidente do Conselho Consultivo do Ares, acredita que iniciativas como estas descortinam outro paradigma para o agronegócio, sob um novo modelo de governança, em que as partes buscam entendimento prévio, invertendo a lógica antiga dos lobbies no Congresso, para aprovação de leis que poderão ou não ser cumpridas.
Mas ainda sob o paradigma “tradicional”, o que se vê é uma bancada ruralista ativa na defesa dos interesses do agronegócio. A Proposta de Emenda Constitucional (PEC) para que o bioma, assim como o Pampa e a Caatinga, passe a ser considerado como Patrimônio Natural, tramita há nada menos que 13 anos. “Os ruralistas acreditam que a aprovação da PEC reforçará as restrições para uso do solo além das exigidas como reserva legal e áreas de proteção permanente”, afirma Maria Cecília, do MMA.
Para a antropóloga Mônica Nogueira, coordenadora-geral da Rede Cerrado, que reúne ONGs e movimentos sociais, o MMA sofre pressão até mesmo da cooperação internacional, que prioriza as atenções sobre a Amazônia. “Além disso, a questão do Cerrado não chega ao núcleo duro do governo, como as pastas da Agricultura e do Planejamento”, lamenta. Ela denuncia que as populações tradicionais do Cerrado – geraiseiros, retireiros, quilombolas, quebradeiras de coco, entre outras, além de povos indígenas, têm sofrido com a expansão do agronegócio.
Sawyer, do ISPN, complementa: “A cooperação internacional, quando questionada sobre a concentração de recursos para o bioma amazônico, responde que o governo nacional também só quer falar de Amazônia, para deixar livre de restrições a produção e a exportação de carne, soja e etanol. E, do outro lado, os países do Norte e do Oriente pedem essa oferta de produtos”.
Entre as políticas para o bioma, além de constituir novas UCs, o MMA pretende estabelecer um zoneamento ecológico-econômico que incentive a ocupação ordenada e o uso de áreas degradadas para a produção agropecuária, e criar uma Lei do Cerrado, a exemplo da Lei da Mata Atlântica. “Se não for o MMA o propositor dessa lei, não será a bancada ruralista”, diz Maria Cecília.
Para além da legislação, um forte argumento na defesa do bioma são os serviços ambientais que ele presta. No Cerrado, por exemplo, formam-se rios que geram energia elétrica para nada menos que 90% da população brasileira.
Sua vegetação, com raízes que atingem até 20 metros de profundidade – resposta evolutiva ao fogo e à secura –, é um laboratório vivo para pesquisas extremamente úteis no contexto do aquecimento global, salienta Sawyer.
“A floresta tropical pode ter a cura do câncer, mas o Cerrado, com suas bromélias e leguminosas, parentes do abacaxi, do amendoim, do milho, contribuiria muito para a produção de alimentos”, diz Sawyer.
Em mais uma das subversões do Cerrado, o primo pobre é que é o rico.