Sucesso de público, os desenhos animados com temática ambiental ajudam a dar vazão às ansiedades contemporâneas sobre o meio ambiente, mas o mote é apenas entreter
Do Mogli da nossa infância a Os Sem-Floresta, Madagascar, Happy Feet e Bee Movie, o ritmo é frenético. Sem filhos, falta incentivo para se meter no escurinho e acompanhar as aventuras de personagens de cabeça e olhos avantajados, prontos a nos agarrar pelo coração. Dos adultos que levam as crianças ao cinema, ouvese que os filmes encantam não só pelos personagens e façanhas técnicas da animação, mas também pela mensagem que carregam, com tons ambientais.
E fazem sucesso. Vários constam da lista de filmes com maior bilheteria da história. Uma visita à locadora da esquina comprova: pelo menos uma dezena de cópias de Happy Feet – produção da Warner Bros de 2006 que embarcou na onda dos pingüins e amealhou o Oscar de melhor filme de animação no ano seguinte – estão alugadas. A apenas alguns passos, é possível encontrar na prateleira, disponível, um exemplar de Onde os Fracos Não Têm Vez, o melhor longa-metragem do ano segundo a “Academia”.
Se claramente existe um mercado para o “gênero” da animação centrada na temática ambiental, fica a pergunta: qual é a mensagem? “No começo do século XX, a visão prevalecente era a da natureza como cenário, que precisava ser mantida intacta e separada, enquanto a visão no presente reconhece a complexidade das interações entre os homens e todos os ambientes”, diz David Whitley, professor da Universidade de Cambridge, na Inglaterra, e autor do livro recém-lançado The Idea of Nature in Disney Animation.
Apesar de apresentar um mundo mais complexo, os filmes de animação mantêm a tradição de dar vazão a ansiedades do grande público sem romper com o status quo. “Eles são populares porque as pessoas têm – talvez em um nível inconsciente – a sensação de precariedade e perda”, pondera Whitley. “Mas são entretenimento, não são desenhados para fazer a audiência sair do cinema como se tivesse visto um documentário sobre a mudança climática.”
Enviro-toons clássicos
Robin Murray é professora da Eastern Illinois University e no momento prepara um livro sobre o que chama de enviro-toons – animação com temática ambiental –, em parceria com Joseph Heumann. Para ela, a profusão atual de enviro-toons tem a ver “com o que está acontecendo com nossa cultura”. A problemática ambiental se popularizou e emerge nos comerciais, na TV, nos filmes. “A animação tende a adotar esses assuntos mais rapidamente do que outros gêneros”, diz Robin. Ela analisou cartoons curtos, de 7 minutos, realizados nas décadas de 30, 40 e 50, e descobriu que a mensagem ambiental já estava presente.
Um deles é “estrelado” pelos Goofy Gophers, um par de esquilos animados pela Warner Bros e bastante parecidos com Tico e Teco da Disney. O cartoon, de 1955, reflete a vida no meio do século XX. “Nossa casa não está muito melhor do que antes?”, pergunta um dos esquilos, ao admirar uma casa construída com a madeira da árvore que servia de abrigo para a dupla até então – e equipada com televisão. Ao redor, a floresta repleta de tocos de árvores derrubadas. “Será melhor quando tivermos eletricidade”, responde o parceiro.
Cartoons como esse ilustram as conseqüências do chamado progresso de maneira menos óbvia, e talvez mais eficaz, do que os documentários da época, acreditam Robin e Joseph Heumann.
Provavelmente nem os diretores nem seus estúdios pretendiam que os desenhos passassem mensagens ambientais, mas, para os pesquisadores, as produções do que eles chamam de “era clássica da animação” espelham crenças e, às vezes, críticas, sobre a tecnologia, o consumismo e o mundo natural. E abrem caminho para os enviro-toons de longa-metragem, dos anos 1940 até Happy Feet.
Símbolo vazio?
O uso de animais em histórias para crianças é tão antigo quanto o próprio ato de contar histórias. A técnica da animação, por outro lado, permite que as coisas e os personagens mudem rapidamente e que formas distintas no mundo real se misturem. “As crianças geralmente pensam nas coisas com formas de animais, e na própria identidade como pouco diferenciada da de outros animais. Então essas narrativas permitem que elas se coloquem no lugar dos animais”, afirma Whitley.
Os antigos cartoons exploraram essas possibilidades e tornaram alguns bichinhos famosos no mundo inteiro: o coelho Pernalonga, o Pica-pau, o gato Tom e o rato Jerry. Mas esses personagens, como os Goofy Gophers, comportam-se como humanos e raramente estão inseridos em seus ambientes naturais. A prática de focar na vida dos animais em seus respectivos habitats decolou com Bambi, o quinto filme de Walt Disney, baseado no livro Uma Vida na Floresta, do austríaco Felix Salten, lançado em 1923.
“Eu me lembro de ter visto Bambi quando era criança e achei maravilhoso”, conta o educador Ralph Lutts, hoje considerado um expert em Bambi e um de seus mais afiados críticos. “Cinematograficamente, o filme é um marco na animação, em termos de manter um senso realista de movimento e profundidade. É um trabalho impressionante como apresentação de uma visão estética da natureza.”
Mas, destaca Lutts, está bem distante da realidade. “No livro, Salten apresenta uma visão ecológica, em que os animais comem uns aos outros, e os cervos se questionam sobre a natureza dos caçadores humanos. O que Disney fez no filme foi transformar a natureza em um Jardim do Éden onde todas as criaturas vivem harmoniosamente e não há predadores”, diz. “Transformou a natureza no que muitos gostariam que fosse, um lugar de conforto, de retiro, de paz. A única fonte de trauma são os seres humanos, seus cachorros, e o fogo que criam.”
Na publicidade do filme e em materiais educativos, a Disney anunciava uma representação fiel da natureza. “Do lançamento em 1942 até o final dos anos 60, quando blockbusters como Tubarão começaram a sair, Bambi foi o filme mais bem-sucedido em termos de bilheteria, amplamente visto”, afirma Lutts. “A imagem da natureza como o Éden na terra permeava nossa sociedade, as pessoas aprenderam com ela.” Segundo ele, o filme é um “símbolo vazio” que “motiva, mas não educa. Pode estimular a ação, mas não a compreensão”.
De acordo com Whitley, entretanto, Bambi faz parte da tradição da Disney de apelar ao sentimentalismo para conectar o público com o que se passa na tela e inspirou uma geração de dedicados ambientalistas.
“Se um filme motiva profunda preocupação e promove a vida selvagem junto à audiência, faz diferença se a resposta é fundada em uma imagem sentimental e distorcida da forma em que o mundo natural funciona?”, questiona.
Whitley se diz mais preocupado em explorar a possibilidade de que as histórias açucaradas da Disney forneçam uma base em imagens e sentimentos que podem se aproximar do que o biólogo E.O. Wilson chama de biofilia, ou o amor pela natureza. “O papel da fantasia – e do mito – na expressão dos paradoxos e reviravoltas multifacetadas da nossa conexão com a natureza está profundamente imbricada na nossa psique histórica coletiva”, escreveu.
Independentemente de quanto a representação da natureza em Bambi foi fiel ao mundo real, o filme parece ter refletido a política de conservação dos EUA, que, na primeira metade do século XX, era pautada pela necessidade de separar a natureza do homem, de diminuir os predadores naturais, de cercar os ambientes para protegê-los. “Era um tempo em que as pessoas não sabiam nada de ecologia, era uma visão muito pouco ecológica, com imagens míticas de como os animais vivem”, diz Lutts.
Longe do documentário
A tradição de reinventar a natureza pela animação permanece. Difícil encontrar um enviro-toon da safra moderna que seja exatamente fiel aos animais e habitats que representa – assim fosse e estaríamos a assistir documentários. Para Lutts, a Disney se penitenciou por Bambi ao apresentar uma visão ecológica em O Rei Leão, estouro de bilheteria em 1994. Ali, a harmoniosa convivência na floresta dá lugar a uma sangrenta luta pelo posto de “Rei dos Animais”. Nem por isso O Rei Leão foi poupado de críticas: entre tantas, por representar as leoas como dependentes dos machos – o que reforçaria o estereótipo da sociedade dominada pela competição masculina – e os súditos como subservientes – o que indicaria às crianças que elas também seriam assim.
“Não percebi todos esses problemas quando assisti a O Rei Leão”, escreveu Steve Twomey, jornalista do Washington Post, nos idos de 1994. “O que vi foi um filme engraçado com uma animação de arrasar e lições poderosas sobre obedecer a seus pais, proteger o meio ambiente, ser leal e fazer o que se espera de você.” Twomey diz que chegou a se questionar sobre a violência no filme e o papel de um bando de hienas que ajuda a arrasar a terra após a morte do rei Mufasa. “Mas aí percebi que a voz da hiena-chefe pertence a Whoopi Goldberg, então as hienas não poderiam ofender, não é? No geral, pareceu-me mais um filme do que um seminário.” Ponto para o entretenimento.
Mas há provas de que é possível ir um pouco além. A melhor delas, na opinião de Whitley, é Procurando Nemo, produção da Disney-Pixar de 2003 que ele chama de “uma fábula para o nosso tempo”. Assim como Bambi, o filme é extremamente realista ao representar os peixes e seu meio ambiente. “Queremos que você acredite que esse mundo existe, mas também queremos que você acredite que é um mundo de faz-de-conta”, diz o diretor de Procurando Nemo, Andrew Stanton, nos extras que acompanham o DVD, resumindo a raison d’être dos filmes de animação.
O enredo conta a história de uma família de peixes-palhaços, reduzida ao pai, Marlin, e ao filho, Nemo, depois de um ataque de uma barracuda. No primeiro dia de escola, Nemo desobedece às ordens do pai, sai a explorar o oceano e acaba no aquário de um dentista em Sydney.
O fato de que Nemo vai à escola instala uma referência humana, analisa Whitley, mas também permite que uma riqueza de discursos em larga medida científicos sobre o ambiente natural circule junto com as imagens realistas dos recifes onde habitam Marlin, Nemo e seus amigos. Mr. Ray, o professor, meio brincando, enuncia os nomes científicos – e complicados – das diferentes zonas do oceano, importantes porque uma delas, vulgarmente chamada de “drop-off”, representa as profundezas e grande perigo para os peixes. E, ao final, cantarola: Explorar o conhecimento, oh/ é tão lírico/ quando você pensa pensamentos que são empíricos!
“A forma com que esse conhecimento é oferecido ao público jovem – tanto espectadores quanto peixes – é notável”, escreveu Whitley. “Em Procurando Nemo, a compreensão científica e a apreensão do mundo pelos sentidos parecem conviver sem sinais óbvios de ficção… A multiplicidade de pontos de vista é tolerada e, na verdade, serve como uma base positiva para as energias criativas do filme.”
Já pra fora!
Outro exemplo significativo da safra atual da animação ambiental é Bee Movie – lançado em 2007 pela DreamWorks –, que está a léguas da visão de Bambi em que homem e natureza não se misturam. “Em Bee Movie, a visão é mais complicada, explora a noção de que todas as espécies dependem umas das outras”, diz Robin Murray. “O filme centra-se na interdependência entre o mundo humano e o natural, não se trata de salvar uma espécie, mas da necessidade de pensar na biosfera e em como tudo está conectado.”
No enredo, um jovem zangão sai da colméia, quebra a regra suprema das abelhas, conversa com os humanos e descobre o destino de toneladas de mel: os supermercados. Aviltado, decide processar a raça humana e, com a vitória, todo o mel retorna às colméias. Sem motivo para trabalhar, as abelhas deixam de polinizar as flores, colocando em risco todo o mundo natural. No fim, abelhas e homens se aliam para que tudo volte ao normal.
Por mais que a mensagem dos filmes de animação tenha de certa forma evoluído e represente mais fielmente o que se passa no mundo real, nada substitui a experiência. Um estudo recente, entretanto, mostrou que a participação em atividades de recreação ao ar livre diminuiu 25% nas últimas duas décadas nos EUA. A realidade em países como o Brasil pode ser menos drástica, mas, com a urbanização e a globalização, não é de duvidar que as crianças brasileiras aprendam mais sobre o meio ambiente com Happy Feet e que tais do que brincando lá fora.
“Não se trata apenas de ler livros e ver filmes, mas de ir pra fora, interagir com a natureza”, defende Ralph Lutts. Mas, assim como as interações do homem com a natureza, a questão é complexa, acrescenta ele. “Esses filmes transformam a natureza em commodity. Embora o simples fato de haver um mercado para eles seja algo positivo, é preciso pensar que talvez as mensagens que estão nos filmes são aquelas que reforçam o que acontece no mundo para que este mercado exista.”
Eu vou, eu vou, comprar agora eu vou! Com os filmes, vem também o incentivo ao consumo
Nem só na telona vivem os desenhos animados. Lição ambiental à parte, eles invariavelmente vão parar em milhares de cópias de DVDs e em um sem-número de produtos: na época de Bambi, era o papel de parede; hoje, é possível encontrar de cosméticos com o mote de Bee Movie a videogames com os pingüins de Happy Feet.“Não há dúvida de que muitos desses filmes tentam vender produtos ao mesmo tempo que apresentam uma história com tom contemporâneo”, diz Joseph Heumann, da Eastern Illinois University. “Se as crianças respondem à mensagem – preocupe-se com o meio ambiente –, também vão às compras para adquirir tantos produtos quanto houver personagens.” Nas palavras de David Whitley, quando se compra o filme, compra-se também a narrativa do consumo capitalista.
A Disney é particularmente eficaz nesse quesito, diz o professor de Cambridge. Nos seis meses encerrados no fim de março, por exemplo, registrou US$ 1,421 bilhão em vendas de produtos de consumo, 21% a mais do que no mesmo período do ano anterior. A empresa segue a etiqueta da responsabilidade corporativa e até patenteou uma marca – Environmentality – para representar “a ética fundamental da Disney que mistura crescimento dos negócios com preservação da natureza”. Mas não convence os críticos. “A corporação é um espelho perfeito para o país que a produziu”, escreveu Xan Brook no The Guardian. “De um lado, encara a natureza como algo a ser adorado, reverenciado, romantizado. Do outro, como algo a ser domado, dominado e pilhado.”
A natureza continua a alimentar os negócios Disney. A corporação anunciou em abril a criação da Disneynature, uma divisão para produzir documentários sobre o mundo natural: o primeiro, intitulado Terra, tem estréia prevista para 2009, seguido por Oceanos, em 2010, e Chimpanzé, em 2012.
A julgar pelo novo longa de animação da Disney-Pixar, entretanto, o futuro dos homens sobre o planeta é incerto. Com lançamento previsto para este mês de junho, WALL*E conta a história de um robô deixado na Terra para limpar a sujeira causada pelo consumismo, enquanto os homens esperam, no espaço, a hora de voltar para casa. Engana-se quem imagina que, desta vez, a crítica é para valer: o coração da trama é a história de amor de WALL*E com a robô EVE.